Capítulo 7
Certa vez, um homem sábio disse que era possível sentir quando alguém nos olhava fixamente, mesmo que você não fosse capaz de enxergá-lo de volta.
E se você estivesse dormindo, acordaria. Assim como também sentiria quando alguém pensasse muito em você, ou quando te desejasse o bem ou o mal, a saúde ou a morte.
Soen poderia sentir esse desejo de morte naquele momento sobre si. Pulsando, crescendo, se retorcendo e fortalecendo. Ele sentia como se a qualquer momento fosse cair sem vida no chão sem que ninguém precisasse fazer nada diretamente contra ele.
Essa sede por seu sangue vinha de tantos lugares diferentes que talvez fosse difícil saber qual deles era o que mais intensamente desejava a morte do príncipe. Isso, se ele não conhecesse bem o conselheiro de seu pai. Ele estava sempre ansiando, seja pelo fim de Soen ou pelo seu fracasso. Pelo desespero dele. Pela oportunidade de fazê-lo parecer pior do que realmente era.
Soen sentia em seus ossos que se existia alguém capaz de manipular o rei, alguém capaz de se sentar atrás do trono e governar, este alguém era Garon, o Conselheiro Real de Etheia.
Ele mesmo adorava se gabar por ter sido indicado à tal posição pelo próprio Papa, questão que sugeria uma aliança direta entre a Igreja e todo aquele mal. Ou talvez eles nem mesmo notassem isso. Talvez estivessem sendo tão manipulados quanto o rei.
Miau...
E lá estava Gin novamente. A gata preta com uma pequena mancha branca entre os olhos que sempre aparecia nos aposentos do Príncipe Herdeiro quando o sol desaparecia do horizonte.
Já era noite quando Soen e Yenned chegaram à capital, vários dias cavalgando o máximo que os cavalos aguentavam antes de fazerem pequenas pausas enquanto seu primo perdia seu sangue, humano ou felino, em sua sela.
Assim que chegaram a Valusyr, o príncipe Yenned foi imediatamente ocultado por Soen no meio de um arbusto espinhento nos arredores do castelo, onde permaneceria até o amanhecer enquanto o herdeiro do trono se moveu diretamente para o seu quarto. Depois, é claro, de explicar aos nobres que o recepcionaram o triste fim de Bharmerindus e seus homens durante o cerco de Forgent, juntamente com a vitória certa de Soen, apesar do infortúnio grande número de baixas.
Sobre a ausência de Yen, Soen disse a todos que seu primo recebia tratamento nas proximidades, já que seu ferimento necessitava de atendimento com certa urgência e não havia tempo para aguardar até a chegada na capital.
Como ele explicaria para a corte que, na verdade, Yenned não recebera nenhum tratamento médico quando o dia amanhecesse e ele surgisse com a ferida aberta e sangrenta, bem, Soen teria que ser criativo.
Miau...
Ele encarou os olhos da gata por um momento. Seu miado era quase uma canção, longa e levemente aguda. Mas os olhos... Eram algo mais.
Olhos como os de Soen, de Yen ou de qualquer outra pessoa. Olhos racionais, que sussurravam palavras secretas em línguas desconhecidas.
A inteligência por trás daquele olhar jamais poderia ser considerada comum, assim como o frio que causava arrepios na pele de Soen, seguido pelo silêncio morto que acompanhava Gin sempre que ela surgia.
O herdeiro do trono estendeu seu braço direito sobre a cama, chamando-a para si enquanto ela lhe observava.
A gata se preparou para saltar, abaixando seu corpinho peludo e balançando sua parte traseira até que finalmente saltou para a cama, caminhando com passos precisos até Soen, que se dispôs a afagar suas orelhas com os dedos. Não demorou para que ela começasse a ronronar.
Enquanto acariciava a cabeça de Gin, Soen não podia deixar de pensar nos centenas de milhares de gatos sendo caçados e mortos por todo o continente a mando do próprio Papa, assim como na quantidade quase equivalente de seres humanos que começaram a morrer simultaneamente.
Talvez Yen realmente estivesse certo e Deus tenha lançado seu castigo para a humanidade. Ou talvez Soen estivesse passando tempo demais com religiosos tolos.
Enquanto ronronava contra a mão de Soen, que se perguntava distraidamente como era possível acariciar um animal que vivia na sarjeta e mesmo assim permanecer com as mãos limpas, a gata acabou afastando a manga da camisa do príncipe, revelando um hematoma enorme de coloração escura em seu antebraço.
Soen se sentou sobre a cama e analisou a marca por um longo momento.
Tratava-se de um hematoma em um tom profundo de roxo e preto, se espalhando como piche logo abaixo de seu pulso. Não doía, e ele não se lembrava de tê-lo feito.
Se Soen não tivesse visto as manchas da morte negra com os próprios olhos, teria pensado que se tratava do principal sintoma da doença e estaria mergulhado em desespero. Mas aquela marca não estava acompanhada do inchaço que denunciava a praga, e ele não tinha qualquer sintoma que já havia observado nos soldados ou camponeses infectados, o que acabou por deixá-lo despreocupado. A mancha provavelmente era nada além de uma batida que por algum motivo não doía.
De todo modo, havia coisas mais relevantes para Soen pensar no momento, como o importante acerto de contas com Garon, o Conselheiro Real e feiticeiro em potencial, quando amanhecesse. E se ele não estiver disposto a remover tanto a maldição do herdeiro do trono quanto a de Yenned, bem, o príncipe teria simplesmente que matá-lo.
Soen imaginava que não seria nada fácil matar um feiticeiro poderoso como a bruxa da Cidade Baixa fizera parecer que Garon era, mas o príncipe daria seu jeito, e aquilo teria de bastar. Só precisaria encontrar outro feiticeiro eficiente depois e então repetir o processo.
E o próximo da lista seria Othail.
Mesmo se Soen fracassasse em matar Garon, permanecer vivo para se livrar do rei de Etheia já seria o suficiente. Ele seria o novo rei, afinal. Poderia simplesmente encontrar outro bruxo para substituir como conselheiro.
Soen odiava admitir, mesmo que só para si mesmo, mas ele devia a Yenned. Se não fosse pelo seu primo, Soen nunca saberia que também estava amaldiçoado. E se o feiticeiro deixasse Yen morrer, então teria a eterna fúria do Príncipe Herdeiro.
Mas os servos do Diabo poderiam esperar mais um pouco, porque Soen estava de bom-humor pela sua vitória, e realizar uma pequena comemoração em uma das tavernas mais profanas da cidade parecia uma ideia muito tentadora naquela noite.
No fim das contas, um homem precisava de cerveja em seu organismo para enfrentar as dificuldades da vida.
E é claro, cerveja boa seria muito mais agradável com a companhia certa, e Soen sabia muito bem onde encontrá-la.
Soen sabia que Balthazar estava no palácio. Os nobres sussurravam sobre a visita repentina de seu tio após ele descobrir sobre a partida sem explicações de Soen e Yenned. Ele provavelmente havia pensado que os príncipes acabariam mortos em alguma confusão e estava se adiantando para o enterro. Mas no fundo ambos sabiam que o degenerado Balthazar morreria primeiro.
No passado, os dois se faziam companhia em noites de bebedeira, até que Soen se esquecesse de que seria rei um dia e de que não poderia se dar ao luxo de morrer como um porco, sangrando em uma briga de bar. Faziam anos, porém, que Balthazar fora afastado da capital, após um escândalo com a mulher de um duque, e desde então eles se viram em raras ocasiões.
Sentindo-se nostálgico com as lembranças dos velhos tempos, Soen partiu ao encontro de seu tio.
Ele sabia onde Balthazar estava, porque seu tio sempre pegava o mesmo quarto quando visitava Valusyr: aquele mais perto da adega reservada exclusivamente aos convidados da corte.
No entanto, para a sorte de Soen, ele acabou por encontrá-lo no meio de um corredor.
— Era você mesmo quem eu estava procurando, Balthazar — Soen disse quando o viu.
— Então você está mesmo vivo, seu desgraçado — ele lançou um sorriso largo e afiado para seu sobrinho.
— E isso merece uma comemoração.
Soen arrastou o tio sem muita dificuldade até uma taverna qualquer, cujas mesas pareciam suficientemente afastadas umas das outras para evitar a morte negra. Ele não se interessou em ler o nome do lugar, mas se misturou bem entre os bêbados com Balthazar.
Não importava para qual buraco imundo seu sobrinho o arrastasse, Balthazar jamais recusaria uma bebida. Mas Soen não queria outra mancha escura na pele, ainda mais se viesse acompanhada de inchaços, dores e diarreia. Então, preferiu um estabelecimento maior, cujas mesas estariam razoavelmente mais limpas e distantes.
Em poucas horas, Soen e seu tio estavam bêbados e cantavam em um coro desafinado com o resto dos clientes do lugar.
— Então você realmente derrubou Forgent, Soen — disse Balthazar, sua voz embargada pela bebida.
É claro que ele duvidava do relato de Soen, de que ele e Yen haviam vencido os pagãos após travarem duas intensas batalhas, mas nenhum outro homem sobreviveu para contar a história.
— E existe algo que eu não possa fazer quando quero? — Soen respondeu com seu tom mais esnobe.
Balthazar era o oitavo sucessor do trono, e nunca pareceu se importar com isso. Diferente do primo Yen, Soen gostava facilmente de seu tio. O homem parecia aproveitar mais a vida, mesmo que tivesse uma visível falta de noção sobre algumas questões, inclusive o perigo.
Ele tinha cabelos negros na altura dos ombros casualmente amarrados atrás da cabeça, olhos escuros sempre expressando sua eterna ressaca e um nariz quebrado que fora mal colocado de volta no lugar que tentava, sem sucesso, disfarçar com uma barbicha aparada. Soen não imaginava como um homem nobre de vinte e sete anos acabara vivendo como um bêbado de merda, mas não estava especialmente curioso sobre isso.
Deixando o assunto de Forgent de lado para evitar que fossem reconhecidos como o Príncipe Herdeiro e o irmão mais novo do rei pela plebe que visitava aquela taverna, os dois continuaram a beber, sorrir e falar merda.
♛
Na manhã seguinte, Soen acordou em uma cama dura e fedorenta no que parecia ser o segundo andar da taverna, sem saber se deveria se incomodar mais com sua cabeça extremamente dolorida ou com o calor infernal que sentia.
Havia uma mulher ao seu lado na cama e ele não fazia ideia do que acontecera entre os dois. Aquela com certeza era uma das noites em que Soen bebia até esquecer quem ele era.
Ao menos a puta não era tão feia desta vez, e nem um homem.
Soen se arrepiava só de pensar nas coisas que fez movido pela embriaguez do álcool. Ainda bem que a amnésia da bebida durava por uma vida inteira, ao menos na maioria dos casos.
Mas o consolava saber que havia sido um garoto mais bonito do que metade das mulheres com quem ele dormiu. Talvez mais do que a metade.
Soen vestiu suas roupas, deixou alguns trocados para a moça que o fez companhia e desceu as escadas até o salão principal da taverna, onde Balthazar tomava um belo café da manhã que se assemelhava a um cachorro assado. Soen pôde constatar que sua dor de cabeça piorara só de sentir o cheiro.
Quando Balthazar finalmente decidiu que estava cheio, a dupla pagou o estabelecimento e retornou discretamente ao palácio.
O herdeiro do trono definitivamente não tinha condições de encarar Garon naquele dia, mas não havia tempo a perder, já que a vida de Yen corria perigo, e ele havia se tornado uma peça importante no tabuleiro de Soen.
Então, mesmo irritadiço com a ressaca e talvez pela sua falta de responsabilidade, Soen apanhou sua espada e foi à caça do feiticeiro.
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