Capítulo 8
— Merda, você ficou muito bêbado — Balthazar ria enquanto dava tapinhas no ombro de Soen. Cada tapa fazia o corpo do príncipe chacoalhar, e aquilo era como uma martelada em sua cabeça dolorida.
— Por que você não me parou? — Soen reclamou enquanto adentravam nos portões do castelo.
— Você sabe que é impossível te parar quando começa. E pelo menos ela não tinha algo a mais entre as pernas, desta vez — ele comprimiu os lábios em um sorriso sorrateiro.
— Faria alguma diferença, caso tivesse?
— De maneira alguma — Balthazar deu de ombros. — Eu não me tornei um desgraçado cheio de sífilis dormindo apenas com mulheres, afinal.
A dupla seguiu pelos longos corredores de pedra lisa enquanto Balthazar refrescava a memória de seu sobrinho em relação à noite anterior, cuja maioria das informações a bebida fizera o favor de apagar, e Soen deixou que ele o acompanhasse até os aposentos do Conselheiro do Rei. Seria a hora de encará-lo, e por mais que o herdeiro do trono teria preferido fazer aquilo com um pouco menos de ressaca, decidiu que não adiaria tal confronto por nem um minuto a mais.
Após a breve caminhada rumo a uma das torres principais do castelo, eles chegaram às enormes portas de carvalho escuro, guardadas por três soldados equipados com a armadura completa da Guarda Real.
Suas capas esvoaçantes em um tom profundo de vermelho, como sangue envelhecido, exibiam o brasão dos Blackthorn: um escudo com uma rosa gravada no centro, cercado por uma alcateia de lobos ferozes e ramos de roseira repletos de espinhos que se enroscavam nos animais e na coroa que repousava sobre o escudo. Os soldados das extremidades seguravam lanças brilhantes, e o do meio empunhava uma espada longa.
— Temos ordens para não permitir que ninguém entre — o guarda do meio informou.
E antes que ele terminasse de fechar a boca, a espada de Soen já estava entre os seus dentes, atravessando sua nuca e perfurando superficialmente a porta logo atrás.
Balthazar fez uma cara de nojo quando Soen retirou a lâmina, respingando propositalmente um pouco de sangue no rosto de seu tio.
Os outros dois guardas fizeram menção de erguerem suas lâminas, mas o irmão do rei se antecipou, fezendo questão de deixar clara a posição de seu sobrinho. — Vocês se atrevem a erguer suas armas contra o Príncipe Herdeiro? Enlouqueceram? Desejam acabar na forca?
Um deles gaguejou. — Mas... O príncipe acabou de assassinar o Comandante...
— Sim, eu o matei. Gostaria de ser o próximo?
Balthazar limpou o sangue dos olhos com as mangas e lançou um olhar de quem mandaria Soen parar, se pudesse.
— Veja bem, seu comandante acabou de chamar o futuro rei de ninguém! Ninguém poderia entrar? Como se eu fizesse parte desta classificação.
Antes que um dos guardas restantes pudesse pronunciar uma palavra, os primeiros sinais de aflição pulsando fracamente em seu rosto treinado, um estrondo ecoou pelo corredor.
Em um rompante, as portas de carvalho se escancararam, fazendo as dobradiças rangirem como se estivessem sendo torturadas. O Conselheiro do Rei surgiu na entrada, lançando seus olhos glaciais em Soen e encarando-o por um longo instante, sem nunca desviar o olhar para o seu guarda morto em uma poça de sangue no chão.
— Vossa Alteza — ele fez uma breve reverência para o herdeiro do trono e em seguida outra para Balthazar.
— Garon, meu amigo. Há quanto tempo, não? — Soen deu ao homem um sorriso que não era nem de longe amigável.
— Vossa Alteza tem algo para tratar comigo? — ele perguntou educadamente.
— Sim. A sós — o rosto de Soen se fechou em um olhar sombrio, por mais que seus lábios ainda estivessem curvados para cima.
Parecia que até o homem morto em frente ao Conselheiro do Rei podia perceber a vontade que Soen sentia de assassinar aquele velho. Antes, não havia como ter certeza de que ele era mesmo um bruxo, mas não havia mais dúvida alguma para Soen naquele instante. Garon sabia de tudo o que tinha acontecido e nem se incomodou de olhar para o seu próprio homem sem vida à sua frente.
Soen suspeitava que ele já tivesse visto o guarda assassinado antes mesmo do homem ser morto, o que seria bom, na verdade. Talvez o Conselheiro Real cooperasse mais facilmente, caso fosse capaz de saber o que aconteceria se não o fizesse.
— Bom, então me retiro — Balthazar colocou a mão no ombro de seu sobrinho e lançou um olhar que dizia para ele não matar mais ninguém.
Soen o ignorou enquanto guardava sua espada na bainha e passava por Garon, adentrando nos seus aposentos.
O interior do escritório do Conselheiro Real era aconchegante, com um fogo avivado sobre a lareira, assentos confortáveis bem próximos às chamas e tudo perfeitamente arrumado em seu devido lugar. Garon se sentou atrás de uma grande escrivaninha escura que continha pilhas de documentos acumulados, e então indicou a cadeira de estofado vermelho vinho logo à sua frente.
— Eu apreciaria se fôssemos direto ao ponto, Alteza. Tenho muito trabalho para hoje.
— Está muito ocupado? É uma pena. Temo que você precisará arranjar algum tempo para desfazer a maldição que lançou sobre Yenned, se não quiser que eu queime seus testículos na sua lareira — Soen olhou casualmente para o fogo.
A expressão tranquila de Garon foi imediatamente alterada para um par de olhos surpresos.
— Perdão? Príncipe Herdeiro, eu não sei do que está falando — ele tentou forçar uma sutil preocupação pelo estado mental de Soen em seu tom de voz.
Soen sequer piscou. Ficando de pé, ele desembainhou sua espada manchada de sangue e fincou a lâmina nos manuscritos imaculados sobre a mesa, rasgando e manchando os papéis.
— Tente me fazer de idiota de novo, Garon, e não haverá mais avisos para você. Sei que tentou me prender na merda do corpo de um gato.
— Vossa Alteza, eu não...
— Ah — Soen o interrompeu, juntando os fiapos de sua parca paciência, coisa que a ressaca não cooperava muito. — Não me faça arrancar a verdade de você do jeito difícil.
Era visível que Garon queria contestar, mas sabiamente se manteve em silêncio enquanto Soen voltava a se sentar e recostava as costas no encosto macio da cadeira, se permitindo relaxar.
Ele poderia lidar com o feiticeiro, já que podia ver claramente como o homem sabia que Soen o mataria sem hesitar um instante. Assim como o Príncipe Herdeiro sabia que o Conselheiro Real poderia matá-lo com a mesma facilidade, se uma oportunidade surgisse. Depois do escândalo no corredor e do guarda morto, não seria difícil para ele alegar que Soen enlouqueceu e que ele foi obrigado a pará-lo.
— Não se dê ao trabalho de negar. Eu sei de tudo — Soen prosseguiu.
— Você não sabe nada — Garon disse bruscamente, e em seguida se recompôs. — As coisas não são como Vossa Alteza supõe.
E lá estava a especialidade de Soen. Por mais que não funcionasse muito bem em Yen, ele era muito eficiente em tirar qualquer um do sério. Daquela forma, arrancar até mesmo algumas informações extras de Garon não parecia tão difícil naquele momento.
— Eu sei o que me interessa. O resto eu posso descobrir quando sentir vontade — ele encarou os olhos do conselheiro com indiferença. — Então vamos ser sinceros: você pegou o cara errado. E, de qualquer modo, eu já estou amaldiçoado. Então faça um esforço, vamos nos ajudar.
— E por que você iria querer que eu salve o príncipe Yenned? Você sempre o odiou. Ou será que agora gosta dele? Você, de todas as pessoas, deixaria um ponto fraco se enraizar em sua vida? Não seria melhor se ele morresse? — Garon sussurrou como um fantasma sedento por vingança. Soen podia sentir a feitiçaria de suas palavras impregnarem o ar como fumaça, penetrando em sua pele até causar vertigem.
— Quantos questionamentos — ele advertiu, deixando claro que, o que quer que o feiticeiro estivesse tentando fazer com sua magia negra, não funcionaria. — Recomendo que mantenha suas indagações para si mesmo, bruxo. E sua feitiçaria também. Mas não vim só por meu primo hoje, você sabe. Quero informações sobre a maldição que carrego.
— E sobre qual delas você quer saber? — Garon curvou os lábios em um sorriso de lobo.
Soen se inclinou em seu assento.
— Interessante. Então há mais de uma.
— A marca em seu braço — ele indicou com o queixo, sinalizando na direção do pulso direito do príncipe, onde Gin encontrou um hematoma na noite anterior.
Soen puxou a manga da camisa, revelando a pequena poça negra contra a pele branca.
— Labe Mortem — Garon jogou as palavras no ar.
— Latim?
— Sim. Mancha da Morte — prosseguiu após uma pausa. — É o nome da maldição.
— A bruxa que encontrei na Cidade Baixa não parecia saber sobre isso — Soen refletiu enquanto observava a escuridão da mancha, tão densa que parecia engolir a luz da lareira.
— A marca é recente. Deve tê-la recebido depois de encontrar a mocinha pagã que chama de bruxa — ele respondeu. — Você tem sorte, garoto. Duas maldições extremamente poderosas como essas em você, e nenhuma capaz de te matar.
— Garoto? — Soen cuspiu uma risadinha. — Você tem bastante confiança em si mesmo, não tem? Não pense que vou poupar seu pescoço porque preciso de você. Estou disposto a arcar com as consequências e encontrar outro feiticeiro mais tarde.
Garon soltou um suspiro alto.
— Labe Mortem — ele assumiu um tom educativo. — É como uma marca concebida pela morte. Você conhece a morte, Vossa Alteza?
— Acabei de vê-la na sua porta — Soen cantarolou. — Recolhendo o seu guarda e ansiando recolher você também.
Um nervo pulsou na cabeça raspada de Garon, e Soen lhe deu um sorriso radiante em resposta.
— Até onde eu sei, você mal se dava ao trabalho de inteirar-se sobre a morte negra, certo? A praga tem matado centenas. Milhares. Como as coisas estão indo, fará mais vítimas do que a Grande Fome, e Vossa Alteza mal se importava com a existência de tal doença — o ódio brilhou nos olhos azuis do feiticeiro. — Como espera que alguém siga um rei assim? Como espera que eu te ajude, se você possui uma natureza tão inapropriada?
— O que você queria que eu fizesse? Ficar a par da doença e dos números não me serve de nada, já que eu sequer participo dos conselhos do trono.
Garon nem parecia ter ouvido.
— Você procurou saber de onde as pessoas acreditam que a doença vem?
— Isso não importa — Soen fez um gesto desdenhoso com a mão. — Yenned acredita ser algum tipo de castigo de Deus. Muitas pessoas pensam como ele.
— E o que mais, Vossa Alteza?
— Existem aqueles que acreditam ser culpa do miasma no ar. Outros ainda culpam os hereges e os estrangeiros, mas sabe quem eu realmente culpo, Garon? A Única Fé.
O feiticeiro teria arqueado uma sobrancelha, se tivesse alguma.
— Você deve ser um dos poucos cidadãos de Etheia, não, de toda Sacra que pensa assim. Por que a igreja?
Soen apanhou um pergaminho em branco da escrivaninha de Garon e o lançou contra o fogo, apenas para assisti-lo queimar na lareira.
— Porque eles colocaram a humanidade na direção do inferno. Quantos inocentes a Inquisição matou? Se não bastasse a inutilidade da igreja durante a Grande Fome, quando as famílias precisavam matar suas crianças para que não definhassem sem comida, os idosos recusavam alimentos para que os mais jovens tivessem algo para engolir e as pessoas cometiam furtos aos montes ou simplesmente comiam umas às outras, agora há mulheres sendo estupradas, torturadas e queimadas. E ainda estão exterminando uma espécie inteira de animais. Quem será o próximo? Isso virou um ciclo de opressão e assassinato, e não há qualquer relação com Deus. Essa doença é apenas mais uma consequência das ações humanas. Mas fico feliz por estarmos todos pagando pelos nossos pecados.
O nojo que Soen sentia ao se lembrar das coisas que a igreja havia orquestrado era palpável. Sua primeira missão após ser coroado rei seria enfraquecer de vez o poder e a influência da igreja sobre o povo, já que a própria inquisição vinha perdendo força, e então reinar livre de qualquer controle religioso. Só precisaria de alguns empurrões e muita paciência para se livrar de todos eles.
E depois, quem sabe o que ele faria? Caçar religiosos como os mesmos que perseguiam os mais fracos faziam parecia divertido. A verdade é que Soen ainda se sentia muito tentado pela ideia de marchar com a humanidade rumo ao inferno.
Após tudo o que vira durante sua viagem aos lugares mais baixos e sujos de Etheia, o herdeiro do trono não podia deixar de concordar com algo que seu pai lhe disse em uma das raras ocasiões em que tiveram uma conversa franca.
Aqueles que nunca vislumbraram a liberdade serão os mesmos que te privarão da sua, caso tenham a chance um dia.
E o rei Othail não poderia estar mais correto em sua afirmação. Afinal, os próprios camponeses miseráveis que entregavam suas riquezas aos homens ricos da Única Fé eram aqueles que sentiam prazer em torturar as pobres mulheres acusadas de bruxaria. Eles faziam as acusações, muitas vezes infundadas ou até mesmo por simplesmente haver alguma desavença entre vizinhos, e assistiam na primeira fileira enquanto o sangue era derramado.
Da mesma maneira que a igreja os usava, Soen concluiu, eles também se aproveitavam dela para saciar sua sede por sangue. Se matar em nome da igreja era perdoável, então por que não se sentiriam satisfeitos ao fazê-lo? E se isso não era uma prova de que mereciam o inferno, Soen poderia encontrar várias outras.
E se Garon concordava ou discordava dele, não demonstrou.
— A verdade, Príncipe Herdeiro, é que uma mulher espalha a morte negra pelo continente. Nem mesmo eu posso dizer se é uma bruxa ou um demônio, apesar de saber que ela se considera uma rainha. Também não sei seu nome ou quem a enviou, mas ela é a responsável por disseminar a praga. E talvez seja culpa da igreja, como você falou, mas nós nunca saberemos a verdade.
— Uma mulher? — Soen disse. — Conte-me mais.
— Não sei dizer qual o objetivo dela, na verdade, mas alguém lhe deu essa marca — o Conselheiro do Rei olhou a mancha ainda exposta no pulso do príncipe. — É como uma imunidade à morte negra. Não sei se foi ela ou o seu amigo gato que lhe concedeu isto, mas funciona como uma maldição também. E como toda maldição, ela tem seu preço.
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