38 - VOCÊ TERIA ATIRADO?
Por que estou tão emotivo?
Não, não dá pra ficar assim
Adquira algum autocontrole
E lá no fundo eu sei que isso nunca funciona
Mas você pode deitar aqui
comigo para que não doa
Sam Smith - Stay With Me
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Cada um foi para um canto. Carlos não queria voltar para o quarto e sentia que no fundo Kai estava certo, aquilo era um inferno e quanto mais cedo eles voltassem para as suas rotinas normais, melhor seria para eles. Mesmo assim Carlos se sentia melancólico ao pensar nisso.
Ele caminhou pelo convés silenciosamente. Olhou para o céu já escuro e tentou enxergar a costa. Ele sabia que estavam perto, mas tudo o que ele via era um breu sem fim. Apesar do vento gelado ele não voltou para pegar uma blusa mais quente, ele apenas se encostou na grade do navio e ficou olhando para a escuridão.
Ele sentiu como alguém o observava, como dois olhos cravavam em suas costas, mas ele não se virou, não precisava fazê-lo para saber que era Lissa. Ele pôde sentir o como o fio que os unia desde o contrato se estreitava.
– Aylin nos contou tudo – ele falou sem se virar – Não exatamente tudo, mas nos contou sobre a Kat e a ala 9.
O silêncio tomou conta do lugar e ele chegou a se perguntar se ela ao menos tinha escutado o que ele tinha falado.
– Você teria atirado? Digo... eu por alguma razão estranha lembro de ter te segurado e você me apontando uma arma para que eu parasse. Você teria atirado?
– Sim, eu teria atirado – ele respondeu sem nem um pingo de dúvida na voz.
Ela engoliu em seco e sentiu o quanto necessitava de água, mas se segurou ali.
– Por quê?
– Porque nosso contrato não te permite invadir nossa cabeça sem a nossa autorização.
– Mas se eu rompesse isso, vocês me teriam como escrava. Não vejo onde vocês perderiam.
– Não quero escravos, tenho subordinados que dariam suas vidas por mim. Para que eu iria querer uma escrava?
Ele se virou e a encarou, seu olhar era gélido e o sorriso que ele manteve por tantos anos junto com a sua simpatia simplesmente se dissolvia pouco a pouco naquele mundo estranho. Ela fez uma careta para não ter de responder a sua pergunta e ele apertou os olhos antes de seguir.
– Que nojo. Com que tipo de homens vocês andam se encontrando no fim das contas?
– Com os que estão espalhados por aí.
– Vocês com certeza têm um azar fora do comum – ele respondeu e se virou novamente para o vazio a sua frente.
– Vocês vão embora? – ela perguntou baixo, mas ele ouviu o quanto a sua voz soava triste.
– Provavelmente sim – ele respondeu tranquilamente.
– Entendo – ela suspirou – posso encostar do seu lado?
Carlos sentiu o corpo um pouco tenso. Ele não sabia como seguiria se segurando perto dela. Apesar de tudo o que ela fez, tudo o que ela era, ele seguia sentindo essa atração estranha e esse sentimento sufocante que o fazia querer guardá-la só para ele.
Vendo que ele não respondia, ela se aproximou devagar.
– Se algum dia precisarem de alguma coisa, procurem a Layla ou a Senka. A Aylin dificilmente sai do navio, mas também podem procurá-la.
– Nós não precisamos de vocês, Lissa – sua voz saiu grosseira, mas ele estava certo.
– Eu sei – Lissa sorriu com tristeza na voz – Essa foi a primeira escolha errada que eu fiz, não estou sabendo lidar com isso. Sei que vocês não precisam de nós, mas nós sem dúvidas precisamos de vocês. A Aylin sabe como me matar, mas ela não quer. Isso me mataria, mataria Tenko, mataria o meu irmão e a nogitsune dele. De quebra elas poderiam buscar a rainha e fazer o mesmo com ela. Mas a Aylin se recusa a fazer isso. Acho que perdi minha voz como líder das Kitsunes quando coloquei vocês para dentro do navio. Realmente a melhor escolha é quebrar esse contrato e cada um seguir um rumo diferente. Eu acho que vocês já sabem disso.
Carlos teve vontade de se virar para ela novamente, mas fez um esforço absurdo para manter seus olhos fixos no nada.
– A Maia – Lissa falou com um riso frouxo – ela aceitou vocês muito bem. Eu desconfiei e entrei na cabeça dela. Sei que isso não está certo, mas cedi a esse desejo e a invadi... sei que ela falou com vocês logo no começo para que vocês seguissem sendo vocês. Inicialmente eu não entendi o porquê ela havia feito aquilo, mas com o tempo eu pude perceber. A Maia nunca me desobedece, ela nunca vai contra uma ordem minha e se eu a mandar me matar, ela irá fazer isso, se eu a mandar se matar, ela irá se matar..., mas isso não se aplica a vocês. Como vocês retém o meu contrato, ela queria que vocês tomassem as rédeas para que eu parasse de me "sacrificar" por resultados. Ela não estava pensando nas vidas que eu roubo, ela só estava pensando em mim. Foi isso que ela pensou até se apaixonar por você, mas você não a quer. Você é um enigma, um quebra cabeça que eu não sou capaz de desvendar. Os homens em geral são muito simples. Bastou uma palavra para o Kai estar comigo...
– Não julgue o Kai, você não tem noção da influência que você tem... – Carlos por algum motivo se sentiu no dever de defender o seu líder, principalmente porque ele sabia do poder que ela tinha sobre eles.
– Eu sei sim – quando ela falou isso, ele finalmente a olhou surpreso e ela deu um sorriso sem graça – Está surpreso por eu saber disso? Posso não ter entrado na cabeça de vocês, mas não se esqueçam que eu posso e faço isso com os meus subordinados quando acho necessário. Eu entendo que esse sentimento estranho que eu causo desaparece quando a pessoa se apaixona, chego a me divertir formando casais dentro do navio. Fiquei feliz quando a Senka deixou de sentir isso, ela e o Luc estão se dando bem pelo visto. Sei que a Layla não vai deixar de sentir o que sente, porque o que ela sente por mim é real demais, mas eu nunca tinha sentido essa dor realmente. Nunca entendi o que eu de fato causo nas pessoas, até você aparecer.
– Eu não acho que eu tenha feito alguma coisa – Carlos suspirou ao constatar que ele sentia tudo o que ela acreditava que não.
– Eu não sei o que você sente, nem o que os outros sentem. A Aylin não se interessa por ninguém em particular, mas notei como pouco a pouco esse sentimento a abandonou também desde que vocês chegaram. Eu fico feliz quando eu sinto que eles superaram porque não posso retribuir o sentimento de nenhum deles, mas nunca fui nobre de não me aproveitar disso. Eu não sei o que você sente por mim ou não, é frustrante não poder entrar aí dentro para ter certeza – Lissa voltou a sorrir tristemente – Mas, apesar disso, me impressionei ao constatar que não me importo com isso, não me importa o que você sente por mim ou não, o que importa é que você e eles estejam bem e eu vou romper essa linha, nem que eu tenha que me matar um milhão de vezes.
– Não se preocupe com os Malphas, não somos Kitsunes... se preocupe com os seus subordinados e não com a gente.
- É aí que está o problema. Eu não vejo vocês como meus subordinados, mas simplesmente não consigo me desvencilhar de vocês. Talvez vocês irem embora seja algo bom no fim das contas, eu terei que superar a dor sem ter a escolha, mas enquanto eu puder escolher, eu quero muito que vocês fiquem e isso não está certo.
– Espero que você saiba que eu não gosto do que você faz na ala 9, são vidas inocentes e você sabe.
– São vidas das minhas Kitsunes e para a minha sorte, você não tem o poder sobre elas. Não pense que eu gosto do que faço. Não é como se eu me orgulhasse da minha vida, mas me fala, o que você faria no meu lugar? Qual seria a sua solução para tudo isso?
Carlos pensou um pouco, mas ele não tinha uma resposta. Ele tentou de todas as maneiras possíveis se imaginar no lugar dela e simplesmente não conseguia. O destino da moça ao seu lado parecia terrível demais para aceitar.
– O que você quer da gente afinal de contas Lissa? – Carlos suspirou e olhou em direção as ondas que batiam no casco do navio.
– Ainda quero o mesmo que antes. Quero fazer vocês chegarem no topo. Tenho meios para conseguir isso, mas você está certo, vocês não precisam de nós.
– Kai vai querer fazer as coisas da maneira dele a partir de agora – Carlos deu de ombros.
– Vocês sempre tiveram autonomia para isso – Lissa respondeu tranquilamente e olhou também para as águas que batiam no navio – Para isso está o contrato.
Os dois ficaram em silêncio e Carlos notava como sua vontade de estar com Lissa só aumentava. Ele a olhou de canto e notou o quanto ela parecia uma simples garota, com seu cabelo bagunçado e suas tranças misturadas no meio de alguns nós.
– Eu já me perguntei algumas vezes – ela falou se inclinando um pouco mais para ver melhor as águas – O que aconteceria se eu me jogasse em alto-mar e ficasse por ali. Se eu morresse ali, eu não teria como roubar a vida de ninguém.
Ele notou como seus olhos brilharam com alguma emoção contida, como se o que ela estivesse falando fosse realmente algo bom.
– Eu não acho que essa seja a melhor saída – ele resmungou, mas ela nem pareceu notar.
– Eu acho que sou covarde demais para isso – ela inclinou um pouco mais o corpo e ele por um momento teve o impulso de segurá-la, mas não chegou a encostar nela.
– Eu não acho que quem corta o próprio pescoço e arranca os próprios membros para salvar alguém seja alguém covarde – ele falou com o coração aos pulos pelo medo dela cair.
– Mas são sofrimentos que eu sei que irão acabar, eu tentei me manter ferida apenas uma vez, mas não aguentei... – ela olhou com certo fascínio para a lua refletida na água antes de continuar – mas o mar... o mar seria um algoz implacável que me impediria de roubar novas vidas.
Chegou uma hora que ela se inclinou de tal maneira que ele simplesmente não conteve o impulso e a segurou puxando-a de volta pela cintura para a segurança do navio.
O corpo de Lissa tremeu ao toque dele e apenas isso fez o frio na barriga de Carlos aumentar. Sentiu como o esforço para simplesmente soltá-la se tornava cada vez maior, mas conseguiu tirar as mãos do corpo da moça.
– A vida de vocês seria muito mais fácil – ela falou sem se virar para ele.
– Mas não a da Kat – as palavras simplesmente saíram da sua boca e o corpo dela se enrijeceu por completo.
Por um momento ele pensou que ela gritaria com ele, mas notou em seu silêncio pequenos soluços de choro e se sentiu culpado por ter dito algo assim para ela.
Ela se virou ainda com a cabeça baixa e deu 3 passos vacilantes antes de Carlos finalmente se decidir a puxá-la de novo e enlaçá-la em um abraço.
Primeiro ela ficou surpresa, depois ela enterrou o rosto em seu peito e passou seu braço por seu corpo, agarrou sua camisa com força e chorou em desespero.
O choro foi diminuindo, e mesmo assim eles não se soltaram inicialmente e quando o fizeram, ele se sentou no chão e ela se sentou ao seu lado.
Ele levou seu olhar para as estrelas e sentiu a hora em que ela apenas apoiava a cabeça em seu ombro enquanto algumas lágrimas ainda insistiam em rolar de seus olhos cansados e foi aí que ele se deu conta de que ela havia perdido o direito de morrer, havia perdido a única certeza que todos temos na vida. Ela havia perdido o direito de seguir aqueles que ela amava para uma outra vida e ele notou o quão pesado esse fardo podia ser.
Não se passou muito para que ele sentisse o corpo dela finalmente relaxando e escutou sua respiração ir normalizando e ficando um pouco mais pesada. Com delicadeza ele a pegou nos braços e notou o quão leve ela era. Ele não havia percebido isso na primeira vez talvez pelo desespero, mas ela pesava tão pouco quanto uma criança. Ela passou seus braços pelo pescoço dele, mas ele sabia que mesmo com esse gesto ela não havia acordado.
Calmamente ele seguiu pelos corredores iluminados e luxuosos do navio das Kitsunes até chegar na porta da suíte dela. Ele ficou um tempo parado tentando pensar em como abriria a porta sem soltar a moça e para a sua sorte havia um subordinado qualquer passando que acabou por fazer esse favor para ele.
Cuidadosamente ele a colocou na cama, tirou a sandália rústica que ela usava de seus pés pequenos e delicados e depois a cobriu.
A olhou um tempo tentando se decidir o que de fato sentia por ela, mas no fim apenas suspirou frustrado por não conseguir uma resposta.
Quando ele se virou para ir embora, Lissa estendeu a mão e o segurou pela roupa.
– Por favor – a voz dela saía fraca e quase inaudível – Fica aqui comigo. Sei que você não me quer, mas eu juro que só quero a sua companhia.
Ele se virou para ela, viu seus olhos ainda fechados, mas que voltavam a estar molhados.
– Deita aqui comigo, por favor – ela repetiu de novo – só até eu dormir de novo.
Ele ficou parado alguns segundos de pé antes de decidir a se deitar ao lado dela e sentiu como ela se aninhava em seu corpo sem nenhuma malícia. Ele podia sentir sua respiração calma e controlada contra a sua camisa.
– Você tem um cheiro bom – ela falou baixo ainda sem abrir os olhos – eu gosto desse perfume.
Ele tentou em vão controlar o ritmo descompassado de seu coração, mas era impossível. Ele ficou na dúvida se corria dali ou simplesmente deixava ela dormir ao seu lado.
– Obrigada por ficar comigo – ela falou já quase dormindo de novo e foi o suficiente para que toda a sua resistência acabasse. Ele passou seu braço por debaixo de seu pescoço e a aconchegou melhor junto a ele. Ele ficou ali, sentindo-a até que ele também pegasse no sono.
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