Quando o valor é dado em dinheiro mas o custo é emocional
25 de abril de 2024
Narrador Observador
Aiyra digitava em seu notebook em uma velocidade quase retrógrada, ainda sim, seu dedilhar era audível por toda a sala, seus dedos encontravam as teclas com a fúria de sentimentos reprimidos. Não havia dormido na noite passada, não se permitiu chorar, mas também não permitiu fechar os olhos com prévias de fantasias do passado.
Queria ter dormido por longas vinte e quatro horas, entretanto, não quis recorrer às vias medicinais, não queria compartilhar nada que Lindsay soubesse que já fizera uso, não que fizesse sentido, Lindsay ainda poderia descrevê-la, dissecar toda a sua complexidade e transformar a mulher de um metro e oitenta e um centímetros em um liame de falsas esperanças, medo e insegurança.
Alisou os dedos finos quando percebeu que estava refletindo sobre a loira, sua figura era como a de um devaneio, mas ainda mantinha na memória, em um local especial, cada toque e palavra que foram lhe foram endereçadas. Abaixou a única coisa que caracteriza aquela sala como sua, a foto de Joseph de beca no dia de sua formatura, sentia como se aquele olhar doce estivesse lhe julgando, quando na verdade, todos seus pensamentos eram produtos do excesso de tempo sem dormir.
— Boa tarde. — Shawn entrou na sala sorrindo. Já havia tentado conversar com a árabe no instante em que chegara, mas esta fechou a porta assim que o corpo esguio adentrou a sala.
Ela levantou o olhar de sua mão e ajeitou a postura na cadeira, apoiou seus cotovelos na mesa e sorriu, a respiração dele sofreu um descompasso. Adorava o poder que tinha sobre ele, mesmo não sendo positivo à ambos.
— Preciso que faça isso. — Esticou um bloco de papel a ele, que pegou as folhas. Teve conhecimento, por intermédio do pedido, que Aiyra não estava bem humorada, uma vez que a ausência de cumprimentos nunca permitia um panorama exato do humor dela, mas as ordens excessivas e estúpidas sim. Ela reafirmava sua postura e sobrenome através delas, eram sua sustentação nos dias em que se sentia nula, sozinha, amarga e desgostosa.
Shawn olhou por cima e soltou o ar de maneira calculada, para não gerar desgaste, mas era impossível não ficar exausto quando o primeiro pedido se referia a comida, visto que Aiyra tinha diversas restrições alimentares, alimentava-se com uma frequência mínima e com pratos de nomes quase impronunciáveis.
— Está tudo bem? — Ela meneou com a cabeça em uma medida afirmativa potestativa. Por puro reflexo, ele repetiu sua atitude, e quando ela passou a encará-lo com o olhar questionável, decidiu sair da sala.
Aiyra relaxou a postura na cadeira assim que a porta foi fechada novamente, suas costas doíam, seus olhos pesavam e sua mente lhe implorava para sentir tudo que estava reprimido, mas ela não conseguia se permitir, mesmo com a chave e a porta à sua frente, era incapaz de encaixá-la na fechadura e girar. Estava presa em um cômodo de dor e silêncio que havia preenchido para si, tinha ciência de que sair era a escolha mais racional, porém, não estava pronta para curar suas próprias feridas.
[...]
— Vamos? — Dylan disse animado. Sabia que o olhar vago da amiga era um indicativo de que a estabilidade que tanto admirava estava prestes a ser abalada.
Talal murmurou um "Sim" e o acompanhou, respondeu aos cumprimentos que lhe eram direcionados, sustentando uma postura inabalável fora de sua sala, o crachá que usava reforçava sua ligação com a persona que fora construída a partir do ideário de terceiros, mais especificamente, de seu pai e o desejo inexorável de provar que a filha era melhor que os sobrinhos.
O sentimento de vagueza era o que estava em destaque. No instante, sua mente pairava sobre diversos sentimentos pejorativos que sentiu, até que reviveu aquele sentimento, por breves segundos, quando ouviu:
— Seu cabelo está comprido... — Dylan interpelou uma comunicação, quase falha, quando analisavam o cardápio, apenas não foi falha pois permitiu que Aiyra entrasse em contato com uma memória que desejava apagar.
I N Í C I O D O F L A S H B A C K N A R R A D O P O R A I Y R A
Meus pés encontravam o chão em um ritmo compassado, carente e necessitado de ação. Minhas unhas estavam curtas, o que me permitia fechar a mão e aplicar uma força maior do que o necessário, estava infligindo dor de maneira indireta, como se fosse racional, ou útil.
O advogado à minha frente conversava com sua assistente enquanto esperávamos por Lindsay, e antes que eu pudesse me posicionar a respeito da morosidade dela, a porta se abriu.
— Ainda não entendi o que pode querer comigo. — Cuspiu as palavras com a mesma insensibilidade que largou a bolsa na cadeira ao lado que se sentou. Os advogados não se abalaram, talvez relações de divórcio exponham os feixes que a humanidade pretende esconder. — Oh, você cortou o cabelo. — Tocou a ponta dos fios que haviam sido cortados na tarde anterior. — Sempre dizem que uma mudança radical ajudava a superar o fim de um relacionamento, mas não achei que fosse o tipo de pessoa que segue conselhos de revistas.
Envolvi seu maxilar com a minha mão e fixei o olhar em suas pupilas, e por mais que eu não imprimisse força naquele toque, desejava. A soltei quando percebi que o toque teve uma conotação violenta e que as outras pessoas da sala haviam cessado a movimentação dos lábios.
O advogado então iniciou a explicação à Lindsay, utilizando termos que, com certeza, ela não tinha conhecimento. Detalhou de maneira clara o porquê seria interessante para ambas que ela me vendesse as porcentagens de alguns bens que constituíamos uma sociedade, entretanto, o sorriso de desinteresse permeava seu rosto sem marcas de expressão.
— Não vou vender minha fonte de renda. Achei que fosse óbvio para você, Talal. — Chamou-me pelo sobrenome, pois sabia que eu odiava ser chamada por ele, assim que o advogado terminou de explicar o processo de venda.
— Você é surda ou incapaz? O advogado acabou de explicar que assinaremos outro contrato caso venda sua parte.
— Tive de exercitar a minha capacidade de parecer prestar atenção, mas não o fazer quando casada com você. Seus assuntos sempre foram os piores.
— Talvez a sua capacidade mental que seja limitada, por isso preferiu ir transar com um cara mais novo que não terminou a escola. Uma pena que ele lhe trocou por alguém que o pudesse sustentar.
— Me dá essa merda dessa caneta. — Puxou da minha mão a que eu segurava, e então assinou conforme o advogado apontava. Observei cada traço que a sua pequena mão produzia no papel, a letra redonda, maior do que o tamanho de uma linha e o "L" delicado.
Finalizamos nossa sociedade que havia sido construída no século passado, uma vez que como não existia a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, e Lindsay se preocupava excessivamente com dinheiro, acabamos as estabelecendo para que não precisasse trabalhar. Além de ter sido um dos requisitos para a aceitação de minha pessoa pelo meu ex-sogro.
— Poderia ter sido mais generosa com a minha mesada. — Comentou quando a porta do elevador se fechou.
— Não me irrite, Lindsay.
— Por quê? O que irá fazer? — Insistiu em tocar meu rosto, mas afastei sua mão.
— Nada. Sabe disso. — Fixei meu olhar em seus olhos azuis, que não pareciam preservar sentimentos por mim. Enfim, o elevador encontrou o piso da garagem, e senti que não havia lei ou ordenamento que imperasse o fim de um sentimento. — As coisas podiam ter sido diferentes.
— As coisas são como devem ser. Você fez as suas escolhas, dessa vez, não pode comprar as pessoas.
— Nada disso foi escolha minha. As consequências do acaso não são de minha responsabilidade.
F I N A L D O F L A S H B A C K N A R R A D O P O R A I Y R A
Dylan encarava Aiyra esperando uma resposta, mas ela sorriu fraco, evidenciando que não havia prestado atenção, e que não tinha interesse em comentar sobre.
Desde a sucessão de eventos trágicos iniciados em 2019 havia mudado, sendo que a mudança visível a todos era o cabelo curto, sempre tivera apreço pelo cabelo comprido, mas subjugou isso quando viu seu mundo desabar em uma noite de domingo.
— Como está Olivia?
— Melhor, era apenas uma pneumonia, mas já foi ao médico. Está ansiosa para o casamento.
— Não achei que fosse levá-la.
— Não pretendia... Mas acho que já passei da idade de brincar com os sentimentos alheios e os meus.
— Fico feliz em ouvir isso. Já está pronto para conhecer a família dela e vice-versa?
— Step by step, Aiyra, step by step... — Brincou fazendo referência a música da banda favorita dela.
— Vocês já estão saindo há quanto tempo? Um ano e meio?
— Não faço ideia.
— Não minta para fingir desinteresse, sei que tem fixação por datas.
— Um ano e sete meses, quase acertou. — Se rendeu.
— Errei pelo mês que me escondeu.
— Você me escondeu seu relacionamento com seu assistente. — Brincou.
— Podemos ignorar esse plano falho, ao menos no horário de almoço?
— Só se me contar sobre o que estava divagando.
— Estava pensando que preciso cortar o cabelo, apenas isso. — Mentiu sem interesse em parecer verdade, o amigo retorceu os lábios em excesso para expressar que não havia acreditado em palavra alguma.
[...]
— Você já remarcou meus compromissos em virtude da minha viajem? — Perguntou a Shawn assim que entrou na sala, segundos depois de receber a mensagem no Teams.
Shawn nunca havia comentado, mas achava estranha a maneira como Aiyra sempre se referia as pessoas pelo nome, em especial, seus familiares. Alaweed era nome recorrente, devido a posição na sede, mas já os vira interagir em diversas ocasiões e o prenome dele sempre foi utilizaod para fixação da comunicação.
— Ainda não, tive alguns...
— Não precisa se justificar, apenas faça. — Meneou com a cabeça. Já havia trabalhado em cargos semelhantes e apesar de seus amigos desconfiarem quando falava, Aiyra era a melhor chefe que tivera, uma vez que sabia equilibrar a grosseria com a educação, além de estar ganhando mais que a maioria de seus amigos. O único ponto que repudiava era o horário de trabalho, entrava às 13:00 e saia às 22:00, mas sempre que via Aiyra durante a manhã dissipava as reclamações. Ela nunca fora uma pessoa matutina.
— Não se preocupe, terminarei isso ainda hoje, por enquanto só tive impasse no reagendamento com seu médico.
— Pode adiantar, e marcar de manhã, se preciso.
— Ok, mais alguma coisa?
— Sim. Sente-se. — Pediu e ele o fez em um ato mecanizado, já mentalizando hipóteses negativas sobre o porquê de seu corpo estar em contato com a cadeira. Encarou o espaço entre as sobrancelhas de Aiyra, achava seu olhar intimidador demais para conseguir sustentar suas íris castanhas por muito tempo. — Viu o e-mail que Joseph encaminhou?
— Não, — Mentiu. Havia visto todos os e-mails enviados pelo menino, mas não considerou apropriado contar sobre o casamento, ademais, acreditava veementemente que havia sido copiado no intuito, apenas, de que a mensagem chegasse à Talal. — Mas posso ver agora... Deve ter ido direto pra caixa de spam porque era e-mail externo, mas...
— Veja o e-mail, quero conversar com você sobre. Quero lhe fazer uma proposta. — Quando o ideal de proposta foi remontado Shawn encarou os olhos de Aiyra em um movimento ágil. Observou os olhos médios, mas quando o olhar foi distorcido pelo levantar da sobrancelha, encarou o chão em um pedido de trégua. Figuras de autoridade nunca impuseram medo ou algo do gênero nele, mas aquela mulher, que parecia uma barreira instransponível, o limitava e fazia com que experimentasse novas sentimentos.
— Posso ver agora, se quiser, assim já acertamos tudo antes da sua viajem.
— Amanhã. — Sorriu fraco, tentando acreditar que Shawn aceitaria tal proposta absurda e esdrúxula, e a custo de que? Se afirmava repetidas vezes e com entonação alterada que havia superado Lindsay.
No seu âmago sabia muito mais do aceitava sobre sua relação com a loira, e uma delas era a importância do dinheiro, tópico recorrente e fundante do contato entre elas após o término. Aiyra tentava se convencer que não sentia nada, e que o fato do seu dinheiro estar sendo aplicado em luxo para Gaia não a afetava, mas a afetava, aprendera a relevância do dinheiro nos relacionamentos mais dicotômicos de sua vida: com sua avó, quando descobriu que não era possível de pagar por saúde, e com Lindsay, quando descobriu que existem sentimentos que estão à venda, mesmo que a fatura faturada no imensurável, o sentimental.
Se questionou sobre a racionalidade da ação assim que as memórias de sua avó desaguaram sobre seus olhos, mas não se permitiu sentir, não queira sentir e acreditava que se ignorasse os sentimentos, deixariam de existir. Entretanto, era inteligente o suficiente para saber que estava prestes a abrir a porta que postergara durante anos, fazendo uso da mesma chave que a trancara, e que estava convidando um terceiro a conhecer sua vulnerabilidade.
Estava, novamente, diante de preços cifrados, mas que seriam debitados de sua alma, mas dessa vez havia ponderado sobre, e não permitiria que Lindsay reiterasse o controle que tinha sobre a mulher si. Estava pronta para ter de arcar com os custos, afinal, nada podia ser pior que os acontecimentos do de 2019 e 2021, ou ao menos, acreditava nesse postulado.
queridos, boa noite!
atualização de madrugada sendo que eu já devia estar no estado rem do sono (risos), entretanto, não estava conseguindo parar de pensar em como seria a estrutura desse capítulo, tão diferente da versão anterior, cujo título era "Luxo... E as minhas custas?". reescrever acaba sendo uma tarefa mais árdua do que escrever, eu acredito, uma vez que a imaginação fica limitada.
espero que gostem desse capítulo, trabalhei uma Ayira mais madura, ideal principal dessa nova versão, ademais, fiz uso do narrador observador porque a possibilidade para detalhes é muito mais quando usamos. sei que esse tipo de narração fica mais enfadonha, mas esse capítulo apenas podia ser descrito por meio da análise do íntimo, frequentemente negado, da Ayira.
e como vaso ruim não quebra, Lindsay já deu as caras, e sempre dá pior maneira possível. mas nessa versão ela será... diferente.
fiquei muito feliz com a recepção do primeiro capítulo.
tentarei atualizar entre uma e duas vezes no mês, porque a faculdade (ai como é dura a vida do estudante de direito rs) e o trabalho me exaurem. apesar desse ser meu refúgio.
caso gostem da minha escrita, recomendo "cicatrizes da alma", minha outra fanfic com o Shawn que foi respostada hoje ;) ela tem uma pegada mais adolescente e descontraída, é bem diferente, mas cada uma tem o seu charme rs.
por fim, espero que gostem. ah, não se esqueçam de votar e comentar, por favor!
com carinho,
valentina <3
21 de outubro de 2020
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