Sim's são meus dogmas
Canadá, 26 de abril de 2024
Aiyra Bin Talal
— De novo. — Murmurei e apaguei o último parágrafo que redigi da minha tese de pós-doutorado. Tenho apenas quatro meses e vinte e três dias para a entrega e apresentação ao corpo docente, mas o rosto de Alaweed pesa tanto em minha mente que degenera parte de meus neurônios, e desvia outros de sua função básica e reatribui preocupação a eles.
Não havia dormido na noite passada, não havia deixado a minha sala, apenas me submergi na pesquisa durante a noite no silêncio do prédio comercial de treze andares. Me recusava a aceitar que possuía mais coisas na mente do que posso lidar, era uma possibilidade que nunca me fora apresentada, a de ser incapaz, a de não alcançar todas as expectativas e me sobrepor aos ideias sobre-humanos de meu pai. Meus dedos dos pés se mexiam, dentro do permitido no sapato social, na tentativa de me auto amparar, visto que todos aqueles com quem partilho o sobrenome me silenciam e atribuem diversos deveres sem direitos, desconstroem a minha personalidade e brincam com o advento da criação usando a minha matéria como escopo.
Cruzei meu pés. Me ajeitei na cadeira. Arrumei minha roupa e voltei a atenção ao texto, todavia, não possuía forças para afundar as teclas que indicavam letras, as línguas já se misturavam e todos os meus conceitos se embolavam, causando uma dor semelhante a injúria advinda da negação. Não posso falhar, não quero, não posso e não devo. Aquelas palavras me atingiam como chicotes rebeldes que insistiam em marcar a minha alma com a mesma amargura que Alaweed e seus quereres infinitos para comigo destruíram a minha independência.
"Você pode ir. Mas nunca estará livre de mim."
Naturalmente apoiei meus cotovelos na mesa de vidro quando aquela cena fora remontada em minha mente, meus olhos recriaram o falso brilho que possuíam toda vez em que tentava angariar um olhar positivo de Alaweed, entretanto, o brilho agora era fruto da amargura que ele transformara a minha vida. Um fantasma que perseguia e guiava todos os meus passos, me condenando a projetos em que nunca foi autora, apenas objeto.
O relógio seguiu seu curso interminável enquanto eu ruminava acontecimentos fragmentados, até que meu despertador começou a tocar, indicando que eu não podia mais protelar ser produtiva, mesmo com a mente arruinada desde os dezesseis anos. Não tinha interesse em fazer nada, mas essa possibilidade nunca se materializou, ri sem graça, compartilhando meu desafeto com a única pessoa que compreendia o silêncio ensurdecedor do meu trabalho.
I N Í C I O D O F L A S H B A C K N A R R A D O P O R A I Y RA
— Alaweed. — Sorri tentando transparecer o mínimo de surpresa assim que abri a porta.
— Como está? — Disse entrando no apartamento, mesmo sem que eu lhe tivesse convidado.
— Você quer algo para beber?
— Não. — Passou o olhar ao redor da sala, provavelmente buscando alguma semelhança com a sua casa. — Como você está? — Repetiu a pergunta, e eu ri desaprovando sua atitude, e tudo que fizera desde que sou capaz de remontar sua imagem.
— Sabe... — Caminhei pela sala, um sorriso de escárnio inundava meu rosto enquanto os cabelos curtos tocavam meus ombros cobertos pelo blazer. — Durante muitos anos eu quis que você me perguntasse isso, de verdade. Sei que não acredita em qualquer palavra que digo, o que é recíproco, mas quando eu ainda era seu projeto de vida, eu sonhava em ouvir isso, hoje, eu não tenho o mínimo apreço pelo seu falso interesse em mim.
— Petulante como sempre.
— Você me ensinou a ser assim quando negou toda a minha personalidade e me forçou a ser como queria.
— Deveria parar de agir como se fosse vítima, fica péssimo em você.
— Ótimo! Se fica péssimo em mim, por que não retorna ao seu mundo fantasioso em que todos obedecem as suas regras estúpidas?
— Se não fossem pelas regras estúpidas, você nunca teria chego aonde chegou.
— Quer que eu te agradeça, é isso?
— Sei que não é tão educada a ponto de reconhecer o meu papel.
— Se tem uma coisa que eu sei é reconhecer papéis, você me ensinou isso muito bem e todas as regras estúpidas e lições inúteis que me tive de cumprir desde criança.
— Você não muda... — Encarou fixamente meus olhos, tornando meu domicílio desagradável e ar rarefeito. Minhas mãos suavam e era difícil manter a respiração em seu compasso padrão, os dedos do meu pé se contorciam, dentro do possível, de nervoso. — Uma pu...
— Uma puta na rua, mas em casa fala grosso. Vai apelar para isso? — Ele negou com a cabeça repetidas vezes, o sorriso de nojo sendo endereçado a minha feição, e mesmo que ele não demonstrasse, trajava desgosto para comigo.
— Já vi que está muito bem.
— Estou... — Me aproximei dele, mantendo a feição neutra. — E respondendo a verdadeira pergunta, sim, eu irei trabalhar normalmente, não se preocupe, você me criou para dizer "sim" aos pedidos mais absurdos. A missão de tornar seu sobrenome a égide da minha vida foi muito bem sucedida, nunca duvide disso.
— Ao menos em algo eu acertei com você.
Permanecemos em silêncio, ambos em pé, indicando que a visita não iria se estender, afinal, repudio a presença de Alaweed desde que me disse "Você é uma puta que fala grosso dentro de casa" pela primeira vez.
Mesmo sendo irracional, ilógico e autodepreciativo, desejei que ele tivesse ido me ver interessado em mim e como me sentia, desejei que ele quisesse ficar e que pudéssemos partilhar algo, para que as lamúrias da minha adolescência se tornassem apenas um borrão turvo. Todavia, assim como no dia em que anunciei que sairia de casa, ele não interveio, deixando a terra arrasada ainda mais incapaz de prover o necessário.
— Bom, se é assim, considerando que já cumpri com meu papel de pai, eu vou embora.
— A porta da rua é a serventia da casa. — Sorri cínica a ele, e, assim como há anos, repetimos o mesmo enredo e os mesmos sentimentos de raiva, tristeza, rancor e insatisfação que sempre permeavam o nosso contato.
F I M D O F L A S H B A C K N A R R A D O P O R A I Y R A
Esfreguei meus olhos impedindo que as lágrimas se conjugassem e multiplicassem, visto que, assim como um represa, se há a possibilidade de vazão, e esta ocorre, todo o controle sobre a situação se torna nulo, e eu não podia — e não queria — perder o controle da situação.
Controlar a situação, era isso que eu precisava, dominar meus sentimentos e domesticar tudo ao meu redor para que os pilares alheios se tornassem os clássicos "sim's" que faziam meu sorriso largo deixar de ser esboço. E para isso, eu precisava me recompor.
"Shawn, bom dia. Por favor, passe na minha casa e me traga uma muda de roupa."
Quarenta e um minutos após a entrega da mensagem, o som de duas batidas leves fora ouvido.
— Bom dia. — Sorriu para mim e eu retribui. Seu cabelo um pouco molhado e a ausência da gravata indicavam que havia acelerado toda a sua rotina matinal para me atender. — Trouxe a sua roupa, e comprei café para você, suponho que não tenha comido nada desde ontem.
— Muito obrigada, estou precisando de ambos.
— Precisa de algo para agora?
— Agora não, vou comer e tomar banho, quando eu precisar de você, te envio uma mensagem no Teams.
— Ok. — Ajeitou o cabide com a minha roupa no sofá de couro preto, entregou o café em minha mão e deixou, em cima da mesa, uma sacola com o logo do mesmo local em que comprara o café.
— Shawn. — Afastei meus lábios do líquido quente. Ele virou o corpo na minha direção. — Você fica muito bem sem gravata. — Sorri largo.
— Eu saí de casa... — Se enrolou entre as palavras, suas mãos se mexiam de nervoso e, naturalmente, o som da minha risada penetrou o cômodo.
— Eu sei. Eu estava brincando com você. — Sorriu e concordou com a cabeça antes de sair da sala.
[...]
— Licença. — Pediu assim que entrou na sala. O relógio marcava quinze minutos para às nove horas, e eu havia terminado de fazer a revisão solicitada pelo meu orientador em minha tese há poucos minutos.
Mesmo sentindo minha cabeça latejar de dor e cansaço, tinha de finalizar todos os assuntos pendentes, e o meu suposto relacionamento com Shawn era uma pendência grifada em minha mente.
— Pode se sentar. — Me obedeceu sem contestar. — Você viu o e-mail?
— Sim. — Concordou com a cabeça excessivamente. — Também terminei de reagendar todos seus compromissos.
— Ótimo. — Sustentei minha íris em sua figura, que passeou o olhar ao meu redor. — Quero te fazer uma proposta. — Seus olhos focaram nos meus que lancinavam a luz e luxúria pelo poder que iria exercer sobre ele na minha tentativa de parecer algo que não era verossímil.
— E qual seria?
— Antes de dizer qual é, reitero que ela é direcionada a sua pessoa, não ao funcionário que mantém vínculo empregatício comigo. — Suas sobrancelhas franziram, provavelmente imaginara que era algo que tangia sua profissão.
Afastei o olhar dele apenas para abrir a segunda gaveta do lado direito da mesa, o envelope confeccionado a Saudi Aramco continha o contrato e mascarava seu caráter pessoal e relativamente, instável e sujeito a validação de terceiros.
— Leia, e o que tiver dúvida, pergunte. — Lhe estiquei o envelope juntamente com uma caneta preta.
Na tentativa de tornar aquele momento menos angustiante e vergonhoso, deslizava meus dedos sobre a tela iluminada. Contei vinte três minutos até que Shawn se pronunciasse, vez ou outra, senti seu olhar repousando sobre mim, mas não me ative a retribuir, era importante manter essa distância entre nós.
— Então... Por algum motivo, que não ficou muito claro, você vai me pagar o equivalente a quinze meses de salário, e teremos uma cláusula de confidencialidade sobre o presente instrumento?!
— E você vai fingir ser meu... — Me emudeci enquanto buscava sinônimos para o termo namorado.
— Namorado?
— Obrigada, eu estava me recusando a usar esse termo. — Ele sorriu, mas seu olhar ainda estava no contrato, ele tinha dúvidas, eu apenas não sabia quais. — Você entendeu o que eu queria, apenas quis fazer com que eu falasse.
— Por que está me propondo isso?
— Você realmente quer saber ou quer uma falsa justificativa para assinar? — Apoiei meus cotovelos na mesa. Sua astúcia havia me surpreendido, mas a minha não havia produzido impacto, ao menos, era a minha crença até que a caneta começou a deslizar sobre as páginas em rubricas e a sua assinatura se fez presente no local indicado.
Assim que o movimento da caneta cessou, fui invadida por um sentimento de dúvida e reflexão, por que nós dois havíamos feito o que fizemos? As coisas apenas tinham a proporção, que dê fato tem, porque autorizamos que elas se perpetuem e se mantenham dessa forma, e a minha atitude frente ao meu passado apenas reafirmava o poder que ele tem sobre mim.
Mesmo depois de trinta anos exercitando a minha habilidade de pensar em prol do meu bem-estar, meu cérebro produzia sinapses cujo objetivo sempre ia ao de encontro com os de meu pai; mesmo odiando suas posturas e atitudes, seu projeto em mim se efetivara de tal forma, que meu subconsciente refletia a sua postura me marcando como uma reafirmação da sua vitória sobre a minha individualidade.
— Por que assinou, foi pelo dinheiro?
— Foi por você. — Devolveu o contrato. — Não sei o que a fez utilizar esse meio, mas suponho seja por algo muito grande.
— Sei que foi pela sua irmã, mas ainda sim, você escolheu muito bem as palavras, eu quase acreditei.
— Eu não menti, Aiyra. O fato de ter assinado pela minha irmã não anula o fato de eu ter pensado em você. — Minhas cabeça tombou levemente à direita e meu olhar se reteve no homem de terno azul escuro a minha frente.
Tentar desvendá-lo seria um desafio que pretendia concluir com maestria nas próximas semanas.
E foi então, que na nossa primeira noite como, oficialmente e de forma vigente, namorados, constatei nossa primeira semelhança: sim's são nosso único poder delegado. Nossas vidas foram alicerçadas em prol de terceiros. Shawn fora incapaz de se recusar a assinar por não ter coragem de negar algo a outra pessoa, mesmo que o faça em detrimento de si mesmo, e eu institui o contrato que nos unia pois sou incapaz de desatar os laços que me prendem a Lindsay, e os invisíveis, que guiam meus ideias, a Alaweed.
gente do céu, se vocês soubessem o trabalho que me deu achar um separador que casasse com esse capítulo... chegou a ser mais difícil que escrever o próprio capítulo.
mas ainda sim me deu muito trabalho escrever esse capítulo, tive que quebrar a cabeça para construir o flashback e de ainda não ficou tão bom quanto eu gostaria, admito.
enfim, meu aniversário foi essa semana, mas cá está meu presente a vocês.
eu queria ter atualizado antes, mas esse mês está muito pesado emocionalmente para mim. eu ouvi e tive que passar por coisas que nunca acreditei serem necessárias, ora pela idade dos envolvidos, ora pela frivolidade da coisa.
de qualquer forma, espero que tenham gostado, escrever esse capítulo foi bem natural — depois que peguei o ritmo —, e admito ter dado uma boa risada mentalizando a Aiyra comentando sobre a gravata do Shawn. ah, e sobre a Aiyra, descobri esses dias que escrevia o nome dela errado, eu escrevia Ayira, quando na verdade é Aiyra.
a música é sobre a relação da Aiyra com o Alaweed, que teve MUITAS alterações da antiga versão para essa. novamente, espero que gostem, estou arriscando uma escrita ainda mais madura e um enredo mais bem desenvolvido.
p.s.: sim, eu amo fazer o Shawn fofo e bom moço, é mais forte do que eu rs
espero que gostem. não se esqueçam de votar e comentar : )
Valentina,
27 de novembro de 2020.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro