Capítulo 3
2633 palavras
"Em meio à devastação, descobri que a vida não só persiste, mas floresce; e talvez eu encontrarei a força para florescer também."
Acordo em uma sala mal iluminada. A luz amarelada das lâmpadas piscando reflete nas paredes descascadas, tingidas de um verde sujo e corroídas pela umidade. O cheiro penetrante de desinfetante mistura-se com o odor metálico de sangue e o mofo enraizado no concreto velho. Ao meu redor, quatro camas de ferro rangem à menor brisa, mas apenas a minha está ocupada. O colchão, duro e manchado, comprime minhas costas, enquanto o silêncio se rompe com o gotejar irregular de um cano furado.
Sinto algo frio e incômodo na minha mão esquerda. Uma agulha, presa por esparadrapo, está conectada a uma bolsa de soro pendurada ao lado. O líquido goteja de forma constante, mas me sinto mais alerta, menos fraca do que antes. Quanto tempo será que dormi? Então, a realidade me atinge com a força de uma marreta: meu pai. Eu o abandonei. O deixei para apodrecer e ser devorado por animais. A dor dessa lembrança é insuportável, sufocando meu peito. Lágrimas quentes correm pelo meu rosto, e uma onda de culpa me consome.
Minha respiração se torna irregular, meus pulmões parecem incapazes de puxar o ar. As lágrimas se transformam em soluços espasmódicos. A dor se converte em raiva, uma raiva selvagem que sobe como fogo pela minha garganta. Quero gritar até não restar mais voz. Quero bater nas paredes até meus punhos se desfazerem em sangue. O desconforto da agulha se torna insuportável, um intruso cravado na minha pele. Num acesso de fúria, arranco-a de uma só vez, sentindo uma pontada afiada enquanto o sangue brota da ferida recém-aberta.
Derrubo o suporte do soro no chão com um movimento brusco, o metal retinindo contra o piso frio. O som ecoa pela sala vazia, mas não alivia a tempestade dentro de mim. Puxo meus cabelos com as duas mãos, os dedos tremendo, tentando agarrar o que resta de sanidade. Preciso me acalmar, mas o desespero está devorando o que sobrou de mim. Não sei onde estou, quem são essas pessoas ou por que estou aqui. O mundo é um borrão indistinto, girando ao meu redor enquanto luto para manter algum controle.
Uma memória surge, clara e cruel. O retrato. Meu coração dispara, e uma nova urgência toma conta de mim. Preciso dele. Procuro com os olhos ao redor, o olhar ansioso varrendo cada detalhe até que finalmente o vejo, descansando sobre a mesa ao lado da cama. Lá está ele, ligeiramente inclinado, intacto. Ignorando a dor na mão ferida, estico o braço e agarro o retrato com força, segurando-o contra meu peito como se ele fosse a única âncora que me resta. O vidro frio e liso contrasta com o calor de minhas lágrimas.
— Eu só queria você aqui, pai... — sussurro com a voz trêmula, cada palavra saindo como um lamento. Minhas lágrimas encharcam a fotografia, borrando a imagem. Meu corpo se encolhe, os soluços escapando em ondas enquanto abraço a foto como se ela pudesse me proteger do vazio. Sinto-me tão pequena, tão indefesa. Queria que ele estivesse aqui, me dizendo que vai ficar tudo bem, como fazia quando eu era criança. Mas ele se foi. Estou sozinha. E preciso sobreviver.
Respiro fundo, tentando controlar o choro. O peito dói com a força da saudade. Aperto o retrato ainda mais forte, buscando nele algum conforto. Não posso me permitir desmoronar. Não agora. Não com tudo o que ainda não sei. Essas pessoas não parecem hostis, mas ainda não confio nelas. Estou presa em um limbo entre o medo e a desconfiança, tentando entender onde estou, por que me salvaram, e o que vão fazer comigo.
Mas uma coisa é clara: estou por conta própria. Preciso ser forte. Mesmo que a dor me dilacere, mesmo que a raiva tente me dominar, tenho que seguir em frente. Surtar não é uma opção.
Ouço passos se aproximando do corredor. Sento-me na cama, encostando-me na cabeceira, e coloco o retrato de volta na mesinha ao lado. Minha mente está alerta, esperando o que vem a seguir. A porta se abre e a comandante Hange entra, acompanhada por um homem de cabelos castanhos repartidos ao meio. Ao me ver, ele solta um suspiro, e seus olhos castanhos revelam uma preocupação velada. Talvez ele esteja preocupado com a bagunça que fiz com o soro e com meu estado deplorável.
Hange está colocando um jaleco branco sobre suas roupas pretas, talvez um uniforme de trabalho. Ela limpa a garganta antes de se virar para mim.
— Que bagunça você fez aqui, hein? — pergunta, seu sorriso estranho tentando amenizar a tensão. Eu permaneço em silêncio, observando.
— Moblit, prepare os materiais para fazer o curativo nela. — Hange se aproxima, estendendo a mão como se pedisse permissão para me tocar. Mostro minha mão sangrando, e ela a pega com cuidado, examinando-a com um olhar profissional. Não tenho certeza do que pensar sobre ela ainda. Parece uma boa pessoa, mas a confiança não vem fácil.
— Não foi nada sério. Imagino que tenha doído mais quando você arrancou a agulha do que agora, estou certa? — Hange tenta um tom reconfortante, e eu assinto lentamente, sem palavras.
Moblit entra com os materiais e se posiciona em silêncio, observando enquanto a comandante prepara o curativo. A atmosfera na sala é tensa, e o cheiro de desinfetante se mistura com o aroma metálico do sangue.
— Acho que você já está bem o suficiente para receber alta — Hange diz ao se levantar. — Como viemos sem bagagens, vamos providenciar roupas limpas para você.
Sinto um suspiro de alívio escapando de mim, e reúno coragem para falar.
— E... onde eu vou ficar?
Hange me olha, o sorriso se ampliando.
— Então você sabe falar. Não se preocupe, conversaremos sobre isso mais tarde. Vou providenciar suas roupas e volto aqui, ok?
— Ok — respondo, observando enquanto Hange sai da sala com Moblit. Antes de sair, Moblit me lança um sorriso tímido, que parece genuinamente gentil. Ele também parece ser bom. Estou tão confusa. Não sei onde estou nem como confiar em ninguém aqui.
O ambiente continua abafado, e o cheiro de desinfetante persiste, quase como se tentasse limpar o ar da tensão que ainda paira. As perguntas giram na minha mente sem resposta, e a sensação de estar em um território desconhecido só aumenta minha inquietação. Eu preciso me manter calma e avaliar o que está acontecendo, mas a insegurança é palpável.
Após um tempo de silêncio na enfermaria, a comandante Hange retorna, carregando algumas roupas. Ao entrar, ela coloca as roupas na mesinha ao lado do retrato.
— Trouxe essas roupas para você. Espero que sirvam — diz, e permanece me observando por um momento, o que me deixa desconfortável.
— Tem algum lugar onde eu possa tomar banho? — pergunto, mexendo as mãos nervosamente.
— Claro, trouxe uma toalha para você também. O banheiro fica naquela porta — ela aponta para uma porta de madeira branca que eu ainda não havia notado.
Levanto-me, pego as roupas e sigo a comandante até a porta do banheiro.
— Leve o tempo que precisar — diz ela, com um tom encorajador.
— Tudo bem, obrigada — respondo, entrando no banheiro.
Ao fechar a porta, olho ao redor. O banheiro é simples: um chuveiro velho, uma privada branca encardida, uma pia com um pequeno armário embutido e um espelho. Quando olho para o espelho, suspiro de desgosto. Estou um desastre. Meu cabelo está bagunçado e sem forma. Meus olhos estão inchados e vermelhos, com olheiras profundas. Estou tão magra que até a cicatriz em meu pescoço parece menos pronunciada, o que é um pequeno consolo. No entanto, meu pai parece estar sempre à minha frente, distorcido no reflexo, e isso doi.
Mas não adianta. Nenhum esforço pode trazê-lo de volta, nenhum lamento mudará minha realidade. Preciso me concentrar em sobreviver aqui.
Tiro o pijama da enfermaria e vou até o chuveiro, ligando-o. A água está na temperatura perfeita, nem quente nem fria. Já tinha esquecido como é bom tomar um banho decente. Poderia ficar ali por uma hora ou mais, mas infelizmente não posso. Lavo meu cabelo, que agora tem um leve aroma de morango. Após me enxugar, olho as roupas que a comandante trouxe: duas calças pretas simples, duas blusas sem estampas, uma branca e outra preta, e um vestido rodado com estampa floral azul bebê. Decido usar a calça e a blusa branca. A calça está um pouco frouxa, mas não vejo problema.
Ao sair do banheiro, Hange ainda está lá, me aguardando. Ela me examina e sorri.
— Ficou ótimo em você. Peguei uma bolsa para guardar suas coisas. Gostaria de dar uma caminhada? — pergunta, o convite sendo um pouco inesperado.
Olho para ela, pensativa, e então assinto lentamente. Hange sorri amplamente e abre a porta.
Guardo minhas novas roupas na bolsa, junto com o retrato, e sigo Hange para fora da enfermaria. Ao sair, percebi que estou em um quartel militar. Soldados fardados, com armas penduradas nos cintos, caminham pelo local, cumprimentando Hange com acenos e sorrisos. O quartel é grande e parece bem seguro. Dou uma última olhada para trás, admirando a estrutura e a organização do lugar.
Olhando ao redor, prendendo o fôlego. Os prédios deteriorados e as casas antigas de madeira e concreto enchem as ruas, enquanto carros velhos e enferrujados repousam. É estranho, mas há uma beleza inesperada neste lugar. A ideia de como conseguiram criar e manter uma comunidade aqui, em meio a tanta devastação, é admirável. É notável que ainda tenha água encanada e energia, mesmo que esta última seja fraca.
Pessoas caminham pelas ruas, e crianças brincam e sorriem. Um muro alto feito de metais e destroços cercando a área lembra-me de uma fortaleza. Soldados em uniformes fazem continência para a comandante Hange. Há vida aqui, em meio ao que parecia ser um cenário desolador.
— Como...? — pergunto, tentando compreender a magnitude do que vejo.
Hange me olha e sorri de lado, um sorriso que revela um orgulho contido.
— Como construímos uma sociedade? — pergunta ela, e eu assinto. — Após um ano de quarentenas inúteis, as pessoas continuavam a morrer. Não havia progresso na busca pela cura. Sob a liderança do ex-comandante Erwin Smith, começamos a realizar triagens e testes para identificar os saudáveis, enquanto outro grupo organizava a cidade. Após dois anos, conseguimos transformar este lugar, como você vê. Ainda há espaço para melhorias.
— Isso é incrível. Todas essas pessoas... — digo, emocionada, um sorriso triste se formando no meu rosto. É um alívio ver tanta vida preservada.
— Três cidades formam os três distritos para melhor supervisão, cercadas por muros — continua Hange. — Este é o Distrito Sina, responsável pela produção de alimentos e sua distribuição entre os distritos. Temos campos vastos com plantações que sobrevivem em meio ao solo desgastado, galpões improvisados e currais para gado, porcos e aves. Os outros distritos são o Maria, responsável pelos estudos científicos e pela busca de cura e prevenção contra o Khaos1, e o Rose, encarregado da fabricação de armas e munições. Erwin foi eleito líder deste distrito.
— Uau — respondo, sem palavras. Meu coração se aperta ao pensar que meu pai nunca verá isso. Um homem passa ao meu lado, brincando com sua filha, que deve ter uns três anos. Observo-os enquanto caminham, um sorriso triste estampado no meu rosto.
— Sinto muito pelo seu pai — diz Hange, com uma expressão de empatia genuína. — Mas, se aceitar um conselho, não se agarre ao passado. Você recebeu uma nova chance. Acho que ele ficaria feliz se você aproveitasse ao máximo.
Hange parou em frente a uma pequena praça. A grama, surpreendentemente verde e bem aparada, contrastava com o ambiente decadente ao redor. Um parquinho de madeira desgastada, com balanços que rangiam suavemente ao vento, ficava no centro. Bancos de madeira estavam dispostos ao redor, enquanto os prédios altos em torno lançavam sombras que tornavam o lugar aconchegante, quase acolhedor. Nos sentamos em um dos bancos, e meus olhos se perdem nas crianças brincando. Elas correm e riem como se o mundo não estivesse em ruínas lá fora. Por um instante, minha mente vagueia. Me pego imaginando como seria se o maldito virus nao existisse, sem o peso de perdas ou medos constantes. Talvez em outra vida.
— Sabe, você pode decidir o que fará a partir de agora — diz Hange, interrompendo meus pensamentos. Ela me olha com um sorriso leve, mas há algo de sério em seu tom. — Você pode se alistar como cadete e entrar no treinamento militar.
Ela me encara, esperando minha reação, mas tudo o que sinto é um aperto no estômago. Eu nunca pensei em me juntar a um exército, em treinar para lutar. A ideia é assustadora, mas, ao mesmo tempo, há algo nela que me intriga. Uma parte de mim se pergunta se é nisso que vou encontrar alguma sensação de propósito. Hange continua, vendo minha indecisão.
— Bom, também tem as fazendas. Passar o dia limpando cocô de animais parece uma alternativa boa, não acha?
Faço uma careta, e Hange ri com gosto. Ela realmente acha que isso soa atrativo? Nem consigo imaginar me afundando em lama e sujeira todos os dias.
— Ou, se preferir, eu posso treinar você para ser médica e cientista como eu. Quem sabe você não descobre uma cura para o Khaos1? — Ela sugere com um brilho nos olhos, quase esperançosa.
Meu estômago se revira ainda mais. A ideia de ser médica... não, isso definitivamente não é para mim. Eu mal consigo lidar com minhas próprias dores, como eu poderia suportar a responsabilidade de cuidar dos outros? A verdade é que a ideia de carregar o peso de vidas nas minhas mãos me aterroriza. Depois de tudo o que perdi, a última coisa que quero é me envolver com mais sofrimento. Preciso de algo que me mantenha focada e distante da dor alheia. Não estou pronta para isso. Não quero me afundar em tragédias que não consigo consertar.
Fico em silêncio, avaliando as opções. Nenhuma delas parece simples, mas a ideia de me alistar e treinar para lutar começa a fazer sentido. Talvez seja o caminho mais difícil, mas também é o que parece oferecer uma sensação de controle, algo que eu perdi há muito tempo. Mesmo com o nó na garganta, sinto que essa pode ser a chance de encontrar um novo rumo, uma nova força. A decisão me deixa ansiosa, mas acho que não há como fugir.
— Eu... acho que vou me alistar. — Digo, a voz saindo mais frágil do que eu gostaria.
Hange sorri, genuinamente animada com minha escolha.
— Ótimo! Vou garantir que você tenha o melhor treinamento possível. Vamos falar com o comandante Ackerman agora mesmo.
— Agora? Eu acabei de acordar, ainda posso estar fraca... — Tento protestar, mas Hange me corta antes que eu termine.
— Bobagem, eu já te dei alta. Você está saudável, só precisa descansar um pouco mais e sua aparência cansada vai melhorar. — Ela diz, com uma confiança que me desconcerta.
Ela já havia previsto isso? Hange esperava que eu escolhesse essa opção desde o início? Engulo em seco, sentindo o peso da decisão cair sobre mim como uma âncora. Esse é o começo de algo completamente novo. Sem meu pai, estou sozinha, e essa escolha parece ser meu único caminho.
Enquanto caminhamos de volta ao quartel, tudo ao meu redor parece muito mais imponente do que antes. Os muros de concreto, reforçados com arame farpado, agora me cercam como uma fortaleza. O enorme portão de entrada, feito de metal recuperado, é equipado com um sistema de travamento manual robusto, quase intimidador. Me sinto pequena diante de tanta estrutura.
Dentro do quartel, a sensação de vastidão é ainda maior. Os corredores ecoam a cada passo, as paredes frias de concreto refletem uma atmosfera rígida. Meu estômago se revira em nervosismo enquanto sinto as mãos suarem. O que estou prestes a enfrentar? Não sei, mas não posso recuar agora.
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