Capítulo 24
— Não foi isso que eu solicitei — comentou Soen, observando a figura miserável no chão. Ele não podia negar a semelhança conveniente com Balthazar, mas havia outras questões além da aparência que deveriam ser consideradas. — Eu disse que preciso de um homem morto há dias. Esse aqui ainda está vivo.
Tratava-se de um pedinte moribundo, com os dedos cheios de calos e a tez castigada pelo sol, mas sem ferimentos ou cicatrizes que obviamente não pertenceriam a Balthazar. O cabelo era consideravelmente maior, mas Soen poderia cortá-lo. A altura parecia bem próxima, mas ele era demasiadamente magro, desnutrido como um cão de rua. Contudo, era comum perder peso ao contrair a morte negra, então ninguém notaria a diferença.
A pele, devastada por inúmeras manchas características da doença, que se espalhavam em diferentes padrões e tamanhos, todas fedendo a podre e vazando muco, desempenharia um papel crucial na identificação incerta do corpo. Ainda assim, estava vivo demais para exercer sua função como defunto.
— Ele parece praticamente morto há dias, Vossa Alteza — Garon argumentou, indicando a aparência deteriorada do sujeito com sua mão mutilada — Está doente o suficiente para que ninguém perceba a diferença.
Os dois encontraram o homem nas proximidades da muralha que cercava os limiares de Valusyr, um pouco adiante da taverna onde Alexander se apresentou a um Soen devidamente amarrado algumas horas depois do príncipe desmaiar pelo fedor de merda da Rainha Peste, que fora expulsa por Gin na ocasião. Se a região parecia putrefata naquele dia, agora que a morte negra se espalhara ainda mais, o herdeiro do trono sentia-se vagando no último andar do inferno.
As ruas sem iluminação não fediam somente a lama podre e um punhado de carcaças imundas, mas sim a total desolação, com centenas de corpos decompostos em meio a incontáveis ninhos de ratos e dejetos humanos. Os cadáveres eram empilhados aos montes nas calçadas lamacentas ou em carroças que mal suportavam o peso, tornando-se alimento para os roedores gordos e as aves carniceiras.
Foi uma surpresa constatar que alguns ainda estavam vivos em meio aos cadáveres.
Ele não havia pensado nisso antes, mas parecia plausível que um pequeno número de moribundos fosse dado como morto antes da hora, por engano ou simplesmente por desinteresse dos soldados, deixando-os soterrados sob pilhas de corpos e fracos demais para escapar ou pedir ajuda. Aqueles que não tinham a sorte de morrerem sufocados pelo peso dos mortos sobre seus pulmões, eram condenados a viver seus últimos dias presos com as ratazanas que mordiscavam suas línguas e os abutres que devoravam-lhes os olhos.
Por sorte, Alec e Yen não seguiram o herdeiro do trono naquela noite. Caso algum deles estivesse presente, tentaria ajudar os necessitados e atrasaria em muito os planos de Soen.
O homem que Garon encontrou através de sua magia negra — que sempre desencadeava uma breve, porém incômoda, dor de cabeça em Soen — era um daqueles azarados que foram descartados ainda com vida.
Foi preciso vasculhar cuidadosamente duas carroças e uma pequena pilha putrefata para encontrá-lo, pois a noite densa dificultava a visibilidade de ambos e Garon insistia que Gin continuava bloqueando parcialmente sua visão, mesmo estando a quilômetros de distância, tornando difícil definir uma localização precisa.
Coisa que a gata preta não deveria ser capaz de fazer, considerando o semblante irritadiço do conselheiro, que franzia o cenho com uma graciosidade relativamente jovial, diferente da antiga carranca enrugada que forjara para si mesmo. Aparentemente, manter o rosto escondido atrás de camadas de pele falsa retardara seu envelhecimento em mais de uma década.
— Tem certeza de que não há nenhum morto por perto que se encaixe em minhas exigências? — Soen indagou, observando o homem de cima enquanto ele respirava debilmente no chão.
— Absoluta. Eu não ousaria mentir para Vossa Alteza — Garon mentiu.
— Que seja — ele se abaixou ao lado do plebeu, a escuridão inescrutável de seus olhos se cruzando aquele castanho delirante por um breve momento. — Talvez seja melhor assim. Deixá-lo morrer sozinho no castelo pode vir a ser mais conveniente.
As vítimas da doença sempre tinham mortes sujas, afinal. Agonizavam por dias ou semanas, consumidas pela dor e alucinando pela febre. Suavam e evacuavam todo o conteúdo em seus estômagos e bexigas até que não sobrasse mais nada, finalmente morrendo depois disso. Caso levasse um corpo já sem vida para o castelo, Soen precisaria forjar toda essa bagunça pessoalmente, questão que não lhe agradava em nada.
Um homem que ainda estava vivo, no entanto, faria a sujeira sozinho. Ele não parecia ter muita coisa sobrando para cagar, mas bastava enfiar colheradas de mingau garganta abaixo e deixá-lo terminar seus dias em algum lugar discreto, onde não o encontrariam até que já estivesse se decompondo.
— Perfeito — comentou Garon, se virando para a direção de onde vieram. — Caso Vossa Alteza precise de mim, estarei em meus aposentos no castelo.
Soen riu enquanto içava o plebeu dos paralelepípedos lodosos.
— Caro Garon. Acha mesmo que eu, o herdeiro do trono, vou arrastar esse pedinte fétido até o castelo? — disse ele alegremente, fazendo o feiticeiro parar onde estava. — Se fosse o caso, teria te deixado ir assim que me forneceu a localização, mesmo que inexata, do que eu procurava.
— Pretendia me fazer carregar o corpo mesmo quando pensava que eu era um homem velho? — O feiticeiro recuou alguns passos para trás quando Soen avançou em sua direção com o homem a reboque, os olhos tão cheios de surpresa que tardou a ficar furioso.
— Certamente — Soen acomodou o falso Balthazar sobre os ombros do bruxo, dando alguns tapinhas amistosos em suas costas em seguida. — Não esperava que eu arrastasse um plebeu por toda essa longa distância feito uma mula de carga, não é mesmo? E por que diabos você se fingia de velho quando todos sabem que ainda nem chegou aos quarenta?
Garon cambaleou com o peso sobre suas costas, engolindo com pouco entusiasmo um protesto que quase lhe escapou pelos lábios. Seu corpo esguio envergou consideravelmente, tornando-o um pouco mais próximo do que era antes de Gin derreter a máscara que usava. Estava claro que ele não seria capaz de carregar o falso Balthazar até o castelo, mas Soen não se sentia inclinado a ser piedoso.
— Todos sabem? — seu tom de voz inquisitivo parecia discordar. — As pessoas esquecem, Vossa Alteza, ainda mais com uso de magia. É bem prático, considerando o quão jovem eu era quando fui nomeado como Conselheiro do Rei. Precisava fazê-los esquecerem a minha pouca idade para ser aceito, e funcionou. São vocês, os Blackthorn, que continuam se lembrando disso.
— Então as outras pessoas, fora os Blackthorn, não sabem a sua idade? — Soen adquiriu um ar pensativo enquanto caminhava na direção do castelo, sentindo-se inclinado a aproveitar a ocasião para arrancar algumas informações de Garon. — Ouvi dizer que há algum tipo de envolvimento ancestral entre minha família e os demônios. Suponho que seja assim que não nos esquecemos.
— É verdade. Um Blackthorn manchou o sangue de seus descendentes com algum pacto perigoso no passado — Garon soava ofegante, a respiração entrecortada pelo esforço que fazia tentando acompanhar os passos do príncipe. Ainda sim, a presunção em sua voz ao constatar que Soen não sabia com exatidão sobre o assunto era notória. — Se Gin parasse de bloquear a minha visão, eu poderia vasculhar conversas futuras para descobrir o que aconteceu naquela época.
— Que o inferno me engula — disse Soen. — Você é obcecado por essa sua visão. É por isso que vendeu a alma ao demônio?
— Não sou obcecado. Estou apenas preocupado, devo dizer— o feiticeiro fez uma pausa para ajustar o falso Balthazar, que escorregava dos seus ombros agudos. — Gin, como Vossa Alteza chama, tem se esforçado para me manter cego nos últimos dias. Isso me faz supor que ela está tramando alguma coisa, e que não quer ser descoberta.
— Posso imaginar. Ela deve ter decidido que sou indigno do trono, e agora pretende me usurpar o direito à coroa — Soen zombou.
— Não ignore o meu aviso, Vossa Alteza. Tenho um péssimo pressentimento sobre aquela criatura, e minha intuição não tende a falhar. — sua voz desceu para um tom conspiratório. — O que exatamente você sabe sobre ela? Já perguntou detalhes sobre suas origens ao vosso irmão?
Soen continuou caminhando sem se dar ao trabalho de olhar para o bruxo, que cambaleava com o falso Balthazar alguns passos atrás.
— Sua suposta intuição não vale mais para mim do que a óbvia lealdade de Gin, que sempre fez seu trabalho com excelência e que, curiosamente, é sua maior pedra no sapato atualmente.
— Bem, é verdade que Gin vem sendo um incômodo, mas nada que se compare aos seguidores da Estrela da Manhã — Garon torceu o nariz elegante. — Pense neles como uma sociedade secreta, mas muitos chamam de Ordem. Fiéis do Diabo, infiltrados aos milhares nas igrejas. Crescendo silenciosamente às custas dos tolos feito sanguessugas. Eu mal teria me importado com a presença da gata se não fosse pelas minhas suspeitas sobre ela. Como pode ver, tenho preocupações maiores em níveis inimagináveis.
Soen se lembrava vagamente do dia em que Alec o atualizou sobre a questão das Ordens, quando os dois se encontraram pela primeira vez. Na ocasião, ele dissera algo sobre cultos pagãos secretamente dispersos na sociedade, coexistindo em uma complexa hierarquia de poder em todo o continente. Até onde ele era capaz de recordar, o culto que Garon servia estava em pé de igualdade com a principal Ordem cultuadora do Diabo.
— E por qual motivo alguém que ocupa a posição de conselheiro de uma das maiores potências de Sacra se preocuparia tanto com essa Ordem? — Soen indagou, soando cético.
— Porque, Vossa Alteza, o próprio Papa é líder da Estrela da Manhã — ele sequer tentou esconder a cobiça em seu tom de voz. — É uma posição muito mais vantajosa do que a minha, temo eu.
— Bem, isso não me surpreende. Basta não ser um idiota completo para perceber o quanto a Única Fé é podre desde sua base — Soen pensou em voz alta. — Porém, duvido que tais problemas amenizem sua irritação com Gin, e continuo não interessado em ouvi-lo.
Depois disso, Soen esperava que Garon se mantivesse em silêncio pelo restante do caminho. Estava claro que ele não daria ouvidos a qualquer suspeita levantada contra Gin, muito menos vindo de alguém que trairia, assumidamente, a própria mãe caso fosse conveniente. Mas não foi o que aconteceu.
Para seu crédito, o feiticeiro não abriu a boca de imediato. Primeiro, se concentrou na tarefa de subir uma rua íngreme e escorregadia, equilibrando precariamente o plebeu em suas costas. Ele arquejava pelo esforço a cada passo que dava, ainda que se abstivesse de reclamar da tarefa.
— Algo interessante sobre o futuro é que nunca há apenas uma alternativa. Eu sempre visito vários cenários vindouros, raízes de possibilidades interligadas a um único acontecimento — Ele começou a divagar assim que superou a subida. — Os cenários são maleáveis, no entanto, e cabe a mim deduzir qual das visões tem a maior chance de se tornar real. Minha última aposta errada foi há vinte anos atrás, quando previ seu nascimento e te considerei um risco muito alto. Não cometi um equívoco sequer desde então, e sei que não estou enganado agora, Vossa Alteza.
Soen nunca colocaria a mão no fogo por alguém, nem mesmo Yen, Alec ou Gin, mas a insistência do feiticeiro não seria o bastante para fazê-lo considerar suas palavras.
Garon jamais ficaria tão agitado se o suposto plano de Gin fosse prejudicial à Soen ou seus aliados. Seu empenho em semear desconfianças só poderia significar que, seja lá o que estivesse acontecendo entre o feiticeiro e o espírito, não prejudicaria ninguém além dele.
— Suponho que teremos de pagar para ver — respondeu Soen, sem esconder a diversão no tom de voz, e acelerou os passos.
Garon finalmente seguiu-o sem mais comentários indesejados depois disso, sofrendo um pouco para trás com o peso de sua carga durante todo o percurso enquanto os dois deixavam as regiões mais afetadas.
Aos poucos, as casinhas decadentes e os becos pestilentos foram dando lugar a largas ruas de pedras limpas, passando por residências robustas com telhas de barro manchadas pela fumaça das chaminés, paredes grossas para proteger do frio no inverno e gramados bem-aparados. Quando alcançaram os grandes casarões dos aristocratas que ciscavam ao redor do castelo em suas propriedades espaçosas, estas que sequer podiam ser vistas atrás de seus enormes jardins requintados, Garon parecia prestes a cair duro.
Suor escorria pelas suas têmporas, colando os fios dourados de seu cabelo contra a pele e deslizando pelas maçãs do rosto em abundância. Ele estava trêmulo e abatido, a respiração não passava de uma série de chiados rápidos, quase desesperados. Quando percebeu que Soen o observava, lançou-lhe um olhar aborrecido.
— Eu falo dez línguas. Metade delas são idiomas mortos — lamentou com uma risada amarga. — É difícil acreditar que passei a infância discutindo sobre a complexidade das declinações e conjugações do hebraico e do siríaco com os meus professores, traduzindo textos sagrados até sonhar com dialetos que não faziam parte da minha língua materna, estudando economia, diplomacia, teologia, direito, história e filosofia durante o dia e me dedicando secretamente à escrituras pagãs em sânscrito e cantonês durante a noite, arriscando meu pescoço em rituais secretos enquanto formava laços com os demônios debaixo do nariz da Corte para, no fim, acabar contaminando-me voluntariamente com essa doença.
— É bom ver um pouco de sinceridade em você, meu caro — Soen pegou o falso Balthazar sem dar atenção aos resmungos do feiticeiro, apoiando o braço ao redor do pescoço dele como se segurasse um amigo bêbado. — Cubra-o com sua capa. Não posso ser visto caminhando com um mendigo pestilento nos arredores do castelo, seria péssimo para a minha imagem.
Prontamente, Garon fez o que foi pedido, ansioso para se livrar da peça fétida e da companhia de Soen e seu falso tio pestilento.
— E pare de tentar me colocar contra os meus aliados — Soen continuou, advertindo-o pela primeira e última vez. — E eu talvez te considere digno de continuar ocupando a posição de conselheiro sob o meu reinado. Caso você não morra até lá, é claro. Não consigo ver como continuará vivendo na Corte após essa mudança de visual.
— Como quiser, Vossa Alteza — Garon se curvou em uma reverência cansada. — Não se preocupe, vou pensar em algo para resolver a questão da minha aparência.
— Pois bem — Soen começou a guinchar o plebeu pela rua. — Caso seja louco o bastante para adentrar no castelo com esse rosto, faça-o um bom tempo depois de mim, para evitar que alguém nos associe.
O conselheiro assentiu com a cabeça loira, os olhos azuis brilhando no escuro como se planejasse alguma coisa perigosa. Soen saiu de seu alcance antes que alguém os visse juntos.
Quando sozinho, arrastou o homem pelas ruas desertas sem qualquer empecilho, passando em seguida pela entrada do castelo e pelos vários guardas que não ousaram pará-lo, subindo até os corredores vazios da fortificação sem ser incomodado.
Felizmente, Soen conseguiu executar sua tarefa no prazo desejado: encontrar um substituto para Balthazar e levá-lo até uma das despensas do castelo antes das três e meia da madrugada, horário em que os criados despertavam. Mesmo quando alguns serviçais já acordados encontravam-no caminhando pelos corredores escuros, se sentiam exaustos demais para olharem duas vezes.
Para todos os efeitos, Soen estava vagando a esmo com algum pobre plebeu que embebedou — e sabe Deus o que mais — por diversão.
De última hora, no entanto, ele decidiu pegar as roupas de Balthazar que deixara à disposição em uma das cozinhas secundárias do castelo e dar meia volta, dirigindo-se a uma das adegas no térreo.
Esconder o corpo junto às bebidas ao invés de deixá-lo nas despensas que eram diariamente acessadas seria mais conveniente, considerando que os empregados raramente adentravam nas adegas e que Soen precisaria deixá-lo morrer por conta própria ao invés de abandonar o corpo pronto para ser encontrado, como pretendia inicialmente. Isso daria tempo para o falso Balthazar se decompor, evitando o risco de ser encontrado vivo.
As adegas eram construções subterrâneas que poderiam ser acessadas através do térreo, mas não sem antes enfrentar um elaborado sistema de segurança envolvendo fechaduras avançadas e guardas de vigilância. A própria arquitetura do castelo fora projetada de modo a dificultar o acesso e aumentar a segurança, o que poderia ter dificultado as coisas para qualquer homem que não fosse o herdeiro do trono.
Os guardas entregaram-lhe as chaves da adega menos utilizada sem hesitação, e em troca receberam álcool o suficiente para esquecerem até mesmo o nome de suas esposas. Seria fácil se livrar de alguns homens embriagados mais tarde, se certificando que ninguém sobreviveria para testemunhar contra o herdeiro do trono após a descoberta do corpo.
— Dizem que a incompetência de um exército espelha a inaptidão de um rei — ele comentou para si mesmo enquanto empurrava o plebeu para dentro.
Quando terminou tudo e subiu rumo aos seus aposentos, Soen se sentiu satisfeito pelo resultado daquela longa noite. Com sorte, Garon acabara contraindo a morte negra do falso Balthazar e só teria tempo de desmanchar a maldição de Yen antes de morrer agonizando, então não sobraria nenhum homem vivo vagamente ciente de onde Soen esteve ou do que fez naquela noite.
Ansioso para dormir pelas horas que lhe restavam, Soen entrou em seu quarto com um suspiro cansado, apenas para descobrir que aquela noite ainda não estava chegando ao fim.
Porque havia sangue por todo o piso e, no centro do cômodo, Sebastian Vineyard afundava sua espada nas entranhas de Alexander.
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Nota da autora: O Garon pós uso dos produtos ivone da Gin:
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