O Monte e o Cálice: Parte XI - As Luzes Valorosas de Iala
Há um preço justo a pagar por tamanha dádiva. Devereis descansar. Não exaurireis as forças. Dentro de vós, haverá algo de meu tamanho e forma querendo se manifestar. Devem descansar, é o essencial para que vossas capacidades não excedam os próprios fios da vida. Do contrário, estes ruirão, e a dádiva que lhes foi abençoada haverá de tornar-se em perdição. Os próprios ossos hão de vos falhar. Os olhos descerão à terra e os corações hão de vos cessar. A verdadeira morte do dracus é não compreender isso, e o excesso por descaso imperar vossas faculdades. Um dracus descansa como um dragão. Dragões são deuses, e vós sois como se fôsseis dragões, mesmo que deuses não o sejam.
As palavras de Adverus Aramor ecoaram na mente de Ade. O sono viria calmo e, desta vez, sem a apreciação de nada nem de ninguém senão do próprio dracus. No outro dia pensaria em cada palavra de Atéa. Tinha palavras para levar a Mangura, embora o curioso companheiro dracus já deveria saber do arroubo da luxsa. Indagaria também do que Atéa fizera antes de conversar com Ade, tinha suspeitas, ah, as tinha sim.
Na noite calma, passos andavam lívidos pelo corredor lá fora. Vinham lentamente, cercados da obediência. O mesmo vestido que roçou as escadas da Agulha subiu as escadarias do castelo entrando pelo átrio da torre dos hóspedes. Não havia ninguém lá embaixo para inquirir de sua caminhada na madrugada fria, ela sabia. Assim nada a impediria de subir os degraus. Não com calma, quanto menos com pressa.
O tempo corria. O corredor era florido com hibiscos, samambaias e flores do campo. Tinha cheiro de tudo isso e de urgência também. O tempo que urgia entrou no quarto em forma de mulher. Lentamente, os pés vestidos em sapatilhas de tecido vieram à cama. Nela, observava o homem com aparência febril virando de um lado para outro da cama, como se tivesse o pior dos pesadelos. Observou por algum tempo, obedecendo às ordens não dos outros, mas do próprio coração que lhe pedia para ter paciência, para guardar aquele rosto. Tinha também um pouquinho de medo, pois estava ali para acordá-lo. No meio da madrugada. O tempo urgia.
As mãos no ombro do homem, a mulher o chamou do repouso não tido.
— Meu senhor? Meu senhor? Acorde, meu senhor?
Ouvia como se alguém o chamasse do lado de fora de um lago. Uma voz o chamava. A voz tinha rosto embaçado pela água que o sono traz ao despertar. Um rosto bonito, não desconhecido.
— O quê... Quem?
— Perdão, meu senhor. Mas vim lhe pedir que me acompanhe — disse uma mulher com cabelos encaracolados pretos, ela já se levantara da cama.
— O sol ainda não nasceu... é ainda madrugada... há quanto tempo você está aí? — Kings Aderio começava a abrir os olhos, acostumando-se rapidamente com a penumbra e com o rosto belo à sua frente trajado em seda branca e gola alta.
— Há apenas alguns minutos, meu senhor. Não acordava e tive que insistir um pouco.
— Deixa adivinhar — Ade sentou-se na cama de lado para a mulher. — Oromergius lhe enviou para que me acompanhasse à cama?
— Não, sou companhia de cama da senhora Iala e somente de minha rainha.
— Iala — dessa vez Ade encontrou urgência no tom da mulher.
— Meu nome é Jeissa, e ela me pediu para vir buscar-lhe. "Deve estar feito". "Deve estar forte e preparado", ela me disse.
— Feito, forte e preparado, você diz — Aderio levantou-se e logo colocou suas roupas encimadas por uma ombreira e uma capa. — Pois bem, pode me adiantar do que se trata?
— Não posso. A senhora Iala apenas me disse que vossa senhoria saberia.
— As pessoas gostam de brincar de adivinhação comigo. Pessoas e o além-túmulo.
— Perdão, senhor? — Jeissa indagou assustada.
— Nada, só pensamentos altos.
— Além disso... É preciso falar pouco... sabe, aqui? — Jeissa indicou tímida qualquer direção.
— Compreendo — disse Kings Aderio olhando para as paredes.
No corredor, Jeissa ficou ao lado de Kings Aderio muito curiosa sobre o dracus que, cansado de tanto ouvir "meu senhor", pediu à dama de cama de Iala para chamá-lo de outra coisa.
— Posso chamá-lo de Kin então?
Quem o chamava assim? Nem mesmo Ambel o chamara de coisa assim. Ouhan lhe chamava de Adinho quando por ele queria demonstrar algum carinho. O restante se resumia a Ade no máximo. Uma nova forma, pensou.
— Eu não me lembro de ter sido chamado assim. Normalmente me chamam de Ade. Como queira, Jeissa. E me trate por "você" também. "Vossa senhoria" é um negócio que me dói.
— Certo, Kin — disse Jeissa com a voz animada, sorrindo para dentro, os dedinhos indicadores batendo uns contra os outros. — Por que você não foge com minha rainha? Sabe que ela o ama, não sabe?
Kings Aderio se tivesse algo na boca teria jogado para fora aos soluços com o susto.
— E aquela história de que as paredes poderiam prestar atenção no que falamos?
— Prestam atenção em maquinações, Kin. Minha rainha sofre — disse Jeissa sem prestar atenção em Ade que se acostumava com a irreverência da dama de Iala. — E ela sofre porque o ama também. Fuja com ela!
A mente de Aderio fez uma dolorosa viagem ao passado. Mas esta é outra história.
— As coisas não são tão simples assim.
— Porque são dois cabeças-duras que só falam exatamente as mesmas coisas?
— Porque ela é esposa do senhor deste mesmo lugar que lhe arrancará a cabeça se souber do que você está falando.
— Você é engraçado, Kin. Não me importo muito comigo. Já me importo mesmo é com minha rainha. E com o amor que tanto faz falta à ela. Sei disso, afinal tento compensar em forma de carinhos.
— Acho que ela podia te amar — disse Kings Aderio esfregando o rosto para não se corar.
— Não se ama de amores quem já tem a quem amar — respondeu Jeissa.
Kings Aderio achava aquela moça mais do que curiosa. Irreverente mesmo, até demais para apenas alguém que acompanhava Iala em suas noites.
— A pergunta que o vento faria, senhorita, é: quem das duas é a que já tem seu amor por amar?
Jeissa estacou por alguns instantes sem entender o que disse Aderio. Como Iala pontuava às outras damas de cama — e sempre diante de Jeissa — esta era a mais avoada entre elas, não sem ser muito astuta e não dar um ponto sem nó.
Como tomaram o caminho pelo corredor da saída sul do castelo, Kings Aderio continuou se adiantando para os jardins de modo que as insinuações de Jeissa não retornariam tão depressa. Desceram as escadas pedregosas deixando as paredes do Monte ao fundo. Algumas janelas estavam iluminadas. Algumas delas tremeluziam as luzes fortemente. Mas a maioria adormecia enredada pela neblina.
Aderio tinha o coração aos saltos. E não era porque veria Iala em algum lugar do jardim. Jeissa veio correndo atrás dele que aumentou o passo sem nem se dar conta. Ao perceber que a esbaforida e avoada Jeissa fazia barulho até com as sapatilhas, pediu desculpas e se encaminharam pelos muros de cerca viva para mais adentro do jardim. Dálias, crisântemos, cedros e várias faias assomavam pelo caminho.
Diante das belas dálias negras, estava Iala. Sentada, um véu sobre os cabelos e sobre o rosto, deixando apenas os olhos à mostra. Iala levantou-se abruptamente com a chegada dos dois. Suas pernas estavam mais cobertas pela neblina do que pela saia largamente cavada, assim como a fenda no alto do colo deixando duas meias-luas lindamente delineadas tentando se beijarem no vão dos seios.
— Perdoe-me por chamá-lo em meio à madrugada.
O coração de Kings Aderio não parava de dar saltos, assim como os pés do dracus que não queriam ficar parados num lugar.
— Não foi para ver o jardim — disse Ade bocejando.
— Não... o assunto é sério, muito sério.
— Eu estou acostumado a eles — disse Aderio cruzando os braços levando Iala ao luar. — Do que se trata.
— As preparações foram feitas?
— Em termos sim... eu só não descansei.
— Terá de ser sem descanso.
— Para um dracus é mais importante o descanso do que o sangue para um vampiro, Iala.
— Sinto muito, mas não podemos aguardar mais. Orom irá agir.
Kings Aderio odiava que Iala chamasse o esposo desta maneira.
— Como sabe?
— Tenho meus meios, como sempre tive. Depois que me mandou a mensagem quanto à Cidadela, pude descobrir que muitas estão parando em algum lugar da floresta diante do lado norte da cidade.
— No Resto do Nojo — Kings Aderio franziu o cenho.
— Lado Norte! Ninguém ali é resto de qualquer nojo!
— Uma não o chama — lembrou Kings Aderio as palavras sombrias no cemitério.
— O quê? — indagou Iala.
— Algo me diz que estou prestes a entrar num caminho sem volta... No Lado Norte, e as outras carroças?
— Rumam para o leste, descendo o Verberante.
— Por que razão ele estaria indo para lá?
— Não sei, e esta parte terá de ficar para outro momento. O que me intriga são as carroças na floresta diante de um povo sofrido. Você entende?
— E como entendo... E o que pretende?
— Uma evacuação em massa.
— Quando?
— Hoje.
— Hoje?! — o dracus levou dois dedos a apertarem as têmporas. — E você quer sair com as pessoas por uma das pontes? Não haverá como isso não ser despercebido.
Aquela sensação de que algo ruim vinha pelas palavras de Iala só crescia, além de decepcionar muito o dracus. Mas isso era só um pressentimento de outra coisa muito pior. De onde vinha?
— Haverá se irem pelo lugar mais recluso e perto delas.
— E seria? — indagou Kings Aderio esperando que uma risada torpe não fosse entoada no vento.
— Por uma passagem muito secreta. Muito antiga também. Pelo antigo aqueduto.
Aderio quis dar a risada ele mesmo.
— Pela Cidade Baixa?!
— Sim, pela Cidade Baixa.
— Ela está selada, Iala.
— E pode ser aberta por uma filha do tempo do Erguimento. Jeissa é a única nascida...
— No bairro do antigo cemitério...
Jeissa aproximou-se curiosa, seus cabelos sacudindo como arbustos escuros ao vento.
— Kings Aderio, você está me assustando com essas deduções — disse Iala juntando-se à Jeissa. — Isso não era para você saber.
— Disse para me preparar, pelo que me lembro. Fui fazer o dever de casa como um bom dracus é só é capaz de fazer... e como o fiz...
— O que quer dizer?
— Fui ter com quem guarda a neblina deste lugar. Quem guarda as histórias de Nianda. Alguém que apenas observa e nada faz, se tratado com muito cuidado e respeito no mesmo tamanho. Alertou-me do lugar do qual você se refere... Iala, andar naquela escuridão é impossível.
— Está abandonado, porque seria impossível a você? Logo você?
Kings Aderio andava de um lado para outro de modo que Iala nunca o vira. Não era normal ele perder o controle, murmurar sozinho, não o Ade.
— Ade, explique-me, quanto mais demoramos, mais perdemos tempo, e mais você desafia meu coração.
— O que tenho a dizer sobre aquele lugar são terrores, e dos piores que possam imaginar quanto à esta cidade e sua história. Você disse abandonado? Boa conformidade aos aquedutos, infelizmente. Foi devido ao abandono que algo nasceu naquele lugar. Algo que eu não tenho capacidades físicas de enfrentar. Nem como estou, nem se estivesse em plena forma descansado.
— E o que nasceu? — indagou Jeissa como se fosse ali um molde de Iala. Kings Aderio hesitou para apreensão de Iala.
— Vamos, Kings Aderio, responda!
— Algo muito poderoso que só espera uma oportunidade para descontar toda a dor e a raiva que tem nos viventes através de ancestralidades no tempo. Algo que nunca viu o sol. Não tem nome, apenas é muito perigoso, e eu sozinho não conseguirei enfrentar.
— Os outros dracus não podem lhe ajudar? — indagou perplexa a rainha.
— Não é da alçada deles.
— Vocês ainda têm esse comportamento infantil de cada um por si?
— Eu sou deles o errante, eu que me lasco indo atrás do que deveria deixar se explodir sozinho.
— Então você que tem a faca e o queijo não deveria fazer nada e deixar pessoas perecerem?!
— Eu não sou capaz de salvar todo mundo nem que eu queira!
— É capaz de fazer a diferença!
— Diferença incapaz de ajudar quem mais precisou de mim!
— Você está assustado — quem disse isso foi Jeissa numa vontade enorme de chamá-lo por Kin. — Está muito assustado.
— Eu estou apavorado sabendo que aquela coisa está andando em algum lugar debaixo deste mesmo solo em que pisamos! O próprio ar lá embaixo é repleto de veneno. Iala, atravessar aquilo é suicídio. Se o que está lá acordar não haverá mais Nianda!
— Aderio, não há outro jeito. Você precisa fazer isso.
— Muita gente vai morrer, e se a coisa aparecer, eu vou ter de fazer algo drástico, como derrubar o que estiver na frente ou acima. Pode ser parte da cidade e mesmo assim pode não ser o bastante!
— Não será, a Cidade Baixa passa por um túnel no lago — disse Iala apertando a trança rosa e lilás.
— Piorou, vou afogar todos nós lá embaixo!
— Aderio, se acalme!
— Você me pede o impossível, Iala!
— Você é um dracus!
— Um único e debilitado por tanto que tive de fazer nos últimos dias!!!
— Faça por mim, Kings Aderio, apenas faça! Você me deve!
Kings Aderio olhou seriamente para Iala. Duas vezes sentira-se da maneira que estava se sentindo diante de Iala e Jeissa. Foi há muito tempo. E como naquela ocasião ele olhou para as mãos trêmulas. Elas lhe dariam a resposta? O sangue correndo pelos dedos que agora ele via como rios em chamas por trás da pele. Os punhos fechados, quis socar o chão, mas isso em nada lhe ajudaria, além de decepcionar a ambas as mulheres diante dele.
O resignado dracus retirou Eberlen de seu sono e a apontou para o chão. Da pontinha da espada uma chama luziu, depois outra, e depois outra. Elas se amalgamaram e alçaram voo girando numa esfera, girando, girando. Até que de lá um pássaro luzidio se formou com as asas abertas espalhando fagulhas. As mulheres olhavam aquilo atônitas e maravilhadas. Jeissa, então, nem se fale. Era a segunda vez na vida que via algo de mágico à sua frente. O pássaro recebeu algumas palavras de Ade e foi embora numa velocidade impressionante em direção a Nianda.
— Devo-lhe sim, senhora de Nianda — disse Aderio com os punhos cerrados e a voz do arrependimento.
— O que foi isso que você fez? — indagou Iala observando o brilho ir embora do fio de Eberlen.
— Um pedido de ajuda. Para reunir as pessoas o quanto antes. Não conseguirei chamar a todos de uma vez, mas tentarei convencê-los.
— Mostre suas chamas, elas os guiarão, terão respeito por você.
— Como quiser, senhora.
— Iala, Aderio! Meu nome é Iala! É o nome que você deveria chamar por toda a vida! — explodiu de vez a senhora de Nianda. — Só porque lhe disse que me deve, não tem razão para agir assim!
— Iala, você tem razão. Eu lhe devo e... eu farei o possível para cumprir. Mas tenho certeza que nem todos me seguirão, não ao terror.
— Por isso você será a luz guia e aos que conseguir...
— Adianto mais uma vez: muita gente vai morrer. Você sabe disso, não sabe?
— Não diga isso...
— E saiba que eu posso estar no meio de um deles.
— Pare com isso! Não vai morrer!
— Não será permitida voz ou riso naquele lugar. Haverá crianças. Haverá bebês. Caso algo dê errado, esteja preparada. Fale com Olbett Tistein. Vocês vão precisar...
Instantaneamente uma mão veio ao rosto de Kings Aderio que, como tantas vezes em ocorrência similar, impediu a mão de tocar-lhe a face apenas com o olhar. Iala forçou uma segunda vez, mas era inútil. Uma cortina impedia maior movimento pela mão trêmula. Iala precisava daquilo e sofria. Era desmoralizante, doloroso para Kings Aderio olhar para Iala sofrendo por jogar tudo na cara da pessoa que mais admirava na vida.
— Kings Aderio, você lembra o que acontece com as pessoas de Altermira quando encontram quem elas amam?
Aderio ficou em silêncio.
— Os olhos brilham a magikha dentro delas e as sensações se revelam em cores — disse a jovem e sonhadora rainha de Nianda trançando os cabelos. — Nos cabelos, nos olhos, na cor das unhas. E isso pode se revelar inclusive num beijo. Um simples beijo tem poderes que o mundo não pode prever, quando sincero. Kings Aderio... eu espero pela minha cor lilás nos cabelos. Eu espero pelo beijo que libere as minhas cores... eu espero pacientemente... não morra...
Kings Aderio não queria mais fazer digressões. De nada adiantavam. O tempo na ampulheta acabava. E sem entender, o dracus adiantava muito mais a areia de outra ampulheta.
— Iala... fale com Olbett. Ele está estudando a demonologia e saberá o que fazer se tudo virar o caos. Você disse hoje, mas agora é de madrugada. Quando devo partir?
Iala pela primeira vez olhou para Kings Aderio com receio. Muitas vezes viu as coisas de Kings Aderio, mas era a primeira vez que algo lhe dizia sobre um afastamento drástico. Para nunca mais o reaver.
— Não ouviu o que eu lhe disse?
Silêncio tão sonoro quanto o adeus. Titubeou ao voltar-se para a mão que fora impedida do tapa. Além disso, a palavra partir lhe vinha em desagravo quase insuportável. Iala sentou-se novamente ali ao lado, com os braços de Jeissa ao seu redor.
— Ade... você não vai morrer.
— Quando devo partir?
— Eu estou lhe dizendo, você é forte, não pode ruir... minhas cores, você... você prometeu...
— Quando, senhora de Nianda?
— O mais depressa possível, para que também volte o mais rápido possível — Iala se afastou de Aderio e de Jeissa. — Vão agora, já que tanto quer apressar a ida... já que não quer me ouvir mais uma vez, me ter nos braços uma vez. Vá! Jeissa sabe o que fazer.
— Ela? — disse Kings Aderio lembrando-se de um simples apelido. Jeissa olhava com aqueles olhinhos manhosos, mas muito assustados, as mãos atadas no meio da cintura pediam a prece sabe-se lá para quem — Eu não vou levar ela lá para dentro do horror. É sua companhia...
— A decisão será dela.
— De jeito nenhum! Esta decisão é minha!
— Que seja, Kings Aderio. Apenas volte... volte do que for que seja posto em seu caminho.
Tantas vezes Kings Aderio viu aquele rosto ir embora. Fora a primeira vez que pensava não ver mais a beleza de Iala em seu caminho. Nunca... mais.
Jeissa caminhou com uma vontade enorme de levar o homem em seus braços. Ele suava, ele precisava de cuidados, era cristalino isso, até mesmo a lua parecia tirar-lhe forças.
— Kin, talvez seja melhor irmos mais devagar.
— Não tenho tempo. Precisamos ir depressa.
— Você está cansado — os pés de Aderio faziam Jeissa se resumir a arquejar.
— Estou. Mas ficarei bem.
Jeissa então fez a única coisa que podia.
Receber as bochechas dela nas dele quase lhe fez desabar ali mesmo. Caminhavam pelas folhas do bosque levando para fora da cidade de Nianda. Ali ao lado, o lago os refletia abraçados. Jeissa falando aos ouvidos de Ade, massageando-lhe os cabelos.
— Não deixe o desespero tomar conta de você. É um homem forte. É um homem valoroso. Você há de vencer. Se Iala acredita em você, isso é tudo o que precisa. Isso por si só torna-lhe o maior dos homens.
— Você não entende... — a respiração do desamparado dracus veio em súplica.
— Não entendo mesmo. Mas tenho esperança em você. Isso me basta. E se me basta, bastará aos outros que seguirem-no ao escuro. Mas não leve isso como um compromisso de dívida. Minha senhora não falou por mal. Ela o ama. Volto a lhe dizer. E sei que agora ela vai chorar e desejar que volte a ela, deve estar olhando neste instante com as mãos no vidro da janela, querendo que o reflexo que vê seja o seu rosto Ela lhe ama tanto. Sou a confidente dela, não se esqueça... sei que se pedir ela fugirá e viverá, finalmente.
— O que eu fiz leva Iala a me odiar em segredo.
— Odiá-lo? Nunca! Quantas vezes não mencionou você, sempre com ternura, sempre como se fosse um sol para sua lua. Conheço Iala, a minha senhora. Minha jovem e tão forte senhora. Ela o ama... Derrubem o Monte, se for preciso. Depois fujam para uma história de amor! Ela merece, vejo que você também. Mau lhe conheço, mas as histórias de minha senhora dizem por si só.
— Quem dera a vida fosse simples. Mas Iala... eu perdi para sempre...
— Não perdeu...
— Jeissa... eu agradeço. Do fundo do meu coração eu lhe agradeço.
Ade deu-lhe um beijo nos cabelos. Uma mulher lindíssima era Jeissa. Ade pensava que aquela mulher era tudo o que Iala precisava... absolutamente tudo.
Não mais falaram até se aproximarem dos pedaços de madeira boiando na parte rasa do lago. Havia sedimento e o cheiro crescente de azedume na beira da água. Lá adiante na estrada dava para avistar a tocha da torre de vigia com alguém andando de um lado a outro, descendo pelas escadas das ameias. Uma luz andava na sentinela da torre como um vagalume. A madeira deixou de ser podre no lago para se erguer em dezenas de pontes, todas ligadas entre si. Serviam como caminho. Serviam também como morada. Dezenas de casas quadradas feitas de a-piques, troncos e tábuas esforçavam-se para dar base a um conjunto de estruturas completamente desorganizadas, desafiando as sustentações e a própria muralha. E era mais próximo da muralha, numa espécie de península, em que estavam os alheios do Monte, pensou Ade. Pessoas tidas por Oromergius como restos.
Montes e montes de casas de madeira empilhavam-se e se dependuravam ao redor da muralha, encostando no, atualmente, depósito de água da cidade de Nianda. Era um mundo totalmente à parte de toda a cidade, inclusive da parte mais empobrecida de Nianda. Formas quadradas, alquebradas, sustentadas por varas e estacas, amontoavam-se pelos espaços como uma mata fechada. As casas se fundiam umas às outras, formando troncos sombrios, como cogumelos saindo de uma casca de árvore, empertigados, achatados no que conseguiam encontrar da escassa porção de terra na qual se sustentar. Dali se avistavam também vários caminhos e ruas estreitas por onde as pessoas andavam como num formigueiro, todas subindo pela rua. Para aonde iriam? O sinal havia funcionado, pensava Ade, e muita, mas muita gente mesmo estava se reunindo numa das saídas daquele que era chamado de o Resto do Nojo. Quando, na verdade, se tratava de uma cidade tão grande quanto Seta Ambel.
— As pessoas estão reunidas — disse Jeissa, mas seu olhar indicava que não gostava do que via, como se ali não fosse o mesmo lugar de onde fora retirada por sua amada senhora Iala. — Reunidas sim, mas não no local certo.
O murmúrio no vento tornou-se tropel de vozes. Milhares de vozes não sendo possível distingui-las. Iradas, preocupadas, desesperadas, em pranto, indignadas. Umas respondendo às outras. Umas fazendo coro às outras.
Kings Aderio e Jeissa passaram por tábuas e ripas espalhadas no teto, nas paredes e no chão, se enveredando por corredores tortos os quais levavam às escadas verticais para mãos e pés serem usados. Segundo Jeissa, o destino deles era a rua comunitária, lá em cima, onde as pessoas deveriam estar reunidas. Era de lá de cima também que luzes tremeluziam as sombras. Se de lá de baixo já podia-se ver o número de pessoas enorme no alto dos a-piques, dali de cima o aspecto era muito pior.
Num lugar mais aberto erguido entre rochas e muita coisa fedendo a doer o estômago, uma enorme confusão de corpos se empurrando impulsionava as vozes ao alto dizendo coisas como "derrubar", "desabar", "acabar", "afundar no lago", a lista era enorme. Pessoas grandes, pequenas, de cores de rosto tão variadas quanto a beleza e os semblantes menos vivos e desesperados espalhavam as sombras irritadas pelas paredes. Todas voltadas para alguém.
Quando Kings Aderio e Jeissa se aproximaram, ele pôde ver que seu recado fora tomado ao pé da letra, pois não estava apenas o joalheiro, mas a família toda dele no centro de uma rua de postes tortos. As pessoas urravam de punhos em riste, Litli tinha um martelo em sua mão, segurava-o com aquele braço da grossura de uma tora de maneira ameaçadora. Ela não sabia usar armas, mas para defender a família faria tudo o que pudesse. Arbuen tinha as duas mãos à frente pedindo ao povo que fosse razoável enquanto Letizia ainda abraçava as crianças. Sem contar que o bichano também estava ali no ombro de Litli como um leão de patas ao alto. Ficou claro que as pessoas os inquirindo, no entanto, não entenderam nada bem o recado.
— Querem dizer mentiras! — disse um homem lá na frente.
— Serão expulsos daqui! — gritou um monte de gente em seguida
— Olha a merda do gato no ombro daquela ogra atiçado como por feitiço!
— Querem nos matar — uma pessoa gritou e outras repetiram, e repetiram e repetiram aos ganidos.
— Tentam nos despejar! — gritou uma voz de mulher em meio ao formigueiro. O coro foi entoado. Despejar, despejar, despejar. Tão logo vieram os xingamentos: malditos, cretinos, miseráveis, filhos duma puta. Palavras perderam qualquer cor ou discernimento.
— Sejamos razoáveis! — gritava o bom homem. — A fonte é a mais confiável, minha gente! A mais confiável! Que as chamas do Abismo me tomem se minto!
— É mentira, seu bode maldito! Quer despejar crianças! Nos chamam de nojo! Nojo são vocês que querem nos matar, filhos da puta — berrava um homem branco como vela, gordo e com um cutelo na mão. Ah, e ele era quase um Mangura de tamanho.
— Arbuen não mente! — gritaram Litli e seu martelo. — Até nós mesmos saímos de casa! A ameaça é verdadeira! Uma ave mágica nos apareceu! Trouxe-nos o aviso claro! Vocês tem que acreditar!
— Vou acreditar jogando o corpo de vocês na vala!
Lá atrás de uma muralha de pessoas, enquanto acontecia a celeuma e intensificava a raiva das pessoas, instantes antes, uma Jeissa olhava estarrecida para o que aconteceu com o lugar.
— Isto não era assim! Tantas casas! Tanta gente! Não tem, portas, nem janelas na maioria, os varais... gente largada na parede, à sorte da morte. O senhor Oromergius não o fez... ele não pode ter feito.
— Você não conhece ninguém aqui, Jeissa?
— Eu fui arrancada daqui para o castelo nova para satisfazer minha rainha. Trocava cartas... mas as cartas pararam de vir. Eu continuava enviando, nunca mais retornando a mim.
"Vocês na vala", ouviu Kings Aderio brandindo furiosamente sua espada com face de dois lobos.
Chega...
Na mão de Kings Aderio uma chama se acendeu. A espada arrancou um uivo sonoro ao ar. As duas faces dos lobos acordavam.
— Fique comigo, Jeissa — disse o dracus despejando um olhar fulgurante para a amiga de Iala. Jeissa notou os olhos de Kings Aderio espalhando chamas azuis da cor do céu matutino. Motivavam-lhe a diminuir-se pequenita, a temer, não fosse conhecer aos poucos sobre Kings Aderio.
Jeissa se agarrou ao braço livre de Aderio. As pessoas iriam ao ataque lá na frente, não fosse o ressonar de um calor inacreditável lá atrás delas. Aos poucos os olhos ganharam a compreensão e atrás dele o próprio céu ficou púrpura. A multidão não compreendia muito bem o que vinha na direção dela, mas vinha, tão sedutor quanto ameaçador, um homem brilhando entre chamas azuis, amarelas e vermelhas girando por todo o seu corpo. Jeissa o abraçava com olhinhos fechados, esfregando o rosto na manga da camisa de Kings Aderio. Os olhos desesperados se afastaram deixando uma linha vazia de uma entrada à outra da via comunitária. Ao olhar para os dois, Litli mal acreditava. Era ele. Era ele, e ela e o gato correram na direção dos dois, seguidos pela família que também veio a compreender.
— Litli — disse uma voz rouca de Kings Aderio da qual ela não conhecia.
— Rei de Seta...
— Rei de Seta? — uma criança ali murmurou. No crescer dos murmúrios de mesmas palavras a seu redor e na chegada da família acuada, Aderio ressonou mais uma fez suas chamas que percorreram cada pessoa ali. Gritaram bruxaria, feitiçaria, magia. Mais um rompante das chamas levou calor e conforto às pessoas que ficaram emudecidas ao verem chamas sobre elas e ao redor subirem em seus a-piques sem que queimassem a madeira. Todas chamas advindas de um único ponto.
— Ninguém vai mover um dedo contra esta família a não ser que queira passar por mim — a espada estava ameaçadoramente apontada para o entorno de pessoas.
Todos ficaram quietos aguardando o que aquele sujeito diria.
— O que eles dizem é verdade — de uma das chamas no alto da cabeça de Aderio, um círculo subiu longe no céu, batendo na imagem da lua e voltando em forma de asas translúcidas. As pessoas viram. As pessoas emudeceram, diminuídas pela voz irreal daquele homem. Olhavam para Jeissa envolvida pelo mesmo brilho de Kings Aderio. A mulher nada sofria, seus cabelos erguidos transformavam-na à imagem de uma deusa. — O senhor de Nianda pretende derrubar todas as moradias deste lugar. Não está claro como, mas o fará logo. Temos de sair o quanto antes daqui. Quem quiser me seguir e ter a chance de salvar a pele, siga-me. Os demais, não irei insistir, mas deixarei claro ser uma das maiores tolices que vocês poderão fazer.
— Aparece assim do nada... do nada e nos ameaça a fazer sabe-se lá o quê! — disse alguém na multidão.
— As águias vão nos matar, pagamos impostos, não vão nos deixar ir embora!
— Pagarão com a vida se ficarem — vociferou o dracus. — Vocês estão diante da própria história! E não sou eu ela, mas vocês! Vocês têm a chance de decidirem-se de suas vidas para sempre e de prevalecer em frente ao terror de um tirano. Sei que é difícil deixar a casa e a vida, sei que é assustador ir ao caminho do desconhecido, mas muitas vezes é preciso que deixemos para trás as histórias para vivermos outras. Fica com vocês a chance de fazerem estas novas histórias. E meu desejo que o façam.
— A troco de quê alguém que se diz rei de algum lugar desse mundo se daria o trabalho de ajudar essa gente maldita nossa?
— A troco de nada — rugiu uma última vez o rei e dracus indo embora junto à Jeissa e a família de Arbuen.
Kings Aderio cumprimentou-lhes, trocando um olhar forte para o gato nos ombros de Litli. A escuridão parecia diminuir com o calor da visão da bela armeira. Na sola de suas botinas veio um Arbuen esbaforido levando coisas penduradas nos ombros. Estava com o avental de pele e neste uma grande quantidade de utensílios.
— Meu senhor... é, digo, Kings Aderio. É verdade que vão derrubar esta parte da cidade? É um povo bom, meu senhor. Estão alarmados porque temem pelo pior, como nós todos. Não querem acreditar que o senhor do Monte possa tanto.
Jeissa bufou em desdém.
— Sabe aquelas moedas que lhes dei de Luniestra? — disse Kings Aderio. — Um dia entenderão a razão de brilho tão intenso nelas. Talvez hoje.
— Mas não respondeu a pergunta dele — disse Jeissa.
— Responde que Oromergius e seu absolutom ficarão muito felizes em afogar crianças nesse lago.
Litli o olhava com curiosidade. Amaciava os pelos do gato com a mão quase cadavérica de tão magra que era.
— É bom vê-lo mais apessoado e sem fedor de merda. Achei que fosse algum perfume, Kings Aderio.
— É bom vê-la também, Litli — respondeu Ade com um sorriso.
— Viu meu trabalho com o diadema? — ela indagou se aproximando mais do corpo de Ade.
— Não — lamentou apenas Kings Aderio para um semblante decepcionado de Litli. E lamentava muito, pois dentro dele lhe sugava a constatação que nunca o veria encimando os cabelos de Ellera.
A família nada mais disse e seguiram pelas madeiras com murmúrios atrás e ao redor. A gritaria era imensa, e Kings Aderio tinha certeza que despertara as Águias com tanto estardalhaço. Os passos na madeira mais pareciam com tambores de uma verdadeira guerra.
E foi pensando em armas de Nianda que Kings Aderio se deparou com alguém que não esperava ver naquela noite.
Estava exatamente à frente de onde Jeissa indicou ser a entrada da Cidade Baixa. O homem não se mostrou nem de armadura e nem das cores de Nianda. Sua roupa era mais leve, abarrotada e envolvida por panos que se cruzavam em seu peito por cima de uma camisa com argolas finas e couro. Argolas também estavam no pescoço do homem e nos pulsos, um brilho dourado ao luar.
— O que está fazendo aqui? — disse Kings Aderio já deixando clara a sua ira com tempos tão tormentosos.
— Minha missão é Nianda, e Nianda é o povo — respondeu solenemente Lauro Ezahi.
— Iala o enviou?
— Não. Eu me enviei... E também tirei o máximo de gente possível deste lado do muro para a vila no portão leste. Isso incluindo as Águias. Não tema. Ninguém aparecerá.
Aos poucos, Kings Aderio começava a ter ainda mais certeza de que Lauro era mais do que aparentava.
As pessoas se acumulavam na área defronte a uma parede de rocha cinzenta da muralha cercada por escadarias de madeira e andaimes que escureciam a parte de baixo. Lauro postou-se ao lado de Kings Aderio e Jeissa esperando as pessoas se organizarem. Muitas estavam ali, muitas mesmo. Mas nem todas.
Ade voltou-se para Litli e a família.
— Não deviam estar aqui — disse frio.
— O que aconteceu com o "é bom vê-la, Litli". — imitou Litli.
— O perigo que correm vocês não precisam de passar.
Arbuen interveio.
— Kings Aderio, você disse no recado que este lado viria a desabar. Nossa casa é bem aqui atrás. Se o que disse é verdade, corremos riscos de vida também.
— Eu prometo que correm um risco muito pior para onde vamos.
— Não com você iluminando nosso caminho — disse Litli para um olhar muito desconfiado de Jeissa.
— Podem sair pela ponte. São apenas uma família.
— Uma família saindo na surdina e suas coisas sem que apresente documentos atestando a taxa de viagem por pessoa e suas bagagens? — deu de ombros Arbuen. — O senhor conhece muito melhor essas coisas do que eu, presumo.
— Iríamos presos! — resumiu Litli.
— E mais, eu já lhe disse uma vez — insistiu Arbuen. — Gosto desse povo. Gosto das pessoas daqui. Não quero vê-los sofrer sob os olhos da tirania.
Kings Aderio olhou para as crianças de Arbuen. O seu ouro de Luniestra que pagaria uma entrada na Universidade de Nianda. Que caminhos teriam Arbuen e os seus daqui para a frente, e tudo pela vilania de um maldito imbecil.
— Só tenham o cuidado de ouvir o que estou por falar e que será duro. Talvez repensem de sua decisão... talvez.
Deixou-lhes para verificar Jeissa que vasculhava à frente.
— Deve estar em algum lugar aqui — disse ela procurando no escuro. — Este é o lugar, isso tenho certeza, Kin.
— O que procura exatamente?
— Um símbolo. É um triângulo com um arco voltado para cima.
Kings Aderio meneou as mãos formando no ar um triângulo com um arco encaixado na ponta do cume.
— É exatamente este — disse Jeissa. O maravilhamento de Litli, Arbuen e sua família era acompanhado por muitos ali. Não por Lauro.
— Guarde seus poderes com sabedoria, Kings Aderio. Irá precisar deles.
O dracus agitou a mão no símbolo flutuante que brilhou caminhando pelo ar em várias direções até minimizar-se num ponto muito escondido no chão, ali ladrilhado, estava numa parte de chão sem madeiras dos a-piques. Jeissa averiguou. Era ali mesmo que estava o símbolo.
— Como abrirá? — indagou o dracus.
— Com o sangue. Se a senhora Iala estiver certa, será o mesmo caso da Agulha. Empreste-me uma adaga.
Kings Aderio não o fez. Em vez disso pediu que Jeissa estendesse a mão. Num toque de seu dedo, Aderio puxou um fio fino da palma da mão de Jeissa. Ela nada sentiu, a não ser um pequeno alívio, um frio, depois o calor de volta aos dedos. O fio se enrolou várias vezes formando uma gota de sangue para desaprovação de Lauro mais uma vez.
— Não deve usar suas parcas forças, dracus. É um conselho e um aviso.
— Uso-as para que tenham certeza de que não sou uma pessoa qualquer e que tanto podem confiar em mim quanto respeitarem o que eu disser. Jeissa?
A mulher levou a gota de sangue em seu dedo e o que esperava se confirmou. No chão os sulcos dos tijolos luziram mais forte do que o luar. Dali o chão pareceu se mover e ceder, até simplesmente desaparecer e revelar uma curta escadaria rumo à completa escuridão. Uma noite que poderia ter sido mágica por seguidas transformações do impossível. O imaginário das pessoas brincava. Gemiam surpresas pelo que o homem e aquela mulher geravam. E quando Kings Aderio se pronunciou, o que era maravilhamento tornou-se em gelo. Antes, as chamas que lhe envolviam foram embora, mostrando a todos um homem como qualquer outro.
— Aqui está uma filha legítima de Nianda, e que abriu a passagem gerada por muitas gerações atrás pelos antepassados dela. Ela é a salvação de todos vocês. Seu nome é Jeissa, e guardem-no, aqueles que descerão, com enorme carinho.
Aderio respirou olhando para dentro de uma escuridão tremenda lá embaixo. Algo respirava muito distante. Algo que queria sair imperdoavelmente por aquele buraco. Lauro e ele trocaram olhares consternados.
— A partir de agora, nenhuma palavra deve ser dita. Desceremos no mais devoto silêncio. Sei que será difícil com crianças e bebês, mas nenhuma palavra deve ser dita em voz alta, apenas o sussurro deve ser usado para velar suas vozes com as vozes do que estiver aí dentro.
As crianças de Arbuen o apertaram forte com a pergunta do pai.
— O que há aí dentro?
Kings Aderio suspirou resignado, olhando para o luar entre a neblina. Os murmúrios não vieram, todos tinham o coração no pescoço. Temiam aquele homem, mais ainda, temiam o que estava naquela saliência ao chão. Lauro tinha um semblante fechado, ouvindo tudo de olhos fechados.
— Não vou mentir: há algo terrível lá embaixo. Sim, há algo cruel lá embaixo, algo como um pesadelo à vista nua. Não há precedentes para tal horror. E por isso eu digo mais uma vez, nossa travessia deve ser no mais absoluto silêncio. Não toquem em nada além das paredes, mesmo com elas tenham cuidado. Não desviem-se do caminho que eu indicar. Em hipótese alguma toquem na água e... isso me dói... Mas não lutem por quem desaparecer na escuridão.
Estas palavras fizeram o respeito desvanecer do rosto de quem ainda lhe tinha algum. Em meio a protestos, um homem se adiantou. Era forte, belo, sua pele era de um negro acobreado e fulgia nas chamas que o envolviam.
— Você nos pede algo terrível. Algo que nem sabemos do que se trata. Até mesmo você está com medo.
— É claro que tenho medo! — gritou com sinceridade o dracus. — Essa coisa não pode sair daqui! Isso nunca viu o céu! Mas mesmo assim é a alternativa mais segura. Há Águias por todas as partes de Nianda, incluindo a floresta. Não há outra travessia. E por eu ter medo que lhes digo que cuidem dos seus e façamos o mais depressa possível a travessia.
Jeissa a seu lado queria abraçar Aderio. Entendia cada vez mais o amor de Iala pelo homem à sua frente.
— Por isso, antes que os filhos caiam na escuridão e, vocês mesmos, agarrem-se nas palavras que lhes digo, para terem uma chance... para que vocês tenham alguma chance.
— E pensa que vai incitar pessoas comuns, trabalhadores, gente pobre que só sabe correr para viver, a entrar aí através do medo? — perguntou de novo o homem.
— Não do medo — disse friamente o dracus, mas todos puderam ouvi-lo. — E sim com a mais verdadeira sinceridade. E ela dói, é uma pena. Quem dera não fosse necessária, só que apenas ela pode colocar o grau de perigo do que estamos por enfrentar. É doloroso saber que tem algo aí que pode me arrebentar e a vocês num estalar de dedos. Mas é para isso... é para isso que estou aqui — Kings Aderio lembrou de Iala, o que fez ele se voltar para Jeissa. — É apenas para isso... alguém mais tem algo a dizer? Evoquem suas vozes uma última vez aqui fora. Timbres, só depois do outro lado.
Kings Aderio deu um tempo para que as pessoas se organizassem e se decidissem do que fariam. Era tudo muito abrupto, era tudo muito depressa, mas a pressa também urgia algo não muito distante e terrível à vista da neblina. Voltou-se para Jeissa que não queria deixar o dracus.
— Decidi e vou com você!
— Já disse que ali você não desce...
— Não me importo com o que você disse, não vou lhe deixar!
— Não é você quem decide isso, sou eu, Jeissa.
— Quem decide de mim sou eu, não pode falar por mim!
— Estou falando pelas circunstâncias! Não sou eu quem precisa de você, Jeissa. A partir de hoje, tudo mudará em Nianda e no Monte. Essa cidade nunca mais será a mesma, e sua senhora precisará ainda mais de você.
— Iala é forte.
— E Oromergius é um maldito cruel — disse Kings Aderio.
— Não quero deixá-lo... é como... é como!...
Lauro tomou à frente percebendo a obstinação de Jeissa.
— Iala sempre teve duas pessoas fundamentais em seu entorno. Você e eu. Mas meu tempo com a senhora de Nianda acabou, Jeissa. Nunca mais pisarei os pés aqui. Iala é uma mulher muito forte e já enfrentou coisas terríveis, mas o que está por enfrentar levará à ruína dela e de toda Nianda se você não estiver ao lado dela. Ame-a, senhora. Seja a mais confidente pessoa da vida dela. A jovem senhora Iala precisará de seu amor. Arda ele sobre ela.
Jeissa ponderou. Seu corpo todo movia-se em teimosia até dar-se por vencida. Não queria deixar Kings Aderio só. Não entendia como os outros não viam que, entre todos ali, o mais perdido era o próprio homem que tentava o impossível pelos desesperados. Jeissa se pôs à frente do dracus, levou os braços por trás do pescoço e o abraçou forte, muito forte. Amaciou-lhe a cabeça várias vezes guardando nos cabelos um pouco de choro. Guardou em seus dedos o frescor do toque do rosto de Ade também. Queria tantas coisas. Queria o mundo parado, ninguém olhando, os dois acontecendo, a vida não sendo estranha nem escura. Queria tudo, e querer tudo também era ter nas mãos o poder de absolutamente nada. Derrotada, afastou-se deixando nele um beijo rápido e confidente no canto dos lábios.
— Não morra, pois nem minha presença impedirá Iala de se matar se você morrer. Ela quer suas cores...
Dizendo isso, Jeissa se afastou observando um mundo de pessoas descendo atrás do homem que carregava o estandarte de uma esperança frágil. Ela ficou ali até nenhum murmúrio fazer presença na noite dolorosa e fria.
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