As vogais suprimidas do meu Abjad
Canadá, 06 de maio de 2024
Aiyra bin Talal
Addie repetia, entre sorrisos e alterações em seu timbre, sobre seus planos para a comemoração de vinte anos de casamento, devolvia seu entusiasmo com um sorriso inconclusivo, uma vez que meu interesse divagava por entre tudo que se referisse exclusivamente a mim.
A minha proficiência em diversos aspectos e línguas não me ajudava, apenas deixava minhas sensações mais arenosas pois as contrapunha com a ideia do não poder sentir algo. Os fantasmas de trinta anos atrás ainda me assustavam, mas a menina recentemente loira não podia recorrer ao colo de ninguém, a missão de compreender a equação mais complexa, que deriva da vida, fora outorgada de forma unanime a mim.
Atenta ao movimento de todos na sala, vi quando Dylan servira minha terceira taça de vinho e abriu os olhos de maneira expressiva pedindo para que fossemos embora. Um sorriso desenhou meus lábios pela necessidade, quase infantil, de companhia para fazer algo, mas, surpreendentemente, meu cérebro era incapaz de produzir qualquer sinapse cuja finalidade fosse depreciar o meu amigo, e sua companhia era o que mais queria no momento — além do silêncio de meu quarto. Concordei minimamente com a cabeça, o respondendo como se ainda estivéssemos na faculdade, e terminei o vinho tinto em menos tempo que devido.
— Se quer a minha opinião, Addie, vá a Granada. — Devido meu silêncio durante todo o jantar minha voz irrompeu as outras falas e reverberou pelo cômodo. As três mulheres e o namorado de Leah concordavam e esboçaram reações positivas a minha fala.
— Aiyra sempre tem as melhores indicações de viagem! — Riu empolgada e seu olhar estava atento ao celular, provavelmente, buscando mais informações sobre o país.
— Poderia abrir para nós? — Pedi mais próxima a ela. — Adoraria ficar mais, mas tenho de terminar algumas coisas antes de ir viajar. — Ela me acompanhou até a porta sem objeções. — Muito obrigada pelo jantar. — Agradeci.
— Não precisa agradecer por nada. — Ajeitou meu blazer, como Alaweed sempre fazia com qualquer roupa que eu usasse, com isso o sorriso complacente se desintegrou instantaneamente. — Sei que não está tudo bem... — Balançou suavemente a cabeça. — Três taças de vinho numa terça não são do seu feitio. — Sorri naturalmente, o conforto de ter quem compartilhar involuntariamente era acalentador. Seus braços rodearam meu corpo magro e depois se despediu de Dylan.
— Graças a Deus! — Levantou os braços em comemoração assim que entramos no carro. — Não aguentava mais ouvir sobre os vinte anos de casados e como ele se amam... — Gargalhei em resposta e mantive o sorriso. Pela primeira vez os fragmentos que turvavam meus pensamentos desapareceram e a rua pavimentada embalou uma conversa agradável, que me permitiu abstrair a goteira ininterruptível de dúvidas que havia sido desperta com a ligação de Joseph.
N A T A R D E D E S E T E D E M A I O
Estática. Era assim que estava enquanto encarava a porta marrom, minha boca havia parado de se movimentar há algum tempo mesmo eu não tendo descartado o chiclete. Havia algo fora do lugar e me fora ensinado que as coisas sempre devem ser corretamente ordenadas para que tenhamos sucesso. Alaweed acreditava na ortodoxia e seu impacto no mundo novo que estava tentando construir por meu intermédio, uma pena que toda a admiração se esvaiu pela falta de afeto.
Empurrei um pouco a cadeira com o pé pois Alaweed perseguia todo o fragmento de pensamento que eu era capaz de produzir. Meus dedos encontraram o telefone preto com o adesivo de identificação, que o tornava apenas mais um para a empresa, e cogitei discar o código saudita, contudo, não o fiz. Meus dedos chicoteavam o teclado branco sem que algo fosse representado na tela. Meu sapato social encontrava o chão ritmadamente e atmosfera parecia se comprimir... Era sufocante, mas não podia ser.
Um misto de ódio, rancor e mágoa embargavam meu ser e o cegavam a ponto de desejar cair de um arranha-céu. Um sentimento peculiar e repetitivo me imobilizava, meu corpo reagia de forma múltipla a ele, minha mente se contorcia e se conturbava com a insegurança, havia tanto há ser sentido que não era possível fazê-lo. Tudo era desejado e repudiado simultaneamente, um paradoxo indesejável de efeitos colaterais repudiáveis fazia morada em mim e eu não conseguia me comunicar comigo mesma, a minha sobreposição era falha, mas eu não sabia como curá-la.
Naquele instante, me sentia sufocada, como se o sentir fosse capaz de abraçar o infinito, me enjaular no sofrimento e me abandonar raquítica do ser eu.
Instantes infinitos de dores crônicas se perpetuaram, até que o ato decisivo fora embaralhado com o som de batidas na porta. Me recompus em segundos recordes, jogando fora o chiclete e apanhando as lágrimas que arriscavam contornar a parte baixa de meus olhos, mas não os deixar, minhas mãos deslizaram pelo meu cabelo para ratificar sua separação milimétrica. Meu aspecto havia sido normalizado, e a repetição do ato ínfimo, que é o trabalho, ajeitara uma parte da bagunça interna, pois não me permitiu visualizá-la.
— Boa tarde! — Shawn intercedeu radiante, o que não me surpreendia, afinal ele havia comentado sobre o casamento do Joseph como se fosse da família e esboçava uma familiaridade com o assunto. No começo havia me espantado, mas há alguns dias confessara ser um de seus sonhos se casar. De qualquer forma, ainda classifiquei sua ação como desmedida, mas ele sempre agira assim.
— Boa tarde. — Devolvi desinteressada. O adjetivo estava se tornando recorrente no meu ambiente de trabalho, o que me fazia desejar a chegada do memorando número onze e de dezembro.
Shawn sentou-se na cadeira e segurava o iPad na minha direção para que eu visse todos os meus compromissos. Diversas cores preenchiam o calendário e por breves instantes quis, genuinamente, retornar ao tempo em que o termo "trabalho" era apenas um conceito.
O dia em contato com o restante das equipes passou como um borrão. Minha voz imperava com o equilíbrio entre agressividade e sutileza de sempre, minhas atitudes pontuais e calculadas deslizaram e foram construídas por todos os espectadores que tive.
Quando o relógio encontrou o número seis, a maior parte dos funcionários passou a se retirar do prédio e na minha sala encontrei o cume em que eu passaria as últimas quatro horas. Analisei o título em prata fixado na porta de madeira "Doutora Aiyra bin Talal. Diretora-Presidente", estendi a mão direita no ímpeto de me reconectar a figura que devia ser apresentada, porém, o Talal ornava como algo desproporcional.
I N Í C I O D O F L A S H B A C K
O homem a minha frente exibia um sorriso nervoso enquanto eu pretendia ter algo a fazer quando, na verdade, apenas queria concluir algo sobre ele. Sua contratação era um postulado, se dependesse de mim, afinal, Mutaib estava desperdiçando sua capacidade de obediência e empenho, e bastara apenas três reuniões na sua presença para que eu percebesse isso.
— Doutora Talal... — Irrompeu o silêncio. Meus olhos o ampararam em seu terno poucos centímetros maior que a largura de seu corpo, bastara isso para que seu olhar se recolhesse e sua boca permanecesse estática, sua fala interrompida pelo meu olhar. Era uma das minhas coisas favoritas, sorri perfidamente.
— Não me chame de Doutora, a não ser que tenha lido minha tese de doutorado, ou de Talal visto que todos da diretoria compartilham o sobrenome. — Concordavam com a cabeça incessantemente. — Aiyra, pode me chamar assim.
— Na verdade, Doutora... — Arqueie a sobrancelha esquerda pelo título. — Eu li sua tese, tanto de mestrado quanto doutorado. — Minha expressão de coação se desmanchou com as palavras surpreendentes, e mesmo sendo incapaz de verificar a veracidade do fato, a alegação havia me surpreendido positivamente. — Admito não ter entendido muita coisa... — Riu, mas ainda estava nervoso, o movimento descompassado da camisa branca e a voz levemente mais aguda denunciavam. — A tese de mestrado é mais simples, e eu descobri que há recuperação de energia em refinarias. Confesso ter me surpreendido quanto a capacidade do infravermelho na tese de doutorado.
F I N A L D O F L A S H B A C K
Sorri ao lembrar desse dia, os títulos apenas me acompanhavam no mundo acadêmico, e mesmo considerando a sua requisição como um ato puramente megalomaníaco, gostava de ouvir o soar de meu nome acompanhado desse. Retornei a cadeira, sentido meus músculos rijos e tensos, tomei um relaxante muscular e uma aspirina para evitar que as dores se tornassem incômodas e atrapalhassem a viagem que ocorreria na madrugada.
Os pensamentos que deslocavam a órbita da vida não pareciam mais coerentes, e agora tudo soava como superficial. Sabia que a inércia instaurada pelo trabalho não seria suficiente para afastar permanentemente os sentimentos, mas momentaneamente era o necessário para que eu empenhasse minhas habilidades sociais para suportar Hana requerendo atenção e repetindo, como sempre fazia, a história de quando venceu o Miss Alabama com sete anos.
Era natural sorrir ao remontar Hana. Não a via há um período considerável, mas isso não a impedia de me mandar mensagens frequentemente e perguntar como as coisas estavam, e apesar de demorar mais que o usual para respondê-la, isso nunca foi um empecilho uma vez entrava em contato com mais frequência que Joseph. Talvez, por saber que eu não gosto de sua mãe desde que a conheci, há oito anos, em um restaurante na Arábia Saudita, e mesmo tendo as ajudado e evitado maiores problemas, visto que queria frequentar uma parte do restaurante reservada aos homens, ela sempre tecia comentários agressivos e munidos de ofensas a minha cultura.
A memória da garota loira fez com que eu deslizasse os dedos em busca da sua última mensagem, que eu não havia respondido, e o fazer. Em menos de um minuto ela me respondeu, mas não o fiz, pois o número de notificações estava desproporcional para a última vez em que o vira. Soltei o ar em uma quase risada ao constatar que a maior quantidade era de Lindsay, desde que Joseph teve sua "confirmação" de meu relacionamento ela passara a me mandar mensagem inconvenientes em todos os meios de comunicação possíveis, e como em nenhuma a temática era Andrew e sua filha de um ano e meio, Dana, a ignorava.
No instante em que soube do relacionamento entre Lindsay e Gaia, que se iniciara em dois mil e dezesseis, quando ainda tínhamos um relacionamento, meu ser foi transmutado pela ira, porém, depois de ponderar em uma noite de insônia sobre, vi que a questão não era o retorno de Lindsay, até porque voltamos a nos falar poucos meses depois do divórcio porque Andrew teve uma overdose no restaurante em que trabalhava, a questão era o que acontecera no passado e a impossibilidade de anulá-lo. Ela havia me negligenciado e subjugado a minha dor, usando de amparo sua família, quando, na verdade, ela que se recusava a me abrigar num momento de vulnerabilidade.
Em uma terça-feira a noite foi embora de Riade. Quatro meses depois evitava minhas ligações usando a premissa que o fuso horário complicava a comunicação. Um ano depois apenas nos falávamos em ocasiões especiais e em dois mil e dezenove, último ano em que residi no local em que nasci, nos falamos apenas uma vez, porque ela ligou para desejar feliz aniversário ao filho e o fez para mim.
Seus olhos verdes apenas capturaram as construções sauditas por dois meses, e já fora suficiente para que necessitasse voltar a civilização ocidental. No fundo, ambas sabíamos que ela não queria tentar e eu estava empenhada demais construindo relações com representantes de grandes farmacêuticas para que o paliativo da esclerose múltipla de Qubilah melhorasse sua qualidade de vida e aumentasse sua longevidade.
A memória da mulher, que me acolhera após a primeira vez que devolvi uma frase de Alaweed no mesmo tom, fazia com que eu sorrisse. Ela fora a primeira a me ver como uma pessoa, com direitos e deveres, e sua pequena casa de três quartos era mais confortável e acolhedora que os intermináveis corredores de onde cresci. Me mudei para lá depois de Thurayya convencê-lo e eu me comprometer a seguir sua rotina com mais empenho, e assim o fiz, assim como tingi o cabelo no segundo mês de liberdade provisória e ganhei uma roupa que não fosse branca, preta ou cinza. Era um vestido roxo que minha avó, ela sempre foi a única que chamava por termos familiares, apesar de não ser da minha árvore genealógica, havia costurado para mim.
O cheiro do gahwa que ela sempre fez quando recebíamos visitas causou uma onda de felicidade nostálgica. Lágrimas desfilaram em meu rosto de saudades. Como gostaria que ela estivesse aqui para poder ver Joseph se casar e a defesa da minha tese de pós-doutorado... Tenho certeza de que estaria orgulhosa. Seus lábios finos me cobririam de beijos, mesmo eu me esquivando, e ela faria carneiro para a celebração.
Revivi o luto por algum tempo, mas as lágrimas secaram e retornei ao trabalho, finalizando as medidas de emergências para o navio que continuava parado na Grécia devido a problemas. Meus dedos ágeis questionavam o Diretor de Operações de Darã quando o cheiro de cardamomo me elevara a um mundo em que isso era frívolo. Pouco tempo depois o motivo da minha atenção entrara na sala, envolto pelas mãos de meu assistente.
— Trouxe para você. — Me entregou o copo. — Chá de hal e tâmaras. — Colocou a embalagem em cima da mesa. — Bem, você não saiu para jantar hoje...
— Muito obrigada. — Sorri. O calor e o sabor característicos me fizeram fechar os olhos, era a minha primeira refeição do dia e tâmaras evitariam que eu precisasse ter uma segunda.
— Está ansiosa para amanhã? — Perguntou no tom animado que contrariava o horário exibido pelo meu relógio: nove e vinte e dois.
— Sabia que estava querendo perguntar sobre isso... E a sua resposta é sim. Estou ansiosa e feliz.
— E... Bem, sobre... Quero dizer... Sobre aquilo... — Se referiu ao contrato e nosso relacionamento que estaria vigente em horas, não pude evitar uma risada natural pela discrição quase tola com que tratava o assunto.
— Não se preocupe. Aja naturalmente e tudo correrá bem... — Concordou com a cabeça. — Apenas seja mais ágil para as respostas incisivas para Jessica, mãe de Hana, tenho certeza de que fará comentários rudes.
H O R A S M A I S T A R D E
O sol começava a retumbar minimamente no céu e as janelas de vidro do aeroporto permitia que a iluminação permeasse o ambiente. Dylan estava ao meu lado comentando sobre diversas coisas, estava eufórico como se fosse sua primeira vez num avião. O embarque seria em poucos minutos e meus olhos pesavam de sono, porque evitei dormir no intuito de o fazer no avião, visto o medo que tenho da altitude.
Assim que o homem de barba baixa e olhos fundos passou a acenar na direção oposta soube que tudo estava mais perto de se materializar. Shawn havia chego, atrasado. O embarque foi anunciado, ouvi as trombetas angelicais da divindade ressonarem em minha mente noticiando que, a partir daquele instante, tudo seria diferente, e eu estava precisando de uma mudança.
olá. como vão?
atualização do mês. em dezembro não tive forças porque aproveitei para descansar de quase tudo...
espero que gostem desse capítulo. escrevê-lo foi... enigmático. no começo não estava tão embalada, mas poder escrever sobre os sentimentos diversos da relação familiar fez com que a tarefa ficasse muito mais fácil, e uma quase necessidade. (os olhos até lacrimejaram ao escrever sobre Qubilah)
adorei ter que pesquisar mais sobre o país de origem da aiyra : ) aprendi muito e como a ideia dessa nova versão é ser mais madura, espero conseguir retratar toda essa questão cultural com maior densidade.
sei que querem mais ayira x shawn, mas quero abordar mais o entorno da vida dela, trazendo mais pessoas. ademais, eu sou apaixonada pelo dylan 🥰 ele é tão engraçado (outra vibe que vou tentar trazer pra fic...). enfim, no próximo capítulo vai ter muito os dois pra vocês ❤️
nesse capítulo tem um pouco de tudo: easter egg pro desfecho da fic, referências a música e ao livro admirável mundo novo. quando a aiyra diz querer cair de um arranha-céu é referência a um poema meu, que se chama "arranha-céu" e se encontra no livro "o que está dentro é o coração" 🥺
espero que tenham gostado, porque eu amei rs acho incrível como a aiyra me fascina e surpreende mesmo sendo produto da minha mente 😳
se puderem, ouçam ao som dessa música.
this pain wouldn't be for evermore.
MEU DEUS! Não posso deixar de agradecer pelas mil visualizações... Meu coração fica quentinho vendo a história crescer. Escrever é minha grande paixão e ver isso crescendo me proporciona uma felicidade inenarrável.
por causa do 1K — e também porque eu sempre imaginei a aiyra o misto da phoebe thonkin com a michelle barros —, usei o artbreeder e fiz a nossa Doutora Talal rs sintam-se livres para imaginar como quiserem, mas eu amei o resultado e senti que era exatamente o que buscava, por isso, vou deixar a fotinho aqui pra vocês:
ah, feliz ano novo! que esse ano traga coisas muito boas como: vacina, aulas presenciais e saúde. 🤩
é isso. mais uma vez: espero que gostem. votem e comentem! amo vocês ❤️
valentina,
10 de janeiro de 2021
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro