Capítulo 3 - Lady Marsalla
"Não a Diferença Entre Viver & Receber Permissão pra Viver. Assim Como Não há Diferença Entre Morrer & Ser Morto."
Durante alguns momentos os dois se olharam em silêncio. Johanne sentiu-se arrepiar ao pensar que não conhecia aquele vampiro, mas ele podia muito bem ser o misterioso Drake Brishen que havia lhe mandado a passagem de navio acompanhada de uma carta breve e seca. Mas parecia velho demais para ser irmão de Jeffery. Além disso, a carta tinha sido escrita em seu idioma.
— O senhor, como se chama? — Perguntou ela, usando todo o seu conhecimento que possuia da língua dos nobres de Brishen. — É Drake Brishen?
— Não, não, sou Godwin, servo do castelo... — O vampiro parecia perplexo e um tanto horrorizado, prolongando-se em explicações que Johanne novamente foi incapaz de compreender.
O vampiro era o servo pessoal da família Brishen e estava incomodado com o fato de ter sido tomado pelo cunhado dela. Ele chutou um dos pneus da carruagem, fazendo gestos explicativos, e Johanne finalmente compreendeu que um dos pneus da carruagem tinha algum defeito. Daí as manchas nos joelhos dele, pensou. Provavelmente a carruagem havia atolado no meio do caminho.
Um pouco mais relaxada, Johanne disse a Godwin, procurando as palavras certas com todo o cuidado, que não se importava com o atraso e que gostaria de ir imediatamente para a propriedade Brishen. Pela expressão meio alarmada do vampiro, ela percebeu que tinha invertido a ordem no verbo em sua frase, uma séria ofensa para eles, mas ele sorriu bem-humorado e colocou as dois baus dela na parte traseira da carruagem. Ao deixarem a praça, Johanne impulsivamente olhou para trás. Na entrada da casa de esquina viu um jovem vampiro que olhava fixamente a carruagem que se afastava.
Com um suspiro, ela se deixou afundar no banco estofado de camurça vermelha. Olhou em torno, examinando o interior luxuoso da carruagem real, tão diferente do carruagem que tinha em Azkar. Nunca havia entrado num carruagem tão cara antes. Já tinha visto vários modelos de carruagem algumas vezes, conduzindo gente chique aos concertos de Jeffery. Mas isso, claro, tinha sido depois de ela desistir de ser a acompanhante do companheiro, quando então era forçada a passar aqueles minutos de suspense, que precedem a abertura da cortina, vagando pelos corredores e camarins sem nada para fazer. No começo, quando seu nome ainda aparecia abaixo do dele no programa, é claro que sempre em letras muito menores, aqueles poucos minutos antes de a cortina subir eram sempre muito ocupados para poder pensar na plateia ou em suas carruagens. Ela ficava sempre agitada, alisando as pregas do vestido de gala, negro ou vermelho, o seu preferido era os de cores mais suaves, perguntando pela milésima vez ao diretor de cena se o piano tinha sido afinado, verificando a posição da partitura na estante, fazendo as mil pequenas coisas que fazia para poupar Jeffery e deixá-lo entregue à sua concentração.
Jeffery... Sempre que pensava nele agora, para se preservar, Johanne tentava relembrá-lo como aparecia no palco dos grandes teatros nobres onde se apresentava, sozinho num círculo de luz branca, alto, imponente, o cabelo louro-prateado brilhando em vivo contraste com as roupas pretas e formais. Ele ficava imóvel alguns segundos enquanto a plateia esperava em suspenso, uma espécie de tensão elétrica se formando no ar. Sentada ao piano, Johanne sempre ouvia alguns suspiros femininos quando Jeffery examinava a plateia, os olhos cinzentos animados de uma paixão que só ela entendia. Johanne duvidava que ele jamais tivesse ouvido as exclamações das mulheres sobre a beleza dele, pois naquele momento já estava possuído inteiramente pelo único amor de sua vida: a música. Lentamente ele levantava o precioso violino até a posição, no ombro, os dedos longos de sua mão esquerda acariciando o instrumento, como um amante. E então o braço do arco, animado de uma espécie de tensão erótica, subia e, com um minúsculo sinal de cabeça, Jeffery indicava a ela que podia começar a introdução da peça que iam tocar no recital. Johanne, que respondia àquela paixão, mesmo não sendo a ela dirigida, fazia soar as primeiras notas no piano e, juntos, os dois traçavam um tecido musical tão sensual e sedutor quanto lençóis de cetim. E, pelo breve momento de uma composição musical, os dois eram um só.
Tinham sido bons momentos. E agora, olhando para trás, Johanne percebia que podia contar nos dedos as vezes que, durante os dois anos de casados, eles tinham conseguido atingir tal ligação. Ela, então uma confusa e desesperada garota de dezenove anos, tinha tentado atingi-lo, primeiro como mulher e depois como musicista. Mas tinha falhado em ambas as coisas. Depois de uma desastrosa lua-de-mel, em que ficou evidente, mesmo para a inexperiência de Johanne, que ele a tocava com absoluta indiferença, ela quis saber por que ele tinha se casado com ela. Ele não respondeu, afastando-a como se fosse apenas uma criança petulante. Tocada e humilhada, Johanne tinha atirado a ele então aquela acusação imperdoável. Ela lamentou ter dito aquelas palavras ao terminar de pronunciá-las, mas já era tarde demais. Podia sentir a fria fúria com que Jeffery a olhava.
— Bem, minha querida esposa!... —A expressão carinhosa em sua língua nativa tinha sido como uma bofetada em seu rosto —, se é isso que pensa de mim, pode ficar tranquila que nunca mais dormirei em sua cama, apesar do dúbio prazer que isso possa proporcionar. Casei com você porque é boa acompanhante, além de ferir mortalmente a minha família e fica mais cômodo tê-la sempre a meu lado. Em troca disso, você pode continuar com suas lições de música e ter a honra de ser a esposa de um nobre Brishen. Se isso não lhe parecer suficiente, pode ir embora quando quiser.
Ela não tinha podido acreditar. Imaginou que, se pedisse desculpas com extrema humildade, talvez fosse perdoada pelas palavras rudes; poderiam então tentar reacender o amor que tinha surgido tão depressa entre eles. Foi só depois de uma série de rejeições humilhantes que Johanne entendeu que Jeffery tinha dito a verdade e nunca mais a tocaria. E foi então que compreendeu que só ela amava. Ele, não. Mas, mesmo assim, não o havia deixado. Não tinha ninguém no mundo e compreendia tarde demais que essa era uma das razões de Jeffery tê-la pedido em casamento. Aos dezenove anos, mesmo uma vida estéril ao lado de Jeffery parecia preferível a uma vida solitária dando lições de piano a crianças sem nenhuma vontade de aprender. Ou mesmo dançando em palcos ou bares pelos reinos e continentes. E assim tinha continuado, como sua acompanhante, vivendo de verdade apenas nos momentos em que se relacionavam musicalmente e alimentando ainda algumas esperanças. Ninguém sabia que a intimidade física deles tinha terminado logo de início e, com o tempo, Johanne passou a ver aquelas poucas noites em companhia do marido como um mero sonho mau e perturbador. Os fatos vieram lhe provar, mais tarde, que estava errada em duvidar da virilidade dele; mas, quando isso aconteceu, já não importava mais.
A vida musical em conjunto tinha terminado também. Depois de um ano ficara evidente que o virtuosismo de Jeffery estava muito além da capacidade dela de acompanhá-lo. Durante um recital num colégio real na Cartana, ela executou tão mal sua parte da sonata que ambos faziam a pelo menos um ano e que só a imensa perícia de Jeffery conseguiu salvar o número. Depois da execução ele saíra do palco furioso, sem olhar para ela. Ela se arrastou até o camarim para enfrentar a fúria dele, mas encontrou a porta trancada. Quando Arturo Baskerville, patrocinador e agente de Jeffery, a encontrou, Johanne estava chorando baixinho num canto escuro da estufa da escola real.
— Não leve tão a sério, querida! — Disse ele, afagando-a carinhosamente. — Não é o fim do mundo. Todos sabíamos que isso ia acabar assim. Você é ótima pianista, excepcional para a sua idade, mas Jeffery é um gênio e nós dois sabemos que não dá para você acompanhá-lo mais. Mas não é nenhuma desgraça. Até agora, Jeffery vem tocando em universidades e cidades menores pertencentes aos cinco reinos. Mas agora já está pronto para seu grande momento... Cartana, Morlóvia, marlóvia, lugares em que todos os músicos sonham se apresentar... A próxima temporada vai ser a mais importante da vida dele e depois ele será considerado um dos grandes violinistas do país. Não preciso lembrá-la de quanto dinheiro e esforço gastei com Jeffery até agora. E agora chegou a hora de eu começar a lucrar com meu investimento.
— E acha que eu vou estragar tudo, não é?
— Falando assim você me faz parecer um monstro. Eu me preocupo com Jeffery, mas me preocupo com você também. Você não é feita para a vida de concertos, Johanne, não a este nível. A pressão está, sendo excessiva para você. Quando Jeffery a apresentou a sua Ayla e a mim, achei que era uma das humanas mais lindas que já tinha visto em toda a minha vida. Ainda acho isso, mas você está pálida, magra, com olheiras. Seu sangue não serve mais para nutrir o nosso nobre Jeffery, enquanto que Ayla, essa sim é uma companheira perfeita. Deveria se inspirar nela... Sei que é por causa de todas essas viagens, do excesso de trabalho. Você tem que assentar-se um pouco, descansar. Talvez ter um herdeiro pudesse mudar isso, mas... — Ele olhou para ela, provocador. — Você daria uma boa mãe, Johanne, e um bebê seria ótimo para coroar a turnê triunfal de Jeffery. Talvez Ayla e eu pudéssemos ser padrinhos, hein?
Johanne olhou aqueles olhos castanhos e ternos, sentindo uma pontada de dor no coração. Se ele soubesse! Lançou os braços em torno do pescoço dele e soluçou baixinho, enquanto ele a confortava dando palmadinhas no ombro.
Johanne levantou a cabeça, voltando à realidade. Suas mãos estavam contraídas como garras, as unhas curtas marcando profundamente o estofamento de camurça do carro. Nem tinha notado o que estava fazendo. Olhou para fora. A carrugem atravessava campos verdejantes. As terras de Aneane era um belo país e era difícil entender por que Jeffery tinha resolvido abandonar aquilo para ir viver na selva de concreto que eram os outros reinos. Johanne suspirou profundamente. Não havia porquê continuar pensando em Jeffery. Ele estava morto. Um pouco de sua música sobrevivia nas duas gravações que tinha feito, mas a arrogância e crueldade que tinham causado a ela tanto sofrimento estavam acabadas para sempre, eliminadas nas chamas de uma grandiosa fogueira santa. Os demais disseram que ele tinha morrido antes das chamas o atingir. Pelo menos isso era algum consolo. A estaca foi certeira em seu coração.
A carruagem atravessava agora uma área de florestas em que a luz formava desenhos de claro-escuro na grama luxuriante debaixo dos troncos. Johanne tentou se concentrar na vista, mas sua mente a traía, evocando pensamentos inquietos e ela se sentia um pouco como se estivesse drogada. Devia ser por causa da viagem muito longa, claro. O tempo e o clima lhe mostrava que era ainda o começo da tarde, mas para seu corpo já era o meio da noite. Não sabia quanto teriam viajado desde Azkar, mas sentia que não estavam mais na estrada principal. Godwin manobrava habilmente os corcéis negros da carruagem ao longo das curvas do que parecia ser uma estrada particular. Logo, o castelo da família Brishen surgiria a distância.
Johanne fechou os olhos e tentou se lembrar do pouco que sabia sobre a família de Jeffery. Ele nunca falava dos membros de seu clã e aparentemente não mantinha contato regular com eles. Pouco antes do primeiro aniversário de casamento, Jeffery tinha recebido uma carta com carimbo de Aneane e parecera tão surpreso com ela quanto Johanne.
— É de meu irmão Drake... — Ele informara.
Johanne tinha olhado o papel coberto por uma pesada escrita gótica, que ela evidentemente não conseguia ler. Depois de terminar as muitas páginas, Jeffery tinha ficado um tanto alheio, olhando o espaço com uma expressão vaga.
— Más notícias? — Ela perguntou timidamente.
— Depende do ponto de vista. — Jeffery sorria levemente. — Drake conta que meu pai e nosso irmão mais velho, Damon, morreram num confronto no reino de Marlóvia, onde estavam em conferência real.
— Oh, meu Deus! — Exclamara Johanne, horrorizada.
— Poupe suas condolências humana!... — Dissera Jeffery, impaciente. — Damon nunca se importou nada comigo e meu pai... toda a afeição que me deu foi muito pouca e veio tarde demais.
— Você não vai para os funerais?
— O funeral já deve ter acontecido. — Dissera Jeffery, indiferente. — É uma outra coisa que Drake quer saber, uma coisa... surpreendente. É pena. Eu sempre pensei que um dia ia poder voltar e mostrar a eles... Bom. Agora não volto nunca mais.
E não voltou mesmo. Depois do enterro de Jeffery, Johanne tinha examinado os objetos pessoais dele. Na verdade, era o contato mais íntimo que estava tendo com ele desde que se conheceram. E acabou encontrando a carta do irmão. Pegou o endereço do destinatário e tinha escrito uma breve carta, explicando rapidamente as circunstâncias da morte de Jeffery. Enquanto escrevia, tinha a consciência de que devia estar parecendo fria e sem sentimento. Mas de que outra maneira podia contar a um absoluto estranho que seu único irmão estava morto? Depois disso tinha dado todos os valores de Jeffery para Leifert, como reembolso, pelo menos parcial, por todo o dinheiro e tempo que ele havia investido na carreira de Jeffery. E tinha fugido para Azkar, um pequeno vilarejo dentro dos domínios de Cartana, para recomeçar a vida.
Meses depois recebera uma carta toda amassada, que a havia perseguido por todo o país. As marcas dela indicavam que tinha sido extraviada mais de uma vez, em parte devido ao fato de estar endereçada à Sra. Jeffery Brishen, quando na verdade ela havia voltado a usar seu nome de solteira, Johanne Rhoslyn. Ao ler a mensagem, ficara surpresíssima. Era de um vampiro do reino de Aneane, que dizia estar agindo na função de representante de Brake Brishen, irmão de seu falecido companheiro. Um assunto urgente a respeito das terras de Jeffery. "Que terras?", se perguntava ela exigia a presença da Sra. Johanne Brishen no reino de Aneane. A família Brishen estava disposta, generosamente, a pagar por todas as despesas de viagem.
Johanne não podia imaginar que tipo de negócio seria tão importante a ponto de a família de Jeffery estar disposta a mandar buscá-la num vilarejo perdido dentro do reino de Cartana, sobretudo por terem eles ignorado absolutamente a existência dela té aquele momento. Porém, estava cansada do trabalho no bar e uma viagem grátis ao reino dos vampiros considerados originais não era coisa para se recusar.
E agora ali estava ela numa carruagem estilosa, sendo conduzida por um de seus servos para... para o quê? Um arrepio de medo a percorreu. Tinha embarcado nessa viagem tão cegamente quanto tinha embarcado no casamento com Jeffery. Será que os resultados seriam igualmente desastrosos? Jeffery tinha dito: Quero que seja minha mulher. E ela ingenuamente tinha achado que isso queria dizer: Eu a amo. A família dele tinha dito: Aqui está a passagem para nosso domínio. Será que isso significava que não devia ter vindo? Johanne arrepiou-se de novo.
De repente sentia enorme desejo de estar de volta ao seu quarto atravancado em Azkar, o ruído familiar dos roncos de Shakira filtrando-se através das paredes finas.
— Humana Johanne... — Disse o servo. E só então ela percebeu que ele já estava falando com ela há algum tempo.
— Desculpe, que foi que disse? — Perguntou.
— Disse que já estamos quase chegando à propriedade Brishen. — Ele repetiu a olhando de lado. — Já vai poder vê-la, assim que cruzarmos as montanhas.
— Obrigada, Godwin.
Johanne aprumou-se no banco, querendo enxergar logo o lugar ao qual o destino a havia trazido. A carruagem rodava depressa, saindo da floresta e subindo uma encosta coberta de trevos e flores silvestres. No alto da subida Johanne viu um grande arco de pedra com uma letra B de ferro batido pendurada.
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