Capítulo 43 - Lady Marsalla
Drake voltou-se para sair. O coração de Johanne se encolheu. O vampiro que ela amava tinha viajado metade do reino para vê-la e ela estava deixando que fosse embora. Tinha certeza de que, se ele passasse daquela porta, nunca mais o veria de novo.
— Por favor, não vá embora. — Ela disse, pousando a mão no braço dele e sorrindo. — Você e eu parecemos acabar sempre aos gritos um com o outro. E um de nós vai embora, sempre. Gostaria, pelo menos desta vez, que a gente se despedisse como amigos.
— Eu também!... Mas... — Respondeu Drake, sorrindo calidamente. — O que é que você sugere?
Ela queria gritar ame-me, abrace-me, beije-me, possua-me!
— Bem!... — Disse, tímida. — Eu tenho dois ingressos para um concerto. Podemos ir jantar, depois eu posso lhe mostrar um pouco do meu vilarejo e, para terminar, vamos ver o concerto das Seriens
— Acho um ótimo programa. — Drake riu. — Por outro lado... Não, talvez seja melhor você me mostrar o vilarejo. Dá última vez que estive aqui, matei muitos Lycans e o rei daqui ficou furioso.
— Está brincando?
— Não estou, não!
— E quando foi isso? Perguntou curiosa.
— Há uns setenta ou oitenta anos, Aurora era um filhote ainda. Estava em missão imperial!...
Foram para o bairro perto do mar e comeram num restaurante típico dos tritões, sentados no chão, o cozinheiro preparando a refeição na mesa. Conversaram sobre assuntos gerais; tempo, política, música e arte.
Quando chegaram à enorme concha acústica nas praias de Azkar, Johanne sentia-se relaxada e contente com a presença de Drake. Aceitava o fato de que ele ia retornar ao seus domínios e provavelmente nunca se encontrariam novamente.
Sabia também que ia lamentar o fato de não ter sido amante dele, mas no momento eram bons amigos, camaradas, e ela se sentia em paz.
Cruzaram o gigantesco pátio, repleto de enorme árvores floridas e carruagens de mão dadas, Drake levando no braço a coberta sobre a qual se sentariam. Entregaram os ingressos, pegaram os programas com os anúncios das programações da noite e Johanne conduziu Drake ao longo das arquibancadas de pedra vulcânica, preferindo sentar no gramado que ficava nos fundos do grande auditório ao ar livre. Abriram a coberta no chão, onde outros seres faziam o mesmo.
— Eu prefiro sempre sentar aqui em cima, na grama. Aqueles bancos são muito duros e a gente não pode nem se mexer.
— É porque você é uma jovem humana. — Disse Drake, rindo. — Quando tiver a minha idade vai ver que sentar num lugar e ficar imóvel por horas pode ser também muito prazeroso. — Ele passou os dedos levemente no rosto de Johanne. — Você é muito jovem, não, humana Johanne? Jovem e bonita demais para ter essas olheiras. E esse cabelo curto faz você parecer ser mais jovem ainda. Eu gostava tanto do seu cabelo comprido...
— Eu não tinha escolha. — Disse Johanne, tremendo sob o toque dele. — Meu cabelo estava horrível com aquele buraco que Zarga teve de fazer.
— Sabia que Safira e Areax estão comprometidos oficialmente perante o reino e seus clãs? Eles parecem tão descombinados, mas felizes ao mesmo tempo!
— Eu já sabia. Safira me escreveu, contando. Ela contou também que vai deixar a clínica e abrir um outra para combinar melhor os horários com o trabalho de Areax em Axel. E acho que eles combinam, sim. Ela precisa de alguém que não a deixe esquecer que ainda é uma jovem bruxa e Areax, às vezes, precisa de uma influência mais madura e estável. Também só assim para ele voltar a ser o que nunca deveria ter deixado de ser, um caçador.
— Engraçado! Eu achava que aquele elfo encrenqueiro gostava de você. — Confessou Drake.
— De mim? Ah, não.
Drake olhou o programa do concerto, que era em benefício dos vilarejos mais afastados e atingidos por uma estranha seca no leste do reino de Azkar.
— Programa variado: algumas árias de realizadas pelas Cecaelias, Ondinas, a sonata das ninfas azuis...
— O quê? — Disse Megan num salto.
— Aqui, olhe. Quase o último número. Sonata em Lá Menor Violino e Piano, de um grupo de Sereias prateadas vindas do oceano grego. Acho que não conheço a obra.
— Não sabia que iam tocar isso. — Ela murmurou, perturbada. — Se soubesse nunca teria vindo.
— Isso tem algo a ver com Jeffery? — Drake olhava intensamente para ela. — Humana Johanne, você não pode passar o resto da vida evitando violinos.
— Eu sei, mas é que...
As luzes se apagaram na platéia e Drake tocou a mão de Johanne, carinhosamente. Ele tirou o sobretudo e acomodou-se melhor.
No escuro, Johanne estava rígida. Não ouviu o discurso apaixonado pedindo doações, feito pelo mestre-de-cerimônias, que na verdade fazia parte da nobre do reino de Azkar. E nem uma das árias feitas pelas bruxas do mar. O pianista que tocou o poema complexo da imperatriz Vivica podia ter tocado inúmeras vezes seguidas que para ela teria sido a mesma coisa. Seus ouvidos, todo o seu corpo estavam tensos, alerta para o momento em que afinal seria forçada a ouvir novamente a misteriosa sonata Seres artificiais.
Os acordes iniciais soaram sobre a multidão silenciosa. O pianista dedilhou o tema e então, com enorme sensibilidade, reduziu: o volume de sua execução e o violinista começou a melodia. Johanne olhava fixamente a enorme concha acústica, ouvindo o tecido musical que eles urdiam, como lençóis de cetim, ela havia dito um dia para si mesma. Esperava sentir novamente aquela dor a que já se habituara. Lá longe, os executantes eram vultos escuros na luz de cena. Tocavam com maestria, sem saber que na platéia havia alguém para quem a sonata Seres artificiais simbolizava tudo o que tinha ido errado em sua união, em sua vida. Não era uma obra muito conhecida. Tinha sido composta por algum ser místico do passado, fundador da escola de magia e música de Morlóvia onde Jack Nemesis estudara. Jeffery tinha gostado tanto da obra que a havia transformado em sua assinatura para concertos. Quando ele e Johanne tocavam a sonata, ela sempre sentira que era como se estivessem fazendo amor obscuramente através da música. Ingenuamente achava que ele sentia a mesma coisa, mas um dia, ao retornar da execução dessa obra exatamente, encontrara no camarim Jeffery e Ayla beijando-se apaixonadamente.
Não havia entendido o conceito por trás da obra, mas depois fazendo algumas pesquisas descobriu a verdade por trás do som. Jack Nemesis, tinha o desejo latente de ter poder sobre a criação sempre foi incentivado por uma curiosidade e inquietação sobre conseguir dominar a matéria. Apesar dos avanços tecnológicos dos dosi reinos gêmeos, há muitos séculos existem relatos sobre seres artificiais. Estes não são frutos naturais do mundo como a gente vê e nem mesmo do sobrenatural, eles são criados pela magia negra para o individual ou para o coletivo.
Jack recriou os homúnculos, os Golem de pedra e as Gárgulas. Dando início a guerra entre os seres. Tempos sombrios foram aqueles. Em sua ingenuidade, Johanne acreditava ser apenas uma canção de amor.
Agora, porém, percebia surpresa que a música não tinha mais nenhum efeito sobre ela. Não sentia mais dor, somente pena. Uma enorme pena.
Olhando aquele mar de cabeças na platéia, Johanne pensou em quantos ali teriam ouvido falar de Jeffery Brishen. Poucos, talvez ninguém. Jeffery tinha morrido no início de sua ascensão, conhecido por um punhado de apreciadores de música, mas ainda desconhecido do grande público dentro dos reinos principais. Pobre Jeffery, tão brilhante, tão talentoso e tão atormentado. Que vida curta para um vampiro! Johanne sabia agora que ele tinha sido na verdade uma vítima, tanto quanto ela. Uma vítima das circunstâncias, a personalidade deformada pelas condições de nascimento e criação.
Talvez a única coisa que lhe desse alguma paz, alguma alegria, fosse a música. Pois não tinha nenhum talento para magia ou para se tornar um defensor de seu clã.
Johanne piscou e lágrimas quentes desceram por seu rosto, lágrimas derramadas por Jeffery, pela tragédia daquela vida tão breve. Agora ela o conhecia como nunca tinha podido conhecer enquanto estava vivo.
Conhecia e perdoava. Tudo.
E então os braços de Drake se fecharam em torno dela e ele a puxou para si. Com a mão esquerda segurava sua nuca e com a direita cobria seu ouvido, acariciando seus cabelos brancos, mantendo a cabeça dela contra seu peito, a música se dissolvendo para ela nas batidas do coração dele.
Johanne se apertou mais nele, chorando a dor e o pesar que tinham fermentado dentro dela por tanto tempo, criando uma barreira para o amor. De repente um som amorfo encheu seus ouvidos como se uma enorme muralha estivesse ruindo. Ela levantou a cabeça e descobriu que eram os aplausos.
— Desculpe-me... — Disse, sorrindo para Drake e limpando as lágrimas com a mão. — Música romântica sempre me emociona.
— Nunca foi sobre o amor realmente, mas sobre o poder de criar e destruir. Ela só pode ser ouvida agora por que os anciões anularam a magia dessa música.
Drake tirou a cigarreira. No escuro, quando a chama se acendeu, Johanne viu que a expressão dele era calma. Mas os movimentos que ele fazia, fumando no longo silêncio que se formou, eram nervosos.
— Vai deixar que toda a sua vida fique arruinada pelas coisas que Jeffery lhe fez, humana Johanne? Não vai nunca se libertar dele?
— Mas eu estou livre dele. — Johanne sorria porque sabia que agora era verdade.
— Há menos de um minuto você estava chorando porque o amava.
— É verdade!... — Ela admitiu. — Eu amava Jeffery. Amava, no passado. Jeffery está morto e eu já tive pena de mim mesma por tempo demais.
Voltou a prestar atenção aos números finais do concerto e, quando tudo terminou, voltou-se para Drake. Na luz que vinha do palco podia ver que ele estava muito sério, fumando mais um cigarro, a grama em volta dele toda cheia de tocos, alguns ainda fumegando.
As pessoas passavam por eles em direção à saída, mas Drake permanecia imóvel. Johanne esperou.
— O que lhe dá tanta certeza de que superou Jeffery agora? — Drake perguntou finalmente.
— Pensando naqueles dois anos, entendo agora que pelo menos; parte do que aconteceu foi provocado por mim mesma. Eu era muito jovem e tinha muito medo de ficar sozinha. Quando conheci Jeffery, minha mãe tinha morrido há pouco e eu estava confusa, horrorizada pela solidão. A proposta dele me pareceu um presente vindo dos céus, porque significava que eu teria alguém novamente. Depois, quando; eu descobri sobre o caso dele com a vampira Ayla, fui tão covarde que pensei que viver ao lado dele seria, em qualquer circunstância, melhor que tentar fazer minha própria vida. Levei dois anos para admitir que, estava errada. — Johanne endireitou os ombros e disse, com firmeza. — Mas agora está tudo acabado. Sou adulta, responsável por mim mesma. Se ser sincera comigo mesma quer dizer ficar sozinha... Bom, eu sei que posso suportar.
— Eu não posso!... — Disse Drake com a voz estrangulada depois de um longo silêncio.
— O quê? — Johanne estava assustada.
— Eu não posso!... — Drake repetiu. — Não consigo mais viver sozinho. Convivi com a solidão todos estes anos, mas acho que não consigo mais. — Ele atirou o cigarro e agarrou-a pelos ombros, sacudindo Johanne ligeiramente para fazê-la entender. Tinha o rosto atormentado. — Só me sobrou minha filha. O resto, tudo o que eu amava, me foi tirado: Belle, minha família, minhas aventuras como um caçador imperial. E agora uma parte da minha herança. Sempre me orgulhei da minha auto-suficiência, mas não suporto mais. Se perder mais alguma coisa, será o meu fim. Por favor, humana Johanne, preciso da sua ajuda.
1952 Palavras
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