Capítulo 15
Assim que entrou em seu quarto, Soen notou que Gin ocupava a cama, dormindo confortavelmente com as patas e a barriga para cima.
— Pensei que não te veria tão cedo — ele mediu-a com o olhar, se lembrando do que Alec dissera sobre a demora na recuperação de Gin após o confronto com a bruxa no beco. — Como se recuperou tão rápido?
Yen, que ainda era um gato pulguento e cochilava na poltrona em frente a lareira, despertou com o som da voz de seu primo.
Já Balthazar, que desfrutava do carpete no chão duro, sequer se mexeu. Ele tinha três garrafas, já secas, caídas ao seu lado.
Soen se aproximou e chutou de leve as canelas dele, mas o bêbado não se moveu. Apenas abriu um pouco os olhos desorientados.
— Eles ficaram com os lugares mais confortáveis, foi? — ele desferiu outro chute, divertido.
— Soen... — Balthazar resmungou, sentando-se no chão com dificuldade. — Acho que fiz merda.
— Você acha? — o herdeiro do trono se sentou na extremidade da cama.
— Eu definitivamente fiz.
"Não foi sua culpa", Yen-gato falou em suas mentes, espreguiçando-se na poltrona com aquela bunda branca e gorda para cima.
— Que merda vocês fizeram em minha ausência?
— Bem... É que... — Balthazar começou, fitando o chão.
"Me viram aqui", Yen interrompeu.
— Quem te viu? — Soen encarou seu primo felino.
"Aveille Hazelgrove, a enteada da nossa tia Jezabel. E pior, ela me ouviu falando na mente dela."
Balthazar ficou em silêncio, encarando o carpete enquanto Yen falava. Ele estava suando.
— E vocês não a mataram?
— Deveríamos? — ele perguntou, fazendo cara de bêbado burro.
— Vocês cogitaram, ao menos? — Soen estreitou os olhos para eles.
"Não pudemos fazer nada a respeito, Soe. Eu pensei que estávamos sozinhos e falei sem filtros na cabeça do tio Balthazar. Meus pensamentos descuidados acabaram entrando na mente dela, que se aproximava do seu quarto nessa hora. A culpa foi toda minha."
— Não foi sua culpa, eu que deixei a porta aberta — Balthazar esfregou a testa, parecendo febril. — Eu só pude me fazer de desentendido quando ela entrou de repente.
— E Aveille foi embora pensando o quê?
— Depois que ela viu Yen se escondendo no parapeito da janela, foi embora sem dizer uma palavra. Mas sua expressão deixava claro que ela planeja voltar com os guardas — ele explicou, ainda grogue. — O que vamos fazer, Soen?
Balthazar não precisava dizer que Aveille voltaria com guardas.
A filha do primeiro casamento do duque Gorvel Hazelgrove era conhecida pela sua natureza mesquinha e irritante. Soen até suspeitava que eles fossem parentes.
Sempre movida por interesses e pela sua sede insaciável de difamar os Vineyard, a filha mais velha da família Hazelgrove nunca perdera a chance de complicar a vida de alguém. Especialmente após o falecimento de sua mãe e o repentino casamento de Gorvel com Mirah Vineyard, quando Aveille se tornou uma pedra no sapato da tia materna de Soen.
— Inferno. O que aquela meretriz veio fazer aqui?
— Ela estava à sua procura, Soen. Vossa Majestade deseja vê-lo — Balthazar sussurrou como se fosse um segredo.
— Sim, a Rainha Regente. Já tratei com ela.
"E o que ela queria?", Yen perguntou.
— Nada de interessante, só me matar. O mesmo de sempre.
"Como, dessa vez?" Yen-gato o encarou curiosamente.
— Outra missão, como a de Forgent. Mas Forgent não foi bem planejada, tenho certeza de que na próxima vez se certificariam da minha morte. De qualquer jeito, eu me recusei.
— Você se recusou a acatar uma ordem direta da Rainha Regente? — Balthazar perguntou, incrédulo.
"Não pode fazer isso! Ficou louco?", Yen praticamente gritou em suas cabeças.
— É claro que posso. Eu já o fiz. Vovó não tem mais autoridade do que eu, o herdeiro do trono. O único que poderia me dar ordens diretas é o rei em pessoa, mas duvido que ele o faça. Além disso, os meus argumentos foram válidos.
— E você acha que algum daqueles velhos já se decompondo em vida aceita a argumentação de alguém duzentos anos mais jovem? — Balthazar falou.
— Pouco me importa. Só me interessa dormir agora, então não me atormentem mais por hoje.
"O lado infernal de ser um gato é que você se torna uma criatura noturna. A noite é sua casa, você não dorme, você caça. Suponho que passarei toda a madrugada entediado novamente" Yen-gato lamentou.
— Ninguém liga, Yen, o problema é todo seu. Se você não dorme, pelo menos se mantenha calado, como a nossa amiga Gin — Soen indicou a gata, que não fez nada além de se espreguiçar nos lençóis.
Balthazar riu como um bêbado de botequim.
— Mas então, vai me deixar sair? — ele indagou.
— Sou sua namorada, para não deixar?
— Você tinha me dito para não sair do seu campo de visão — ele pareceu confuso.
— Pois fique à vontade. De qualquer jeito, você saiu para buscar bebidas, e suponho que também tenha encontrado algo para jantar.
"É claro, você saiu e nos deixou sem água ou comida" Yen se intrometeu em defesa do bebum. "Nosso tio encontrou algumas coisas em uma das cozinhas, mas Gin não quis comer nada."
Soen voltou seu olhar para a gata preta, intrigado.
Gin parecia cada vez mais redonda desde a primeira vez que ele a viu, mas ela nunca parecia interessada em se alimentar, mesmo quando ele oferecia parte de suas refeições.
— Me pergunto o que espíritos comem — ele disse, deitando-se ao lado dela.
"Provavelmente não comem nada" Yen-gato pulou na cama para encarar Soen com seus grandes olhos azuis. "O que você foi fazer fora do castelo, afinal? Pelo menos descobriu alguma coisa?"
— Encontrei-me com a bruxa que caminha ao lado da morte e depois fui sequestrado pelo meu irmão morto — pareceu um tanto improvável quando ele falou, mas Yen já estava habituado o suficiente com aquele tipo de situação.
Balthazar, é claro, nem tanto assim.
— E "A Bruxa que Caminha ao Lado da Morte" por acaso seria o nome de alguma taverna que desconheço? — ele perguntou.
"Não, é uma bruxa mesmo", Yen esclareceu.
— Não sou um bêbado miserável como você, Balthazar. Eu realmente vi uma bruxa e também encontrei Alexander, e não estava alucinando pela embriaguez.
— Puta merda — o bêbado exclamou. De alguma forma, ele pareceu ainda mais doente. O herdeiro de Etheia quase desconfiava que o maldito havia contraído a morte negra.
"E o que ele lhe disse?" Yen balançou a ponta da cauda peluda na frente de Soen.
— Vocês são burros demais para que eu explique — o herdeiro da coroa empurrou seu primo felino para longe do rosto antes que lhe causasse uma alergia.
— E qual é a da bruxa? — Balthazar perguntou.
Aparentemente, o tio de Soen era incapaz de entender por si mesmo que, se existiam bruxaria e maldições, naturalmente haveria bruxas.
— Inferno, como vocês enchem o saco. Será uma história longa, mas vou resumir tudo para que não me importunem mais tarde.
Ele suspirou e começou a falar.
♛
Soen não recordava onde havia parado na história que Alec lhe dissera, mas sabia que adormeceu antes de terminar de contá-la. E enquanto dormia, teve um sonho que se parecia com uma lembrança.
O Príncipe Herdeiro estava no beco de novo, seu corpo inerte no chão úmido. A bruxa se abaixou diante dele, nada além de um vulto repulsivo em meio a uma cacofonia de sombras retorcidas.
O miasma de putrefação sufocava seus pulmões enquanto a silhueta preta e desfocada se aproximava lentamente na escuridão. Soen não viu o momento em que a mão completamente negra e pegajosa da bruxa agarrou seu pulso em um aperto frio.
Quando ele percebeu, já era tarde: os dedos longos e esqueléticos fechavam seu punho enquanto o negrume pútrido vazava para a sua pele como tinta, a mancha crescendo de dentro para fora e consumindo seus ossos e carne.
— Eu sou a mão que guia a morte — disse a coisa, sua voz reverberando como os guinchos agudos de milhares de ratos. — E onde eu estiver, ela também estará.
Soen abriu os olhos com aquelas palavras ressoando em sua cabeça.
O sol do meio-dia iluminava seu rosto através da janela, possivelmente a causa de seu despertar. Ou talvez fosse a estranheza do silêncio cortante que se seguia.
Nenhum pensamento de Yen vazando para sua cabeça ou som de passos no corredor. Nem mesmo o ronco de Balthazar podia ser ouvido.
A quietude parecia estranha para ele, talvez devido ao sonho conturbado que tivera ou às longas semanas agitadas desde que descobrira sobre suas duas maldições. Soen estava tão ocupado com todas aquelas questões que quase esquecera seu próprio aniversário.
Embora nunca tivesse se importado com essa data, era provável que aquele fosse seu último aniversário antes de conquistar a coroa e reinar sobre Etheia. Parecia um desperdício não comemorar naquele ano.
Deixando esses pensamentos de lado, ele se espreguiçou na cama.
Balthazar ainda estava no chão, Gin já não estava mais em lugar algum, e Yen continuava ocupando a poltrona, dormindo preguiçosamente como um gato qualquer.
Ele se levantou sofregamente, ainda cansado pelo dia anterior, e foi até Balthazar, chutando suas costelas sem muita força.
— Acorde, seu bêbado miserável. Temos que ver o tamanho do estrago que vocês e Aveille fizeram ontem.
Sem resposta.
Soen chutou outra vez, com um pouco mais de força.
Nada, não parecia normal.
Quando se abaixou perto dele, Soen pôde ver que seu tio estava vermelho e suado. Ele colocou a mão em seu pescoço, sentindo a pele tão quente quanto um caldeirão fervente.
— Diabos! — ele retirou a mão do pescoço pegajoso de Balthazar, mas não antes de perceber que a marca em seu pulso havia aumentado de tamanho.
Desde que Gin encontrara a mancha da maldição, ela já estava três vezes maior, e era possível que continuasse crescendo até que Labe Mortem fosse desfeita. Se alguém percebesse a marca negra que se espalhava na pele dele, associaria a um sinal de bruxaria, e o herdeiro do trono teria problemas.
— Ai de meus ouvidos. Não consegue falar duas frases sem amaldiçoar algo? — uma voz resmungou atrás dele, seguida por um farfalhar semelhante a um bater de asas.
— Nem se quisesse, Alec — ele se virou para vê-lo.
Alexander Blackthorn estava abrindo a janela pelo lado de fora e entrando no cômodo casualmente, como se usar entrada estivesse fora de moda. Ele tinha uma leve expressão dolorida no rosto, mas nenhum sinal de asas em suas costas.
— O que está fazendo aqui? — Soen cobriu o sinal da maldição com a manga da camisa.
— Algo expulsou a gata que lhe dei, então vim ver o que poderia ter acontecido. Pensei que Garon estivesse fazendo alguma coisa — ele pulou para dentro do quarto.
— Isso tem algo a ver com Balthazar inconsciente no chão? — Soen indagou, deixando o assunto da mancha em seu pulso para uma ocasião menos urgente.
Alec encarou o corpo inerte de Balthazar por meio segundo, e então analisou seu irmão de cima a baixo por um tempo consideravelmente maior.
— Parece que é uma maldição presente em você. É poderosa ao ponto de expulsar Gin, por isso me causou estranheza ser coisa do Garon, já que a gata existe para servir como um bloqueio mágico contra ele.
— Então isso não tem nada a ver com Garon — Soen comentou. — Mas como entrou no castelo? Fiquei sabendo que entradas e saídas seriam barradas devido à doença, e duvido que você tenha revelado sua identidade, ou os abutres da Corte estariam em alvoroço.
— Sebastian e eu tínhamos uma rota de fuga secreta para escapadelas. É meio apertada, mas ainda funciona — Alec explicou. — E o que você sabe sobre essa maldição em você?
— Foi nossa mãe — Soen respondeu.
— Mamãe?
— Aparentemente, ela não ficou feliz em dar a vida por mim.
— Mas o que aconteceu não foi sua culpa — Alexander parecia enjoado.
— Ela não sabia disso — Soen descartou o assunto. — Garon disse que vai remover a maldição, mas precisa de tempo.
"A maldição de Soen está matando Balthazar?" Yen-gato perguntou, saltando de sua poltrona.
— Então você já está acordado — Alec se virou e olhou para ele.
Em silêncio, os dois se encararam por um breve momento.
"Sinto muito por vê-lo com essa aparência, Alexander", Yen acabou dizendo.
— Digo o mesmo, Yenned — Alec fez uma breve reverência.
"Então Balthazar foi acometido por Solus, Et Salus. A maldição que não permite a aproximação de ninguém?" Yen-gato se aproximou do homem desacordado. "Não entendo como eu não sofri tais consequências até agora."
— A maldição não o afetou porque você é um dos escolhidos pelos anjos, assim como eu. Por isso, é mais difícil matá-lo do que uma pessoa comum — Alec explicou. — O sangue dourado correndo em suas veias consegue repelir Solus, Et Salus, assim como Gin repele os feitiços de Garon. É uma pena que Perdere Hominem tenha sido lançada por um demônio de extremo poder, senão, você provavelmente estaria livre dela, Yen.
— Caso lancemos uma maldição contra esse bêbado, ele também ficará imune? — Soen apontou com o queixo para o corpo semi-morto de Balthazar.
"Não vamos resolver um problema com outro", Yen interveio.
— Podemos salvá-lo se desfizermos Solus, Et Salus o quanto antes — Alec disse em seguida. — Devemos apressar Garon para desfazer sua maldição, ou não demorará para que Yen e eu também sejamos afetados.
— Certo, eu já tinha planos de ver o conselheiro hoje, de toda forma.
— Posso perguntar como Garon concordou em ajudar com isso? — seu irmão parecia curioso.
— Eu o ameacei um pouco, mas acho que ele quer alguma coisa com você, Yen — Soen olhou de soslaio para seu primo. — Talvez seja casamento.
— Eu não recusaria, se fosse você — Alec deu um meio sorriso, e Soen o acompanhou. Parecia bom ter ajuda para atormentar seu primo de vez em quando, já que Yen e Balthazar haviam se unido contra ele. — Garon não pareceria tão ruim, se não fosse um bruxo manipulador.
— Como não pareceria ruim? Ele já deveria ser velho quando minha avó nasceu — Yen-gato respondeu, indignado.
O herdeiro do trono estava prestes a acrescentar mais um comentário malicioso sobre Yenned quando os passos no corredor ficaram mais altos do que a febre de Balthazar.
Antes que pudessem fazer qualquer coisa além de encarar um ao outro, dois guardas em armaduras de malha da Guarda Real escancararam a porta com um estrondo.
Atrás dos guardas, ninguém menos do que Aveille Hazelgrove os analisou. Seu olhar firme vacilando conforme a presença de Alec parecia cada vez mais real e menos um delírio para ela.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro