Capítulo 21
Após o desjejum com o rei, Soen dedicou o restante da tarde à organização de medidas de controle contra o surto da morte negra ao lado de Yen. Não era o que ele teria planejado para seu próprio aniversário, mas a crescente população infectada reduzia ainda mais o curto prazo estipulado por Othail. Estragar a refeição de seu pai teria que bastar para as comemorações do dia.
Segundo Yen, Alexander desaparecera algumas horas após o início da contenção de Solus, et Salus, e ainda não havia se dignado a dar as caras para auxiliá-los nas urgentes questões diplomáticas com os líderes de cada cidadezinha ou vilarejo de Etheia. Sua brilhante atuação como Yenned Vineyard — o jovem general constantemente ocupado demais com seus deveres militares para ser visto sem seu elmo e armadura — seria essencial durante as próximas três semanas de reuniões, uma vez que todos esperavam uma participação ativa dele.
"Pensei que Alexander tinha saído atrás de você", disse Yen-Gato, com toda sua apatia felina, quando Soen perguntou a respeito do paradeiro do irmão.
Na ausência do Blackthorn mais velho, os dois tomaram uma série de medidas úteis contra a doença, mas não completamente eficazes.
Primeiro, decidiram que seria essencial impor uma quarentena severa na maior quantidade possível de cidades fortificadas, induzindo a população a evitar o contágio por meio de um isolamento prolongado entre as regiões, especialmente as mais afetadas, e também nas embarcações comerciais. Os tripulantes teriam que passar por um período de confinamento em seus navios antes de terem contato com os comerciantes locais, e ninguém teria permissão para desembarcar antes disso.
Também seria necessário investir na limpeza e organização dos maiores focos populacionais do reino, mantendo a maioria dos civis o mais distante possível de qualquer vestígio dos cadáveres pestilentos. Além disso, precisariam construir mais hospitais para o uso dos camponeses, visando isolar os infectados do restante da população saudável sem exigir gastos extras daqueles que já não eram mais capazes de se sustentar naqueles tempos de crise.
Após horas de discussão sobre o que seria ou não viável de acordo com o pouco tempo que dispunham e os recursos limitados de Etheia, que Yen denominou como A Grande Potência de Sacra Girando em uma Espiral Decadente, Soen se cansou de esperar por Alexander e tomou a liberdade de se encontrar com alguns dos médicos enviados pela Corte do Rei para o tratamento dos doentes.
Protegido por Labe Mortem, a maldição que parecia ter sido lançada pela própria Rainha Peste, o herdeiro do trono transmitia a perfeita definição de um jovem aristocrata corajoso aos olhos do povo enquanto cavalgava com Vhalas, seu fiel garanhão de pelagem dourada e focinho negro, sobre os paralelepípedos gastos das ruas estreitas da capital.
Para a plebe, que se espremia dentro dos limites da muralha em seus casebres com os telhados íngremes amontoados uns sobre os outros, o Príncipe Herdeiro estaria se arriscando fora das paredes isoladas do castelo com o objetivo de avaliar o andamento da contenção da morte negra, cheio de disposição para tomar a frente e auxiliar na erradicação da doença.
Ele jamais teria se dado ao trabalho de sair de seus aposentos se não fosse pela imunidade conferida pela crescente mancha negra em seu pulso. Yen, com sua inconveniente capacidade de ler mentes, era o único que sabia disso. Além do mais, Othail não pareceu prever que a popularidade de seu filho pudesse crescer ao ser forçado a ocupar tal posição, questão que motivou Soen a se dedicar ainda mais à tarefa.
No entanto, assim que desmontou de Vhalas e colocou os olhos no primeiro dos médicos que foram recebê-lo, Soen percebeu que jamais haveria apoio populacional o suficiente para livrá-lo da sentença de morte proferida por seu pai.
Era quase um milagre que tantos deles estivessem vivos. Não demorou para Soen notar que estavam tão enfermos quanto os pacientes que tentavam curar, todos desempenhando um papel patético com seus pesados mantos negros que fediam a merda e máscaras com longos bicos curvos, feitas de couro rígido ou ferro forjado, que não os protegeriam nem mesmo de um resfriado.
Caso não estivesse demonstrando sua melhor atuação como príncipe complacente, teria arrancado as ervas aromáticas acumuladas nas protuberâncias de suas máscaras e cortado a garganta de cada um com sua espada, até que se afogassem em seu próprio sangue. Aqueles homens não tinham serventia alguma, além de servirem como fonte de contágio para cada camponês saudável que cruzasse seus caminhos.
Ao menos não foram completamente inúteis: se fizeram tanto esforço para proteger o olfato do miasma da doença e nem mesmo a cânfora e a mirra que preenchiam os bicos de suas máscaras foram capazes de livrá-los dela, então o mau-cheiro liberado pelos corpos contaminados, vivos ou mortos, não era o fator disseminador da morte negra, ao contrário do que a maior parte da população pensava.
E se o cheiro podre de gente morta não era o problema, Soen podia descartar uma das duzentas prováveis causas enquanto voltava para as fortificações robustas e manchadas de fuligem do castelo, já no início do anoitecer, para investigar todas as outras. Seria necessário mais do que um punhado de médicos e uma declaração de quarentena para conter a epidemia, afinal. A Rainha Peste teria que ser derrubada, e a fonte de contágio precisaria ser descoberta antes que o reino ruísse por completo.
— Demônios tendem a desfrutar de ferramentas mundanas para atacar os humanos — Alec afirmava para um Yen-Gato notívago assim que Soen entrou pela porta, a armadura emprestada dos Vineyard ainda cobrindo o corpo grande dele, com exceção do elmo, que ele apoiava no quadril com um braço desleixado. — Precisamos descobrir quais artifícios o demônio a quem a bruxa serve forneceu para ela.
— Onde diabos você esteve durante todo o dia? — Soen inquiriu assim que sua presença foi notada, mantendo a maior distância possível enquanto rumava em direção ao lavabo na outra extremidade do cômodo.
Mesmo que Alec fosse o queridinho dos céus, Soen não achou prudente se aproximar logo após visitar o maior foco da morte negra em Valusyr. Ele era o único imune, até onde sabia, o que significava que precisaria de uma boa higienização e muitos metros de distância de seus aliados pelos próximos três ou quatro dias.
— Estive buscando por notícias de Balthazar — Alec se sentou na cama ao lado de seu primo felino e afastou o cabelo desgrenhado da testa, parecendo cansado. — Acabei perdendo a noção do tempo enquanto falava com Barachiel. As horas correm diferente para eles.
— E como nosso tio está?
— Só sobreviveu por um milagre — suas palavras não eram um exagero. — Barachiel disse que levará um longo tempo até que ele volte a ser o Balthazar que conhecíamos, pois seu cérebro foi afetado pela doença que a maldição desencadeou. Temos que nos preparar para uma recuperação longa e cuidadosa, e duvido que ele retornará nas próximas semanas, o que me leva a perceber que precisaremos de uma desculpa para seu sumiço repentino.
Não que muita gente fosse sentir a falta dele, mas parecia plausível que algum inimigo particularmente atento, como o próprio Othail, usasse o desaparecimento do irmão caçula do rei para alavancar uma série de acusações contra Soen.
— Eu vou cuidar disso ainda essa noite — ele descartou as roupas sujas na varanda, pois Yen se encontrava muito perto da lareira para levá-las ao fogo, afiando suas pequenas garras no estofado já destruído da poltrona que reivindicou para si. — O que você estava dizendo sobre os demônios agora a pouco?
— Estava explicando a Yen sobre os recursos geralmente utilizados por essas criaturas perversas — ele explicou enquanto Soen se limpava. Por sorte, a banheira estava cheia de seu banho de mais cedo, quando precisou lavar o sangue e a tinta de Garon antes de começar seus afazeres. — É comum que demônios ataquem através de pragas mundanas, como Belzebu, O Senhor das Moscas.
"Ignorando crenças populares como 'duendes da peste' e considerando que o orquestrador da epidemia é um demônio, podemos chegar a uma conclusão correta muito mais facilmente do que todos os homens inteligentes do reino juntos", Yen parecia satisfeito com aquela linha de raciocínio. "Olhando por esse lado, é uma benção que o rei nos tenha designado essa tarefa, já que poderemos salvar as pessoas com mais eficiência."
— Basta descobrirmos com qual tipo de infortúnio Eligor, o demônio a quem a bruxa serve, está associado, então poderemos encontrar o disseminador principal da doença. — Alec assentiu com a cabeça loira.
Enquanto isso não acontecia, Soen teria que se contentar em estabilizar a paz entre a população, manter o fluxo de comércios com a devida cautela e limitar a saída das áreas já tomadas pela doença, evitando que a população acabasse ainda mais afetada. O problema era o quanto tudo aquilo parecia fácil, mas não era.
Colocar um reino inteiro em ordem não era algo possível mesmo para o rei em pessoa, mas, felizmente, ele poderia contar com o auxílio de Alec e, com certa certeza, toda a casa Vineyard e seus aliados.
Uma vez que Yen estava ao seu lado e Alec fora tão próximo de Sebastian Vineyard no passado, não haveria muitas preocupações quanto a mão de obra necessária para colocar suas táticas em jogo, mesmo que fosse arriscado usar o Blackthorn primogênito, uma vez que Othail estava ciente de sua existência.
Por sorte, o rei não parecia interessado em desmascarar Alexander em prol de acusá-lo junto a Soen pelo desaparecimento de Yen. Explicar a repentina ressurreição de seu primogênito morto seria muito trabalhoso, e acusá-lo de um conluio junto ao segundo filho não faria qualquer sentido, uma vez que ele poderia ter assumido a posição de herdeiro meramente dando as caras.
Era certo que Othail dizia a verdade ao afirmar que preferia que Alec continuasse morto, de modo que ele deveria se preocupar mais com sua vida do que com a possibilidade de ser exposto à Corte. Seria muito mais fácil fazê-lo desaparecer enquanto seu retorno ainda era um segredo. E considerando que as únicas testemunhas sobre o que aconteceu com Alec eram um gato que podia ler mentes, um bêbado que se encontrava mais morto do que vivo e o Soen, o Príncipe Herdeiro indesejado, bom, as chances não estavam ao seu favor.
E claro, agora também havia Aveille.
— Hum, acabei de perceber que não vi Aveille desde que voltei dos aposentos de Garon — Soen parou de esfregar a pele dentro da banheira de cobre maciço e lançou um olhar inquisitivo pelo cômodo, notando o silêncio carregado que se formou. — Espero, com toda sinceridade, que ela esteja escondida dentro de um dos meus baús. De preferência sem qualquer sinal de pulsação nas veias.
Ao que tudo indicava, a exaustão delirante que o fez dormir durante 14 horas inteiras após a contenção da maldição não foi o único sintoma que o afligiu, considerando que, sob hipótese alguma, Soen teria se esquecido de uma questão de tamanha importância.
Em condições normais, Soen nunca cometeria tamanho relapso. Isso o fez suspeitar que Garon não fora completamente sincero ao assegurar que ele não deveria se preocupar com o preço do ritual. Assim que resolvesse os assuntos urgentes com o rei, ele precisaria se empenhar na tarefa de descartar Garon e buscar um novo bruxo capaz de reverter a maldição que afligia seu primo felino.
"Na verdade..." Yen hesitou por um instante.
— Nós constatamos que seria mais seguro deixá-la ir — Alexander interveio. — Você demorou tempo demais com Garon, e alguém certamente a procuraria, caso ela passasse a noite inteira desaparecida. Isso poderia ser crítico para a honra dela.
— Então está me dizendo que simplesmente deixaram que ela fosse embora? — perguntou Soen, a mente subitamente tomada por uma série de imagens vívidas em que ele atirava seu irmão e seu primo pela janela.
— Ela jurou que não diria nada a ninguém quando explicamos a situação — até mesmo Alec percebeu o quanto suas palavras soavam tolas quando terminou.
"Aveille pode ser uma importante aliada no momento delicado em que nos encontramos", Yen insistiu.
— Ninguém em sã consciência esperaria que ela se alie a mim, e menos ainda a um Vineyard — Soen grasnou. Parecia incabível que precisasse explicar o óbvio para dois generais prodigiosos. — Ela deve estar marcando uma audiência com o rei agora mesmo.
"Você sabe que eu não sou tolo, Soe." Yen alegou, lendo o julgamento crítico nos pensamentos de Soen. "Não a teria deixado ir se suas intenções fossem mesmo nos prejudicar. Eu estive dentro da mente dela desde o momento em que despertou. Aveille não tem intenção alguma de nos entregar, uma vez que isso prejudicaria Alexander."
— Pessoas tendem a mudar de ideia com certa facilidade, especialmente depois que escapam do perigo iminente. Aveille é um risco que eu não preciso correr, então acho bom você manter sua cabecinha amaldiçoada atenta aos pensamentos dela, pois vou trazê-la de volta e será a única vez que faço isso ao mesmo tempo em que poupo sua vida, fui claro?
"Se eu tivesse uma mínima dúvida, não teria permitido que Alec a libertasse. Vamos confiar na vantagem que temos graças a essa maldição incômoda."
— Estou contando com essa regalia fornecida pelo pequeno inconveniente de sua maldição, primo Yen — Soen respondeu a contragosto.
— Desde que Aveille não corra risco de vida, posso trazê-la de volta pessoalmente. Mas estou um tanto confuso, vocês acham que Yen lê pensamentos por causa da Perdere Hominem? — Alec perguntou, ansioso para mudar o rumo da conversa como se Soen pudesse se esquecer da pequena aristocrata outra vez. — Por que uma maldição lhe daria tamanha vantagem?
— Quem sabe? Para que a igreja acrescente um tópico a mais na lista de motivos para queimá-lo vivo? — Soen indagou, mas logo percebeu o quão improvável aquela conclusão soava. Não existia qualquer motivo para uma maldição fornecer tal utilidade.
Agora que pensava sobre isso, não era necessário ser um especialista em magia negra para saber que uma maldição não poderia fornecer nada, apenas tomar e consumir.
"Está me dizendo que Perdere Hominem não tem nada a ver com isso? Então o que é?"
— Imagino que seja o sangue dourado que corre em suas veias. Uma benção dos céus — o príncipe explicou. — Acontece às vezes na família Vineyard, e se deve ao fato de que vocês foram abençoados pelos anjos muito tempo atrás. Veja minhas asas, por exemplo. Eu as ganhei como uma bênção, mas isso só foi possível porque herdei o sangue dourado dos Vineyard através de minha mãe.
— Então como Yen não sofre ao ler mentes igual a você quando manifesta as suas asas?
— As coisas são mais difíceis quando se trata de uma manifestação física. Além disso, ele já sofre o bastante quando muda de gato para homem e vice-versa, não precisa de mais provações para enfrentar.
"Quando penso sobre isso, senti uma dor de cabeça tão forte que quase me enlouqueceu na primeira vez em que fui metamorfoseado em um gato", Yen parecia mais alarmado conforme transmitia seus pensamento, as fendas negras das pupilas se contraindo nas órbitas azuis de seus olhos em um sinal claro de reflexão. Naquele momento, ele parecia mais humano do que andou aparentando desde o dia em que ficou completamente preso naquela forma felina. "Imaginei que fosse culpa da transformação, mas isso só aconteceu na primeira vez."
— E por que essa bênção se manifestou em Yen de repente, logo após a maldição cair sobre ele? — Na medida em que sua curiosidade sobre a estranha habilidade de Yen aumentava, Soen resolveu deixar suas pendências sobre Aveille para mais tarde.
— Eu imagino que os sinais sempre estiveram visíveis — Alec pensou por um momento, e então se voltou na direção de Yen-Gato. — Talvez você sempre tenha tido facilidade em interpretar sentimentos alheios? Entendia com facilidade o que se passava na cabeça das pessoas?
— Sim — Soen respondeu por ele. — Yen sempre teve facilidade para ler as pessoas. Isso está relacionado à sua capacidade de ler mentes?
— Bem, não se trata apenas de ler mentes, não é? Ele também fala em nossas cabeças e consegue controlar com quem faz isso. Acredito que esse dom peculiar tenha se manifestado como um mecanismo de defesa após seu primeiro contato com a bruxaria. Ao conhecer as verdadeiras intenções das pessoas pelos pensamentos, Yen pôde escolher seus aliados com cuidado nesse momento crítico.
Isso significava que, além de possuir certa resistência a Solus, et Salus, Yenned também fora agraciado com um dom tão interessante através do sangue dourado em suas veias, assim como Alexander. Ser um dos favoritos de Deus servia para alguma coisa, afinal.
A nova descoberta fez Soen se recordar da conversa que teve com seu pai nas primeiras horas do dia. Se não fosse uma graça divina como aquela, o que mais poderia conceder a um homem algum tipo de imunidade a uma maldição capaz de matar qualquer um que lhe dedicasse seus sentimentos?
"E quanto ao rei Othail?" Yen questionou, provavelmente vasculhando os pensamentos distraídos de seu primo e fazendo a pergunta que o príncipe dissecava em sua própria mente. "Deve haver algum motivo para ele ter resistido a Solus, et Salus por tanto tempo."
— Suponho que não seja graças a alguma bênção celestial — Soen comentou. — Quando o questionei, ele me disse para perguntar ao meu irmão sobre o primeiro rei da linhagem Blackthorn.
— Ele disse isso? — Alec empalideceu.
"Então ele sabia que Alexander estava vivo e havia retornado a Etheia todo esse tempo..."
— Ele sabe mais do que eu imaginava — Soen respondeu, sentindo-se impaciente. — A questão é: o que, exatamente, ele quis dizer ao mencionar Jeremiah Bertram Blackthorn II?
— Você não conhece as lendas? — A expressão de Alec estava presa entre uma preocupação parcial e um misto de pensamentos distantes.
— Que inferno de lendas são essas?
O Blackthorn mais velho lançou um olhar cheio de palavras não ditas para Yen, parecendo subitamente muito desconfortável com sua presença. O gato percebeu, devolvendo um daqueles olhares ilegíveis típicos, ainda mais enigmáticos agora que suas feições felinas estavam ocultas atrás da máscara de pelagem branca.
— Acho que precisamos ter essa conversa em particular, Soen.
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