Capítulo 17
Na sala do conselho de guerra, o rei Othail Blackthorn III e sua mãe, a Rainha Regente Margaret Blackthorn, sentavam-se em seus respectivos assentos altivos.
Feitas de madeira escura adornada em ouro, as cadeiras acolchoadas exibiam tons de preto e vermelho enferrujado, as cores Blackthorn, e terminavam em braços largos com cabeças de lobos meticulosamente esculpidas.
Nas janelas estreitas, cortinas pesadas bloqueavam qualquer vestígio do sol, fazendo com que somente a luz amarelada das velas nos candelabros iluminasse os rostos velhos que se faziam presentes.
Sentado ao lado do, rei com a cabeça raspada inclinada em uma postura servil, Garon encarava Soen e Alexander com um par de olhos azuis acesos por trás dos cílios ralos.
Já Marcus, o conselheiro da Rainha Regente que se sentava ao lado dela, sequer fez questão de esconder o ódio em suas feições enrugadas enquanto os dois príncipes eram anunciados.
Soen e Alec estavam em pé, do outro lado da grande mesa oval e diante de todo o Conselho, desde o tesoureiro-chefe a marechais, diplomatas e generais. Esses últimos analisavam mapas e relatórios que fizeram Soen torcer o nariz em aversão.
Alexander, por outro lado, parecia tão interessado nos documentos sobre a mesa quanto o próprio Yen teria ficado.
Como Soen suspeitava, seu irmão tivera mais do que aulas de voo no paraíso, e por isso não teve dificuldades em se enfiar na armadura de Yen, deixar algumas mechas de cabelo loiro para fora e assumir a postura impecável de um jovem general.
Desde que Alec não falasse muito e não revelasse o rosto, era provável que tudo saísse como o planejado. Felizmente, o elmo pesado sobre a cabeça dele seria útil para abafar sua voz, que já não era muito diferente do timbre grave de seu primo de primeiro grau.
Além disso, o fato de que ele não era o único trajando uma armadura completa, e tampouco fora visto sem ela nas últimas semanas, pouparia a dupla da necessidade de prestar esclarecimentos.
Mas a farsa não duraria para sempre, e Soen não poderia esquecer que deixou dois guardas mortos, Yen transformado em gato, Balthazar morrendo no chão e Aveille desmaiada e amordaçada sobre a cama em seus aposentos.
Ele estava quase rezando para que nenhum empregado do castelo resolvesse entrar em seu quarto enquanto estivesse fora. Mesmo trancando a porta, alguns deles tinham chaves extras que sempre se mostravam um problema quando o herdeiro do trono enrolava corpos nos lençóis.
— Do que se trata este circo todo? — ele resolveu ir direto ao ponto.
— Este circo, moleque, se trata da sua desobediência e falta de responsabilidade para com o reino — Margaret sibilou entre seus dentes apodrecidos.
Os olhos castanhos da velha rainha exibiam faíscas de conspiração por trás de suas rugas, e a fina coroa de ouro que repousava sobre seu cabelo grisalho — que um dia já fora tão negro quanto o de seu neto — parecia pesada demais para ela, assim como os broches de diamantes, colares de pérolas e vestidos pesados que ela suportava como um fardo em seu corpo curvado.
— A múmia deseja que eu caminhe rumo à morte como uma ovelha obediente? — Soen sorriu com escárnio.
Alec, disfarçado de Yen, deu uma cotovelada discreta em seu irmão enquanto a rainha bufava e resmungava incoerências sobre ele merecer ser açoitado em praça pública, castrado, acorrentado e tudo mais.
Alexander limpou a garganta.
— Se me permite, Vossa Majestade, não estou a par dos últimos acontecimentos, e gostaria de saber por qual razão estou aqui hoje.
Bom. Ele parecia dedicado à tarefa de imitar a voz de Yen, e mesmo que vacilasse um pouco, nenhum daqueles velhos egocêntricos perceberia a diferença.
— Como você bem sabe, príncipe Yenned, todo o continente está em caos. A praga da morte negra tem se espalhado cada vez mais, e, portanto, o reino enfrenta uma crise extrema — Garon tamborilava a mesa com os dedos de sua mão inteira enquanto falava. Estava claro que ele podia ver através do disfarce de Alec. — Os hereges vêm ganhando força em cima disso, e recentemente perdemos uma pequena cidade comercial para os servos do Diabo.
— E por que infernos isso seria problema meu ou de Yen? — Soen limpou uma sujeira imaginária das unhas.
— Além disso — Garon continuou —, o rei Malthus, que governa Reich mais ao sul, parece achar vantajoso aproveitar o momento de crise para pegar algumas terras que nos pertencem, já que eles foram menos afetados pela doença até agora. Esta reunião está sendo realizada com o objetivo de montar uma estratégia contra os invasores.
— Em outras palavras, nós teremos guerra — disse a Rainha Regente.
Soen lançou um olhar inquisitivo para seu pai, buscando qualquer sinal de que as palavras dela não passavam de algum surto de loucura típica dos velhos no final da vida.
O rei Othail apenas fitou seu filho com uma expressão impassível naqueles olhos curiosamente negros da família Blackthorn.
Soen observou muitos olhos castanhos ao longo dos anos, e não importava o quão escuras fossem as íris, sempre era castanho quando posicionado na direção do sol. Exceto os olhos da linhagem real, e especialmente os do rei, que engoliam a luz como se houvesse um tipo de podridão insondável por trás.
Othail era como uma versão envelhecida de seu filho, com aqueles olhos afiados no mesmo tom das pupilas e os cabelos negros que foram meticulosamente penteados para trás, deixando em evidência os fios prateados nas têmporas que revelavam sua idade.
Refletindo poder e riqueza, a coroa de ouro maciço e pedras preciosas incrustadas no topo de sua cabeça tinha um formato circular, com oito arcos que se uniam no topo e formavam uma esfera. No centro, uma cruz de ouro, o símbolo da Única Fé, reluzia contra a luz das velas.
— Vocês mal conseguem jogar fora a merda que os mortos pela praga cagaram antes da descida até o último andar do inferno. Como planejam lutar numa guerra? E eu que pensava ser insensato — ele ainda segurava o olhar de seu pai. — Deixem as terras para as putas de Malthus, se quiserem salvar suas cabeças imprestáveis.
— Seu cachorro está latindo demais hoje, Yenned. O que houve com ele? Está com fome? — O rei Othail finalmente abriu a boca, as palavras hostis contrastando com a elegância de sua figura, toda envolta nos mais caros tecidos vermelhos que um monarca poderia comprar.
Se ele sabia algo sobre a identidade de Alec, e Soen apostava que sim, não demonstrava qualquer vestígio.
— Eu estou faminto pela sua carcaça condenada — o herdeiro do trono sorriu de lado. — Mas o seu cão parece muito pálido hoje. Será que ele viu um fantasma?
Othail e Garon sabiam que Soen falava do conselheiro, que parecia cada vez mais inquieto em seu assento devido à presença de Alexander. Mas a rainha Margaret, alheia ao que acontecia, não pareceu interpretar de tal maneira.
— Bastardo insolente! Cale-se! — ela gritou, pensando ser o cachorro de quem seu neto falava.
— Basta — Othail vociferou para a rainha, e quando todos finalmente se calaram, Othail prosseguiu. — Yenned. Diga-me, como você montaria um ataque contra Reich?
As palavras do rei eram ofensivas para todos os homens presentes.
Ele havia optado por convocar o jovem e pouco experiente príncipe Yenned e questionar a ele, na frente de todos os seus conselheiros e generais, como deveriam realizar o ataque contra o reino rival.
Suas ações deixavam seu favoritismo tão claro que Alec, disfarçado de Yen, se engasgou com as palavras por um instante.
— Temo que não seria possível iniciar um ataque, Vossa Majestade — ele respondeu.
— E por que não? — o rei perguntou, sua voz assumindo o tom inquisitivo de um tutor impaciente.
— Um cerco contra um reino tão economicamente estável e que mantém boas relações com os vizinhos não duraria menos de cinco anos, e caso tentássemos um ataque direto, com a situação atual do nosso exército devido à doença, justo quando mal recuperamos nossos recursos do dano sofrido durante a Grande Fome... Eu temo uma derrota iminente, Vossa Alteza — Alec disse, e foi surpreendentemente bem.
Soen achava que seu irmão não soubesse de nada sobre as guerras mundanas, mas pôde ver que estava enganado. Talvez a Guerra dos Cem Anos, que ele mencionara antes, fosse a responsável por suas informações atualizadas sobre o poder militar dos reinos próximos.
— Então ele está dizendo que concorda com o Príncipe Herdeiro — o conselheiro da rainha resmungou, e então se voltou para o falso Yen. — Você é um guerreiro formidável, príncipe Yenned. Eu admiro a sua honra e a sua fé. Mas se continuar ao lado do príncipe Soen, seu fim não será belo. Estou lhe dando um aviso sincero.
— Eu agradeço o seu conselho, mas peço que o guarde para si mesmo. Não tenho intenção de ouvir — ele respondeu.
Bom, aquilo não parecia exatamente algo que o décimo primeiro na linhagem de sucessão diria. Ou quem sabe fosse exatamente o que ele responderia, e Alec escolhera as palavras certas. Era impossível ter certeza, se tratando de alguém tão difícil de ler quanto Yen.
O Príncipe Herdeiro esperava que todos naquele salão pensassem como ele.
— Por que vocês todos não deixam de lado as escolhas pessoais de meu primo e aproveitam a reunião para tratar de algum assunto relevante? — Soen resolveu intervir. — Como, por exemplo, a doença que está destruindo Etheia? Se não fosse pela morte negra, sequer teríamos de nos preocupar em perder território para outros reinos.
— Todas as medidas cabíveis já foram tomadas a respeito disso — um general que Soen sequer sabia o nome grasnou em seu assento.
Ele era um dos homens presentes que, assim como Alec, trajava uma armadura completa apesar do calor abafado que se fazia no cômodo, e o herdeiro do trono suspeitava que seu objetivo não fosse impor respeito, mas sim usá-la como uma espécie de proteção contra a morte negra.
— Suas medidas cabíveis são uma merda — Soen constatou.
— Então você tem soluções mais eficientes, eu suponho? — a rainha ergueu uma sobrancelha murcha.
— Posso vir a ter. Não seria um trabalho difícil, na verdade — ele respondeu.
— Tomei uma decisão — o rei disse de repente, interrompendo o debate saudável que certamente se seguiria. — Yenned. Soen. Vou dar a vocês três semanas para que se posicionem com eficiência contra a morte negra. E, se falharem, teremos guerra. Mas, se por um acaso seus esforços apresentarem algum sucesso em controlar o surto da doença, então lidaremos com os invasores da forma como os dois acharem melhor.
Alec pareceu tentado a contestar, mas Soen o impediu com um olhar discreto. Não seria do feitio de Yen questionar o rei, por mais inaceitável que fosse a ordem.
Yenned Vineyard acataria aquela decisão e realizaria tal tarefa com êxito, e era o que Soen pretendia fazer.
— Pois bem. Estamos de acordo.
Naquele salão, com as luzes das velas dançando sobre o semblante do rei, Soen enxergou aquela velha expressão traiçoeira rastejando sob a fachada neutra de seu pai.
Ele era pouco mais do que uma criança quando aprendeu a identificar aquele olhar, a pequena torção de lábios e, em especial, aquele sentimento de ódio tão profundamente enraizado que, caso ele fechasse os olhos, continuaria enxergando a raiva de Othail com clareza por trás das pálpebras.
No começo, Soen pensava que toda aquela cólera camuflada sob uma grossa camada de indiferença se devia ao falecimento da rainha e, mais tarde, de todas as seguintes esposas do rei.
Ele não sabia sobre Solus, et Salus naquela época, mas já sabia que, de alguma forma, seu pai o culpava.
E o herdeiro do trono costumava ser capaz de sentir que o rei estava certo.
Segundo a bruxa na Cidade Baixa, a maldição repelia tanto sentimentos negativos quanto positivos, sempre resultando na morte daquele que direcionava tais sentimentos a ele. Pensando nisso, Soen se perguntava como seu pai conseguiu viver por tanto tempo.
Apenas caia e morra, ele pensou, esperando ouvir Yen repreendê-lo em sua mente.
Mas Yenned não estava presente, e Alexander não era capaz de ouvir seus pensamentos. Então ele desejou mais uma vez, só porque podia.
Porque sabia que o rei desejava o mesmo quando olhava para ele, desde os tempos em que não passava de um garotinho desesperado, que se esforçava ao máximo com as aulas de espada e estratégia em busca de reconhecimento.
O pequeno Soen nunca conseguiu o que queria. Ele viveu com aquela ira crescendo às suas costas, e foi mais ou menos naquela época, ao perceber isso, quando começou a jogar um jogo.
Ter se esforçado tanto durante a infância acabou não sendo de todo mal, Soen foi capaz de crescer e se tornar um excelente estrategista. Ninguém podia incriminá-lo caso começasse um incêndio, e ele nunca deixava pistas quando algum jovem nobre insolente de repente surgia boiando em um riacho próximo da capital.
E sem que ele soubesse, sua própria maldição fazia parte do trabalho sozinha, se livrando daqueles que o Herdeiro do Trono odiava e que, para sua sorte, o odiavam de volta.
Talvez fosse por conta disso que Soen entrou naquele salão esperando sair diretamente rumo ao estrado e a forca.
O ódio do rei Othail continuava crescendo, afinal, e ele teria uma nova família quando se casasse novamente. Não poderia se dar ao luxo de morrer ou perder mais uma esposa para a maldição de seu filho. Não quando o peso da idade já começava a castigá-lo.
Ou seja, ele deveria ter pressa em se livrar do herdeiro do trono.
Mas Soen havia se esquecido de que seu pai era o tipo de homem que gostava de fazer jogadas imprudentes. Além disso, ele se divertia causando um tipo específico de desespero.
Conceder aos dois príncipes apenas três semanas para livrar um reino inteiro de uma doença como aquela parecia, sem sombra de dúvidas, uma boa maneira de fazer isso.
Ele planejava quebrar o espírito de seu filho, para depois enfiá-lo na primeira fila para o primeiro ataque contra o reino rival e, finalmente, apagar a mancha que Soen representava em sua linhagem.
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