O Sopro: Fragmento IV - O Encontro com a Própria História
Saiu de lá com mil pensamentos na cabeça. Desde sua chegada ao Monte, o número de coisas para resolver apenas crescia. E agora tinha que se preocupar em deixar certo lugar fechado, para sempre, para nunca mais, por uma eternidade de sofrimento, aguardando que fosse silenciado ou pelo próprio tempo, ou por alguém, quem sabe, como Bellara. Era só o que Kings Aderio queria saber daquele lugar. Nada mais sobre ele. Nunca mais.
Ainda falta muito por resolver: Oromergius tramava algo em Saiarboria com tantas carroças e pedregulhos; havia um livro com aspecto estranho na casa de Olbett Tistein que datava do tempo de Adverus Aramor; no encalço dos chupa-cabras e da luxsa, um perigo iminente com o nome vil de Sacerdotisa, e esta não uma de Sangue, mas da Ordem do Sol; e, por fim, e não menos importante, a nelia, perdida entre florestas e a distância, buscando um fardo sem descanso.
Tantas coisas que fizeram o dracus desejar por outra vida em outro tempo. Caminhava envolvido pela capa, a neblina e a noite, e tudo o que tocava era em sua espada. Ambel recebia os dedos de Ade como se aquele fosse o rosto de sua amada. Quando tocada, Ade quase podia se transportar para um tempo onde não havia demônios, deuses, dragões, florestas, sacerdotisas, vampiros, mulheres e tantas coisas que vira em seu caminho. Havendo apenas ela num cenário de flores, colo e saborosos momentos. Com aquela que o traria de algum jeito à vida. Era um dracus, tinha de conseguir. Salvaria a Ambel da morte já adormecida há tanto tempo. Salvaria, era para isso que Kings Aderio existia...
Assim um dia pensou, e deixou de pensar, e, só agora, voltou a novamente pensar. Em vão.
Sem dar-se conta, já estava no castelo, recebido de maneira taciturna pelos guardas, desfazendo-se das escoltas sugeridas — para não dizer quase impostas —, e já caindo sem roupas no estofado macio da enorme cama. Kings Aderio olhou para a cortina descendo pelo dossel uma última vez. Estava sozinho e variava remexendo no travesseiro como uma criança febril. As duas espadas ali ao lado encostadas numa pequena mesa com uma vela por se apagar, foram as únicas a presenciarem o que ocorreria durante uma noite que pareceria não ter fim. E cujo fim espreitando atrás da janela seria devastador.
Tudo muito escuro no mundo dos sonhos. Apesar disso, tinha a sensação de estar relaxado, de ser ninado como um bebê. Aquela sensação em posição de criança quando na barriga da mãe. A noite não poderia correr depressa. Tinha de continuar como estava. Deleitado pelos travesseiros amassados por seus dedos. O corpo querendo arquear em pensamento. As pernas em frenesi, buscavam por se esfregar, quase de encontro ao ápice do relaxamento. Isso tudo no mundo dos sonhos. Os olhos de Kings Aderio piscaram ainda que fechados, apertando-se forte, o cheiro de amor rondando sua madrugada. Respirava depressa como se tivesse corrido demais, como se estivesse demasiado cansado por ter sido dominado. O domínio às vezes lhe agradava, em seletas ocasiões. Pensar nestas ocasiões fez os olhos não piscarem, de modo que recorreram à luz da janela opaca por um turbilhão de manchas cinzentas como nuvens. Algumas rondavam ali mesmo em formas imprecisas, abraçando sedutoras ao armário. Depois disso, Ade percebeu estar encharcado. Antes indagou-se se foi de sangue. Não, não tinha esse cheiro. O suor? Certamente, escorrendo perene pelo corpo e o lençol desarrumado. E não só o suor.
Foi então que teve um susto.
Em sua frente estava uma mulher bastante familiar — e, um enorme porém, — sem seu adereço pontudo vestindo os cabelos vermelhos descendo-lhe pelos dois ombros. Todavia, olhava de maneira cruel para Kings Aderio, a cama voltada para um luar cortinado graças à neblina que ali nunca cessava.
Ade estava sem as calças por debaixo dos lençóis, e a mulher que o observava de maneira tão lasciva deslizava com o dedo indicador e o polegar pelo desenho dos lábios, passando morosa e provocantemente a garra que não era unha alguma. A primeira coisa que Kings Aderio pensou foi em levar a mão ao pescoço. Certamente algo de fraco sentiria, o pulso do sangue alternando um ritmo de melodia fatal, não seria normal, orifícios os quais não deveriam estar lá. Ade percebeu, contudo, que não era ali o lugar de seu corpo em que a umidade lhe tangia, sem contar que ainda lhe molhava. Em sua frente, observando Kings Aderio na altura da cintura, lábios generosos lhe sorriam à meio luar.
— Acho que deveria procurar em outro lugar... — respondeu para Ade olhando lasciva para o volume nas cobertas
— Vampira — disse ríspido o dracus.
— Tenho nome, bebê de fogo...
Kings Aderio rememorou o encontro com Olbett Tistein e sua companheira.
— Atéa — disse Ade se refugiando do olhar vermelho.
Atéa lambeu os lábios longamente, passando os dedos sobre eles, como se acabasse de ter saboreado uma fruta vistosa.
— Pedi e respondeu... Devo admitir que você responde bem mesmo a um... estímulo — disse Atéa risonha descansando o olhar no lençol.
— O que faz nesse lugar? Como chegou aqui?
Atéa fez um olhar de desprezo para Ade.
— Como se não soubesse — indicou a janela. — A neblina me serve de cama e manto, você sabe disso.
— Poderia ter sido por intermédio do ilustre senhor de Nianda — disse Kings Aderio com um desprezo maior do que o de Atéa.
— Não sejamos estúpidos. Ilustre nem o sol o é. Muito menos este que pensa ser senhor desta cidade quando não aguenta as próprias costas.
— Sabendo o que você é, preciso perguntar se estou dormindo ou acordado.
— O dracus tem astúcia mesmo... Sabe que viajo pelas mentes quando me agrada. Mas está acordado. E muito bem acordado — Atéa voltou-se de novo para o lençol e para o rosto de Ade, mordendo os lábios inferiores com as presas, bem de mansinho.
— Atéa, o que você fez?
— Nada que você já não desejava...
A vampira encostou-se na parede, só muito de vez em quando o luar mostrava seu rosto de um cobre bruto. Reluzentes como as chamas da aurora celeste eram seus olhos brilhando no escuro. Ameaçadores, Aderio conhecia um olhar letal quando o via em sua frente. E aquele era um deles, apesar da língua indo e vindo de sua boca. Suspeitava do porquê desta visita em meio à madruga logo depois de ter com o além-túmulo. Nada mais lhe restava acontecer, pensava Ade. Nada, aí, à sua frente... uma mulher. A mulher de seu bom amigo Olbett Tistein. Olbett...
— E Olbett, o que houve com ele?
— Está com a nova colega, experimentando a nova encomenda — Atéa levou a ponta das garras delicadamente às têmporas como se ali colocasse uma coroa. — Agora que o vi, também quero um objeto igual, será seu presente para mim, pode gravar na forma de asas de um corvo, gosto delas. Quanto à nova hóspede de Tistein, trata-se de uma mulher curiosa, a chupa-cabra. Aliás, vocês pretendem algo bem perigoso. Pode terminar muito errado... hmm vejo que já pensou em como irá me entregar meu presente — Atéa mordeu divertida a língua longa. —, alguns detalhes eu gostei...
— Eu não pensei nada, luxsa...
— Astuto mesmo, o dracus — Atéa fez um barulho com a língua atrás dos dentes em provocação. — Deixe-me brincar agora que estamos conversando com tanto zelo.
— O diadema de Ellera. Ele funcionou?
— Como lhe disse, há uma possibilidade de isso dar muito errado. Aquela mulher que você conhecia, já não existe mais. Isso lhe asseguro. Tornou-se tão atraente quanto uma corda enrolada no pescoço. Com certeza não a escolheria como inimiga. Ela se lembra de tudo: de você, da filha, do há muito falecido esposo, de você, de Tistein, de você... A mim ela estava conhecendo aos poucos, uhum, bem aos poucos... eu já falei que lembra de você?
— Isso foi engendrado por Tistein, então vai funcionar.
— Se não funcionar estarão aguardando um grande infortúnio. Temo mais por ela do que por você. Uma criatura tão bela, ser caçada, e matar tantos que a caçarem. Temo mesmo. Tis já se tornou confidente dela. Tagarela sobre você a cada curiosidade que a poderosa criatura possui. Poderosa, de fato. Acho que canções serão feitas sobre ela, se os infortúnios não vierem. Bom, e é sobre tagarelices que vim até aqui.
Kings Aderio finalmente saiu de corpo quase nu, não se importando com os olhares sedutores de Atéa. Vestiu-se com uma camisa de malha de metal e com suas calças grossas. De alguma maneira, achava que a conversa não terminaria naquele quarto ou no Monte. Eberlen e Ambel continuavam uma ao lado da outra na cama, e ali não ficariam, assim esperava.
— Ereianor, Kings Aderio. É por isso que estou aqui. Para incorrer num dos fragmentos de seu Sopro.
— Olbett lhe disse isso?
— Não, sua mente me disse muito mais. Hoje sei como é fácil possuí-lo, ainda mais que nutre desejo por mim desde o dia em que nos vimos pela primeira vez.
— Eu já tratei com criaturas como você antes.
— Não — Atéa abriu um largo sorriso para Kings Aderio, a cabeça levantada fez o luar mostrar o pescoço alto. — Como eu não há.
— Vamos ao que lhe trouxe aqui...
— Ellera, Tistein e eu nos debruçamos sobre coisas estranhas enquanto de sua ausência. Todas voltadas a vocês, dracus, ressurgidos nesse tempo para trazerem a paz e, junto à paz, o caos. E uma coisa Olbett me disse e guardei por bem: você, Kings Aderio, é o único na história que foi capaz de receber as três chamas de seu padrinho. Você é o único que se lembra de algo do qual julga não ter responsabilidade. Uma coisa que não viveu. Mas é como são seus pensamentos por mim, por Ellera, por seus companheiros, a imponente Bellara de Luniestra. Eles ficam em sua mente, desejos ficam guardados, o desejo de rever seus amigos juntos ao abraço de uma fogueira, rumo a mais uma aventura; o desejo de se encantar por um novo poder surpreendente da filha de Luniestra; desejar algo comigo, com Ellera, a senhora Iala, coisas que não aconteceram, estas também ficam na mente. O que não aconteceu ali fica. E esta que você tem aí não aconteceu, não é sua, e pode ser um desejo de seu padrinho.
— Perdemos nossa memória quando saímos do Vale Ordaz.
— Mas você não a perdeu totalmente. Ainda há um pouco da verdade daquele lugar em você. Muito mais do que enxergaram seus olhos. Sabe, Kings Aderio, eu sou muito antiga. Muito. Já vi coisas de todos os tipos, e já fiz coisas de todos os tipos também. Tive centenas de profissões, milhares de histórias, e foram as histórias o que mais me chamaram atenção no mundo, porque é através delas que os ciclos de vida e morte se situam, da primeira Fenda à última. Por andar com a história posso dizer que o tempo do Erguimento é verdadeiro. Posso dizer que os terrores acontecidos para erguer Beon, a Agulha, o Silêncio, e tantos outros lugares que desafiam o poder dos deuses, também são verdadeiros. Saber das verdades sempre me fez astuta, esquiva quanto à queda da areia da ampulheta. Digamos que por mim a areia nunca parou de cair. Sempre haveria um grão caindo, caindo, caindo... Mas a história é imperdoável, e por mais que você fuja dela, ela vai lhe encontrar. A ampulheta por nos verter. Nós que andamos com ela levamos responsabilidades, estas eu não queria ter nem nunca quis. Contudo, é como lhe disse, a história é imperdoável, e de alguma maneira minhas fugas não seriam mais possíveis. O momento foi quando nos encontramos e suas chamas me resgataram do passado, junto às minhas responsabilidades. Quando andamos pela história entendemos o que pode vir a seguir. Palavras tortas podem gerar alguém, e os deuses gostam de brincar de dados para ver se este alguém trará nada, a paz ou o caos. Naros Loa-Bornos assim aconteceu; Lerissala, a deusa caída, assim aconteceu, e duas vezes, ambas com protagonismo das forças mais poderosas de uma batalha, que são vocês, dracus. E que ironia, a própria origem do Terror do Mundo: Naros Loa-Bornos. O primeiro dracus.
— Vocês antigos gostam mesmo de preâmbulos — disse Kings Aderio lembrando-se do cemitério. — Mas isso já foi dito pelo próprio gênio.
— E também foi lhe dito por outro hoje, que algo vem — Kings Aderio teve a sensação horrível com aquelas palavras. — Sim, dracus, algo vem, e vem do lugar que você enxerga sem nunca ter visto por si.
— Enigmas. Desde que saí daquele castelo de Luniestra, tudo o que me segue são enigmas. A mim, não aos outros. Parece um novelo que tiro um nó para fazer quatro nós mais.
— Isso segue vocês desde os primeiros dracus deste continente.
Kings Aderio depositou a desconfiança naqueles globos brilhantes à sua frente.
— Venha para o luar, já basta a história obscura, e você quer fazer parte da escuridão toda também.
— A escuridão é parte de mim — disse Atéa se aproximando-se mais de Kings Aderio.
— Escuridão é só o que nós, os cinco — disse Ade com pesar lembrando que faltavam dois deles. — Os cinco temos vivido. E você parece saber muito mais do que muitos, inclusive do que os viventes do sul do continente.
O sul do continente foi o caminho trilhado pelos campeões de Bellara antes de se tornarem dracus. Lá um terreno inóspito só dá passagem aos mais fortes. É lá o berço dos dracus. É lá que fica o Vale Ordaz.
— Disse que andei com a história, isso me faz a própria história. Ela alcança a todos, sem exceção: quem planta há de colher algo. Ela me alcançou e agora meu papel deve ser desempenhado. E o de vocês, dracus, também — Atéa pegou um castiçal de ouro. Estava apagado. Num toque como se cutucasse a pontinha de um nariz, a chama se revelou em cada uma das cinco velas. Seu olhar se encheu de altivez, a voz entrava diretamente na mente de Aderio. — O tempo de buscas infundadas acabou. É tempo da luta chegar. Anos se passaram desde o Vale Ordaz e da Arrebentação do Pináculo. Tempo que vocês tiveram para se preparar contra o sopro capaz de dobrar a morte. O poder para fender montanhas será necessário. O tempo disso acontecer é iminente. A armadura do destino, serão vocês. Viram o tamanho de Adverus Aramor. Já tiveram um embate aterrorizante contra uma deusa caída. Venceram, mas enfraquecida, pois Lorde e Rei Ecanda mostrou-se astuto quanto à maldição que ele próprio perpetrou sobre o mundo. Mas o resultado... foi o qual vocês tiveram um doloroso contato. Eu volto a repetir, Kings Aderio, você e os outros dracus precisam parar de brincar.
— Sempre que Bedaya diz que algo vem nós nos colocamos a postos para o pior. Olbett nem se fala. Agora você entra na lista.
— Pois eleve esse pior a níveis inimagináveis. Algo vem por raiva. Algo vem por vingança. Algo vem para, nas linhas do que este algo pensa, um glorioso fim.
— E vem de minha memória?
— Do lugar que você vê em sua memória.
— Então me diga exatamente onde é este lugar.
— Eu tenho um papel, Kings Aderio. E não é este. Também tenho o papel de cuidar de outros muito importantes a mim.
Atéa andou pelo quarto até uma mesa de canto adornada com arabescos dourados. Uma poltrona aguardou pela vampira sentar ali. Mas só ficou observando, esperando, ouvindo o que aquela mulher trazia em seu coração.
— Eu lhe dei dois alertas.
— Dos quais um era me atentar aos detalhes. Quais não estou observando?
Atéa soltou o ar decepcionada.
— Você viu o quanto Tis está magro. Pensa que sou eu sugando-lhe a vida. Não. É aquele maldito livro em formato de estrela que você trouxe. Tis vem perdendo a vitalidade. Ele come pouco, vomita tudo o que ingere. Ele consome o livro. E o livro... o livro devora a ele. O destino de Tis é o mais rápido a se perder com o destino errático do Sopro.
— Então tire-o de perto do livro.
— Estamos falando de Olbett Tistein. Ele não fará outra coisa até saber tudo o que puder do que lhe for valoroso. Não é preciso dizer que morrerá por você, Kings Aderio. E se isso acontecer sou eu quem vou te rasgar em pedaços.
— Não deixarei acontecer nada a ele. Fecharei eu mesmo o livro. Buscaremos outras alternativas para encontrar respostas.
— Vocês só tem uma alternativa: tornarem-se muito mais fortes.
— Não basta ser dracus?
— Falo com desdém sobre você ser dracus, pois o que você pode fazer com esse poder só foi desencadeado uma vez, e parcamente. Vocês são moldados para apenas um embate. Um único embate. O mesmo embate que estava pressuposto à Lunia. O mesmo que estava destinado a outros e outras antes dela. Agora são vocês, em definitivo, este mundo não terá uma segunda chance.
— Não podemos voltar ao Ordaz. Desconhecemos outro lugar que possa nos guiar a mais poder. E mais poder é sempre um caminho para não se procurar.
— Mais poder também significa união — Kings Aderio franziu o cenho sem compreender Atéa. — Quando foi que vocês usaram tudo de si pela única vez? Quando moldaram a alabarda de Bellara. A união dos sete.
— Que é inconcebível no momento.
— Isso é um pensamento seu.
— Meu e de meus companheiros. Todos estes anos temos buscado... eu tenho buscado, e não encontro a resposta que você não quer me dar.
— Não. É tudo uma questão de quem e de qual a razão da pessoa certa a lhe dizer.
— Atéa, você realmente combina com Olbett.
— Estou fazendo o que é importante para ele também. Assim como você pensa estar fazendo por alguém.
A espada no chão tinha o olhar do dracus sobre ela. Um olhar forte, aterrorizante e cheio de veneno.
— Até isso você viu em minha mente?
— Vi o que precisava.
— Deveria perguntar!
— Não me diria detalhes que precisasse buscar — Atéa adotou o tom mais atípico que Ade já tinha visto. Se estava preocupada com o dracus a interrogação estava em muito escondida — Aderio, sua procura é maravilhosa. Reviver alguém que você ama.
— Não continue...
— Continuo, pois eu, que sou demonologista e necromante preciso lhe dizer. Não é apenas para você seguir o caminho certo. É para você não se perder. Adianto-lhe que sim, é possível você trazer de volta sua amada da morte. Você conseguiria, não precisa de nenhum rótulo alquímico, apenas ser o dracus que você é já basta. Mas o preço — Atéa sacudiu o rosto, desconsolada. — Aderio, o preço para tanto seria terrível. Pois você teria o corpo dela à sua frente sem um coração batendo; sem o olhar que te serenou brilhando; sem alma.
Diante do dracus, a mulher em busca de destruir todo um caminho de anos. Ade não suportaria isso.
— Você mente! A necromancia...
— Não há força no mundo que traga alguém normal de volta à vida sem que este alguém esteja ausente de alma. Trará um corpo obediente a todos os seus anseios, que lhe responderá às suas vontades, pois estará diretamente ligado às vontades do suposto deus que trouxe o retornado. Você trará a urna de cujo pó já viajou distâncias. E isso lhe matará a alma. E isso lhe fará querer mais poder para trazer a alma de volta. Olhará para os olhos vítreos de Ambel e dirá que tudo ficará bem, que conseguirá fazer dar certo, e ela responderá com "meu amor", e você acreditará. Mas é só um impulso, do seu anseio mais profundo em ouvir de novo aquela voz lhe dizer apenas mais uma vez "meu amor". E assim o Kings Aderio desaparecerá em caos, numa dor excruciante, o mundo respirará quando da ânsia de Kings Aderio, de você ser derrotado, de surgir uma nova Bellara, um novo grupo de dracus para vencê-lo. O novo pária. Aderio... ela partiu, e você precisa entender isso. Ela vive em você e em quem a conheceu, isso nunca poderá ser mudado. Mas hoje ela serena em outro lugar. É difícil enxergar além do véu, mas é lá que Ambel está em paz. Não a tire de seu novo lugar. Não busque ser a nova ruína do mundo.
— Buscar o amor é trazer a ruína do mundo?
— Quando o amor se torna obsessão, sim.
Atéa tentava acabar com qualquer esperança de Kings Aderio de reaver sua amada. Os anos de busca, as pessoas que conheceu, as pistas sobre o sopro, para no fim Ambel estar fadada para sempre à morte.
— Ao descanso, dracus — Atéa leu-lhe a mente. — Eu sei que você sofre — disse ela bem ali à frente levando a mão ao rosto de um Ade desnorteado. — Isso é palpável. Precisa de resolução, e não se trata de um homem, elfo, anão, quase-gigante ou qualquer raça viva buscando por esta paz. É um dracus. É algo que o mal pode usar de maneiras tenebrosas. Você sabe o que trazem as maldições quando não encontram um fim apropriado.
— De repente tornou-se muito cuidadosa e sábia.
— Sou os dois, querido.
— Querido? Não me tenha por cuidados quando quer me levar à perdição!
E de sopros em sopros durante a história do dracus, iam sobrando poucos. Deveriam serem excluídos de si para atentar-se então ao maldito Equilíbrio? Kings Aderio queria colocar as mãos no rosto e bater sem parar até que acordasse desse pesadelo. Vagou longe demais. Tornou-se forte demais. Para nada?
— Eu quero cuidar de você e do caminho que o tempo me escolheu. Eu sinto... Eu sinto muito — a voz da vampira estava embargada com sinceridade. — Mas não poderá reaver Ambel. Não a mesma que um dia você conheceu. Vale mesmo trazer um vaso vazio, fechado, de maneira que não possa nem mesmo colocar uma flor lá dentro?
— Mas Aramor nos disse — insistiu Kings Aderio. — O dragão não mentiria! Ele nos disse que podemos, que temos tal poder de reviver...
— Podem reviver vocês, Kings Aderio, e isso ele realmente não mentiu — o dracus olhou friamente para a luxsa. — Sei disso, já vi acontecer. Vocês podem reviver, mas eu não sei como isso pode ser possível. Há acordos, há ordens, coisas estranhas a serem feitas para tanto. E apenas aos dracus... há algo no fogo que queima em vocês e que não se apaga.
Ade levantou-se gesticulando com os dedos como se eles pudessem dar alguma resposta, alguma sustentação. Os mesmos dedos que seguravam com maestria a espada, que seguraram Ambel uma vez.
— Nós cinco varremos do Pináculo a Berlilios, das Tédracas às Tormentas, das Miras à Luniestra, cada uma das Fendas e a própria Fenda Vermelha. Nada encontramos. Nada! Não há em forma dita ou escrita algo sobre. Mangura, Bedaya, eu, nos empenhamos extremamente nos primeiros anos depois da partida de Bellara e de Thalmor, varremos esse continente, nada nos mostrou respostas. Rapei-Rhôda também não encontrou nada entre os elfos, nem Bereor entre os confins profundos da cidadela. A única resposta é o Vale Ordaz.
— Não é a única. Outros podem dizer, dou-lhe certeza.
— Se sabe de algo, diga, peço com gentileza primeiro para não pedir me arrebentando depois — a frieza do olhar acompanhava a das palavras do dracus.
— O tempo o dirá, não eu. Não é o meu...
— Papel, então vamos reescrever esse papel, que tal?
Atéa soltou uma gargalhada.
— Vamos... podemos começar pelo que Olbett concluiu sobre o que encontrou no Infinite strelatom. Ereianor.
Essa palavra era tão misteriosa quanto um dia o nome da Sacerdotisa de Sangue o foi.
— Estou ouvindo...
— Veja... isso seria quando do embate que lhes fundamenta a vida, dracus. São cinco sílabas. São cinco pontas de uma estrela. São cinco regiões de uma estrela. Tistein concluiu não ser uma expressão ou uma palavra desconhecida, mas um lugar destinado a cinco pessoas. Como sabe, o livro é marcado por um número infindável de vozes, as quais foram silenciadas de uma vez, mas eternizadas no livro. Alguém, ou mais indivíduos em meio à essas vozes, viram mais do que outros, e tinham Ereianor em suas mentes como o mais forte elemento de esperança.
— O livro diz isso?
— Eu lhe disse... O livro está consumindo nosso querido Tis. Olbett atravessa a razão e consegue concluir até mesmo os sentimentos dessas vozes. É como se eu olhasse para sua mente e encontrasse nomes nela. Ambel, Neiva, Ravenz, elas trazem a sensação de flores, de livros, de palha e... sangue.
— Esta é você concluindo por imagens de minha mente.
— Não quando estou apenas buscando uma única palavra, um único nome. Meu nome por exemplo, traz uma sensação de desconforto que em nada me agrada, particularmente. E um desejo sereno, aconchegante, quase me envolve a acreditar que me ame, dracus.
— Você fala dessa maneira, mas e nosso bom Olbett Tistein?
— Olbett, ah... ele, é uma das pessoas que mais me dá prazer de ver o nome em sua mente. O tem com tanta alegria, com harmonia, da mesma maneira que o tem Ladenio e até mesmo um tal padeiro chamado Ék?
— Um bom homem da cidade de Cormin, bem longe daqui, realmente um bom homem.
— Dever ser um ótimo padeiro, embora você seja fácil de cativar e se cativar. São tantos os nomes em sua mente. Isso... me alegra, confesso — Até sorriu gentilmente para Ade que pediu que se concentrassem no ponto principal. —Estas vozes tratavam sempre por cinco indivíduos. Pode ser você e os outros quatro ainda vivos. Mas deixo para você pensar e os outros ponderarem também, já que sozinhos nada conseguiram encontrar.
Era muita coisa para encaixar. E parecia mais uma vez dentro das teias de Lerissala, pegajosas, sem ter meios de fugir. Ou aceitar o destino de ser engolido pela deusa caída, ou levantar-se e lutar mesmo que preso. E agora estava preso em algo que nenhum de seus companheiros o conhecia. Nem Bedaya com sua visão. Talvez esta estivesse turva observando apenas a Maçã de Luniestra por tanto tempo. Isso acontece quando olhamos para o Sol e voltamos nossa visão para outro lugar e, ao piscar, aquele formato circular incandescente se revela no escuro das pálpebras. Talvez isso acontecera com Bedaya. E não só com ele, mas com cada um dos dracus.
O sopro que dobra a morte, a esperança maior de Kings Aderio, era-lhe agora um sonho. Só acordaria dele quando não Ambel, mas Bellara e Thalmor voltassem a batalhar junto aos cinco sobreviventes. Mas como? Tantas questões e aquela mulher erguendo os cabelo da cor das chamas em suas mãos aparentava ainda mais viva por dizer tudo o que estava dizendo. A história, Atéa disse. A história a encontrara e o fardo passava de lado. E o lugar para cinco deles, então o que seria feito dos outros dois? Arma e heroína novamente?
— Não sei, Kings Aderio — disse Atéa lendo a mente do dracus que estudava os próprios dedos cruzados. — Talvez estivesse escrito que apenas cinco fossem necessários para encontrar o lugar, talvez não.
— E o lugar é onde?
— Você sabe onde...
— Larrviant — não gostou de concluir o dracus. — É preciso permissão para entrar. Talvez Olbett já o saiba, mas ainda é tudo nebuloso, e você trate de sair de minha mente. Deveria voltar para o gênio e me deixar descansar com tanto... tanto para pensar...
— Sua mente é bem gostosa de adormecer dentro — disse Atéa divertidamente para Kings Aderio. — É como a minha que vi tantas coisas pela vida. E você em apenas poucos anos, tantas maravilhas, horrores também, mas muito mais maravilhas residem em sua bela mente. O dragão e seu padrinho, Adverus Aramor, é mesmo impressionante. Quase faz com que eu faça uma reverência apenas pela imagem que vejo em sua mente. Tamanho o respeito e a sabedoria que transmite. Quanto a Olbett, ele e eu somos amigos — Atéa esticou o corpo com as duas mãos apoiadas na cama. — Você sabe melhor do que eu que aquele homem é tão igual a você nesse sentido, e só tem o coração guardado para uma única mulher. Floreta está em cada letra lida e cada rosto visto por Olbett. Inclusive o meu. Pode ser o que o impede de morrer lendo o livro estrela, não duvido. Não, Aderio, eu não tenho isso como algo triste. Ele é assim e, diferente de você, ele aceitou que o amor para ele é Floreta.
— Eu não aceitei o de Ambel?
— Não indo atrás de um Sopro que pode ser sua perdição. Olbett não está buscando em hipótese alguma ressuscitar Floreta. Entende, Aderio? E você vai aceitar. Tem e irá aceitar, pois deve, não é o tipo de gente que encontra na história o refúgio onde maquinar para destruir. Não — Atéa levantou-se e quase bateu o busto no rosto de Ade. — O que você precisa destruir é algo como uma montanha.
— A montanha? Você diz um dragão? O próprio Adverus Aramor?
Atéa olhou-lhe de soslaio como se pedisse que compreendesse melhor suas palavras.
— Disse que transmite respeito, que quase me reverencio sem nem estar aqui. Vocês dracus têm um contrato com aquele. Um extenso...
— Para saber tanto, eu tenho que presumir que leu em minha cabeça além de ter conhecido pelo outro dracus retornado.
— Sua astúcia me deleita, Aderio.
— É de conhecer vocês gênios que me fazem deduzir até o mais estranho elemento.
— Eu não sei de tudo sobre o que rege vocês. Não podem voltar ao Ordaz, antes tão desconhecido, agora muitos pelo mundo já tem o nome fácil no paladar. Vocês são o artifício para se alcançar o Equilíbrio, que é muito mais profundo do que apenas cuidar de qualquer sorte de maldição à solta por aí. Ah, e vocês também têm de descansar, e muito, sem usar portais muitas vezes.
— Uma única vez de ida, e uma de volta. Mais do que isso é beirar um estado mais fraco do que a enfermidade.
— Este é um bom aviso para você — Aderio se aproximou de Atéa, a luxsa ficou olhando para ele com curiosidade, esperando mais uma dedução do lobo.
— Tem algo para me dizer?
— Tenho a dizer que não serei eu a pessoa a lhe dizer.
— Mistérios e mistérios, você, Olbett, Aramor, ninguém se cansa deles.
— Meu papel, Aderio, é te guiar para não se destruir.
— Você me faz pensar sobre Ambel e sobre o Sopro...
— Quanto à sua amada, o que tinha a lhe dizer para que pense com sabedoria eu já disse. A escolha — disse Atéa olhando para a espada ao lado de Eberlen encostada na parede. — É sua.
Na janela uma lua muito branca apareceu iluminando todo o quarto pela grande janela. A névoa estava viajando mais rápido, apressada pelo vento. Ele ululava, e no quarto, os olhos de Atéa brilhavam mais fortes.
— Há algo vindo, como ouviu de Olbett, como ouviu de outros e de mim. E esse algo — Atéa engoliu em seco. — É novo no mundo.
— Na Cidade Baixa?
— Não, não é aqui em Nianda. Vem de longe. Vem em busca de vingança e tome com o máximo de cuidado quando digo que um toque, basta apenas um toque, para você ser desintegrado pela coisa.
— A coisa que também está atrás de você, vampira?
— De mim, de Ellera, de muitos outros, e quando entender que não está fazendo o que nasceu para fazer, ou seja, matar, buscará por outras vítimas. Antes, o perigo virá por você, guiado como uma flor para uma borboleta. Quando ela vagar atrás de você, precisa me prometer que fugirá. Precisa prometer que não tentará nada.
— Eu estou cansado dessas coisas nascendo a torto e direito. Mas não sou cabeça oca, não vou tentar me matar quando posso andar bem são e salvo. Não sei nem mesmo do que se trata. Uma nova deusa caída?
— Não, algo doloroso. Os relatos de quem sobreviveu estão muito esparsos. Precisa prometer que não atacará isso, seja lá o que for.
— Dessa tal Ordem do Sol. Bem, se vir para cima de mim, não terei muita escolha.
— Tem a escolha da fuga. E fugirá. Seu papel é outro para morrer tão cedo.
— O mundo é muito grande... essa coisa não tem porque vir para o sul. Pode ir atrás de outra coisa.
— Não depois do que você e Olbett geraram. Irá atrás do que achar ser uma ameaça. Esta é Ellera. E todo o entorno dela.
— Que ótimo, geramos uma isca para mais um amaldiçoado.
— Deixei-lhe o aviso, dracus. Agora, você precisa descansar. E relaxar bastante sem a minha ajuda — a luxsa deu uma piscadela e uma lambida ávida nos lábios. — E se quiser mesmo que eu me apaixone por você, gosto da ideia de um vinho, mas, por favor... não num moinho. Lorrliz é melhor.
Kings Aderio e Atéa trocaram um longo olhar. Ambos sorriram como dois jovens que trocavam suas primeiras confidências amorosas pela primeira vez.
— Não morra, Ade — disse a luxsa melodiosamente. — Eu vou cobrar meu diadema e meu vinho.
De braços abertos e girando como se dançasse, a linda mulher se aproximou da janela. O corpo de Atéa dissolveu em pó adejante, da cor dos cabelos vermelhos, subindo ao ar como a fumaça de um cachimbo. Seu corpo aderiu à neblina quase que todo de uma vez desaparecendo nos espaços da noite. As cinco velas do castiçal se apagaram deixando Kings Aderio entre um sorriso e as mãos coçando-lhe a cabeça. Olhou novamente para suas duas espadas. Pensava no destino. Pensava em todo o caminho que o levara até ali. Falou com tanta gente, a esperança sempre ali, sempre presente. O sopro de seu beijo seria capaz de trazê-la de volta à vida, tinha certeza. Trazer Ambel para seu abraço. " Eu estive lhe esperando, pequeno". Envolvê-la no colo, beijar cada centímetro de seu lindo rosto, tocar-lhe o desejo em seu coração. "Vamos deitar entre os campos, Ade". Ao menos uma última vez. Depois poderia ele mesmo ir junto à ela, onde quer que estivesse. Onde quer que ela estivesse, Kings Aderio finalmente descansaria para junto a ela desaparecer. Ouvir uma última vez ser chamado de pequeno. Só isso. Do pequeno dela. Era o que Ade queria. Aquela espada ali encostadinha não temendo a noite teria um entre dois destinos: acompanhar Eberlen e Kings Aderio, ou, cessar de lutar.
Apenas o coração de Kings Aderio já tinha essa resposta. Só o tempo, como disse Atéa, agora restava para a espada e ele somente o tempo.
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