Jornada ao Abismo
O vento assoviava sereno e farfalhava gentilmente as folhas jângal banhado pela luz da lua cheia no céu. Entre as árvores, no centro de uma pequena clareira, a fraca luz de uma modesta fogueira iluminava a face do homem sentado à beira dela sobre um toco de madeira. Os fiapos de suas vestes maltrapilhas dançavam ao vento. Os olhos negros e vazios, que pareciam vislumbrar um distante pensar, refletiam intensos o brilho das chamas que ardiam nos gravetos à sua frente, ao contrário de sua armadura negra de aço nobre, já fosca pela sujeira. A estrela dourada em sua mão — condecoração que era dada pelo próprio rei a seletos cavaleiros que exerceram grandes atos de bravura e heroísmo —, antes reluzente, agora não passava de um mero afiador opaco para a lâmina na qual deslizava faiscante. O homem olhou para cima e contemplou a grande lua sobre ele.
— A terceira lua cheia do outono. Hoje é Dia de Odin. A essa hora, todos nós já estaríamos reunidos no salão do Mestre Gorth para comemorar até o amanhecer. Myrla, Aldeor, Thellir, Kyra, Selena... Nós nos divertíamos tanto ao som das canções do Dileon e o seu alaúde. O pior bardo do reino... Hahaha! — O sorriso sumiu aos poucos do rosto do homem. — Se eles tivessem recuado em Portland ainda estariam vivos. Aqueles idiotas... Eu não queria tê-los matado...
O homem então encarou a estrela dourada em sua mão, e a virou, para ler a pequena escritura atrás dela. "À Sir Merick Pallog, O Presa de Prata." Ele deslizou o polegar lentamente sobre as letras gravadas no ouro. Apertando firme a medalha em seus dedos, ele a arremessou nas chamas, fazendo as brasas voarem. Merick acompanhou as fagulhas ascenderem ao céu e se misturarem as estrelas que lá brilhavam. Sua mente viajou por um breve momento aos trágicos acontecimentos que sua jornada o havia proporcionado nos últimos três longos e tenebrosos anos. Ele voltou seu olhar para sua espada Silverfang, a única companhia que lhe restou, e a apoiou ao toco em que estava sentado.
Foi quando o som de galhos sendo quebrados chamou a atenção de Merick. Ele pegou sua espada e se levantou em um salto, encarando a escuridão por entre as árvores à sua direita. Ele buscava algo nas sombras quando uma flecha cortou a penumbra em sua direção, sendo defletida por um golpe rápido de sua lâmina. Merick olhou para o dardo sobre a grama, uma lança de ponta vermelha como rubi e com rêmiges longas como penas de pavão, e exorbitou os olhos ao reconhecer a flecha. Passos se aproximavam rapidamente, e ao retornar o olhar para frente, Merick viu surgiu das sombras um homem com um arco em punho, mirando um novo disparo contra seu rosto.
— Mexa-se de novo, e a próxima vai direto para sua cabeça — disse o tal homem, parando a beira da clareira.
— Aeron?!
Merick estava paralisado. Não restavam dúvidas de que aquele era mesmo Aeron Lothmor, apesar do cabelo mais longo, do corpo forte, e do olhar feroz que nem de longe lembravam os olhos daquele jovem pacifico que um dia já chamou de irmão de batalha.
— Quando ouvi sobre um forasteiro passando pelos arredores de Rollmar há duas luas, soube na hora que era você — disse Aeron. — Não foi fácil rastrear os mínimos rastros que você deixou para trás. Sorte que eu tive um bom professor de caça, não é, Merick?
Apertando com força o cabo de sua espada, Merick respondeu:
— Admito que de todos os cavaleiros que esperava virem atrás da recompensa por minha cabeça, você era o último da minha list... — Antes que o cavaleiro de armadura negra terminasse de falar, a flecha voou do arco de Aeron, e novamente foi rebatida pela espada de Merick. — Você melhorou bastante com o arco.
— Cale a boca! — disse Aeron entre dentes, já colocando uma nova flecha em seu arco. — Que se dane a maldita recompensa. Um milhão de moedas de ouro não são nada perto de tudo o que você fez! Todas aquelas pessoas inocentes... nossos amigos... E tudo isso para quê? Por causa do seu egoísmo? Ela se foi, Merick, por que você não pode aceitar isso?
— Como VOCÊ pode aceitar? — esbravejou Merick. — Eu a amav... Eu a amo, Aeron. Nadine foi a única mulher que já amei em minha vida, e eu a vi morrer em meus braços, pelo fio da minha espada... Você não tem ideia do que eu sinto, da dor que é viver com essa culpa a cada dia!
— Seu egoísta! — Uma nova flecha é disparada, dessa vez acertando de raspão o rosto de Merick. — Acha que eu também não sinto a falta dela? Acha que também não amava a minha irmã? Eu sofro todos os dias assim como você! Mas o que você fez... Não existe luto ou sofrimento que justifiquem essa insanidade!
— EU A MATEI, AERON! Ela estar morta por minha culpa! — As mãos de Merick começam a trepidar. — Se eu tivesse sido mais forte, Mavelord jamais teria escapado e possuído seu corpo...
— Merick, isso não foi culpa sua, aquele demônio teria...
— Então se eu não pude salvá-la antes, se houver a mínima chance que seja, eu irei usá-la.
A fúria de Aeron se reacendeu.
— E como vai fazer isso? Indo atrás de uma lenda sem sentido? Matando todos aqueles que ficarem em seu caminho?
— Eu já estou quase lá... Tudo o que preciso é de mais um único ingrediente e...
— É UM RITUAL INÚTIL! Acha mesmo que isso o levará a um poder forte o bastante para mudar o próprio passado? Não existe força nesse mundo que possa mudar o tempo, Merick, isso tudo não passa de um mito!
Em um avanço rápido, o cavaleiro de armadura negra avançou contra Aeron, e com um corte, partiu seu arco ao meio.
— Logo, tudo será resolvido, e nada disso importará mais — disse Merick com a ponta da espada contra o queixo do rapaz. — Eu não quero ter de fazer isso, então vá embora, por favor...
Como resposta, Aeron sacou sua espada rapidamente, tirando a Silverfang de seu queixo, e encarando Merick, ele disse:
— Se você se recusa a parar, então eu mesmo vou fazer isso!
O rapaz avançou contra o velho amigo, e o tinir das espadas começou a ecoar pela floresta silenciosa. Em meio a árdua batalha, Aeron encurralou Merick contra uma árvore, e num avanço brutal, cravou sua espada contra a barriga do cavaleiro, atravessando não só sua armadura, como também o tronco da árvore em que estava acuado. Com o sangue jorrando do ferimento, Merick segurou as mãos de Aeron sobre o cabo da lâmina. O rapaz continuava a pressioná-la com força contra a árvore. Sentindo a dor aumentar cada vez mais, lágrimas correram pelo rosto do cavaleiro, que reunindo as poucas energias que lhe restavam, tentava dizer alguma coisa. Aeron, também tomado pelas lágrimas, ergueu os olhos e fitou os de seu velho amigo, esperando o brilho da vida os abandonar. Mas para a surpresa do rapaz, a espada de Merick atravessou seu peito, empalando seu coração. Com os olhos exorbitando e o sangue gotejando de sua boca, Aeron tentava, sem sucesso, puxar a mão de Merick. Foi então que ele pode entender o que o cavaleiro estava tentando dizer. Último... ingrediente...
O corpo de Aeron foi de joelhos ao chão, e logo depois, tombou sem vida aos pés de Merick. O cavaleiro lutava para se manter acordado, e puxando a espada em sua barriga, se desprendeu da árvore em que estava. A vida já começava a deixá-lo quando ele rastejou até o corpo do rapaz, e com a mão sobre ele, proferiu algumas palavras incompreensíveis. Um último suspiro, e o corpo de Merick voltou a recosta-se na árvore atrás dele, já sem vida.
De repente, uma torrente de chamas verdes tomou o corpo de Aeron, e logo consumiu tudo a sua volta.
Ao abrir os olhos, Merick se viu diante de uma enorme caverna em forma de cabeça de lobo, por onde escorria um longo rio de sua boca. Ainda incrédulo por estar vivo, num piscar de olhos, o cavaleiro se viu dentro da caverna, diante de um colossal emaranhado de fios dourados reluzentes. De dentro deles, uma voz profunda pareceu rugir na mente de Merick, que foi ao chão com as mãos sobre as orelhas, tentando abafá-la. Nesse momento, em meio à uma dor aguda, os olhos do cavaleiro se tornaram amarelos, seus cabelos ficaram cor de prata, garras rasgaram a pele de seus dedos, e presas longas partiram suas gengivas. Tudo se tornou escuro.
Quando sua visão e sua consciência retornaram, o cavaleiro estava no alto de uma torre sobre uma cidade em chamas. Em sua mão, estava a cabeça decepada do Rei Beor. Aos seus pés, toda a capital, banhada a sangue e fogo.
Merick conseguiu o que queria, mas o preço que pagou foi alto demais. O preço de uma vida que jamais retornará. Naquele dia, Merick Pallog se foi. Mas naquele dia, nasceu Gerian Wolfenrir, a besta de Runallem.
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