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O Monte e o Cálice: Parte VII - Os Julgamentos Sentidos

     Dentro das nada modestas dependências de Tistein começaria a silvar, como de costume, uma chaleira.

     — O chá já será servido — Tistein se interrompeu nas palavras ao reparar numa mulher distinta, bela, malvestida e completamente imunda adentrar em sua casa. — E temos visita! Já falei o quanto me incomoda não conseguir fazer deduções sobre sua pessoa, meu valoroso dracus? Embora... aguardasse a dois não por dedução minha.

     — Tistein...

     — Dracus — murmurou Ellera deixando uma solidão úmida no pescoço de Ade. — Eu já vi isso em algum lugar. De um tempo que se perde no próprio tempo. Nunca me contou isso. Claro... Na verdade queria me matar...

     Tistein tomou a frente erguendo pouco a pouco a surpresa junto aos olhos.

     — Matar?! Pelos céus, Kings Aderio, que história é essa?

     Olbett Tistein analisou aquela mulher pisando em seus tapetes. Tão suja e machucada. Mas a conhecia de algum lugar. Bom, Olbett Tistein nunca se esquecia de um rosto. Buscou alguns panos na dispensa e encarou Ellera enquanto era deitada numa poltrona. E, como se aquela lembrança que forçava-se a lembrar finalmente ficasse clara em sua mente, desenfreou aos balbúcios.

     — Ela... Ela? Ela! Não me diga que ela...

     Aderio soltou um muxoxo para o baú na mesa.

     — Ellera do Covil Vermelho — disse o dracus. 

     Rapidamente, e olhando para a janela que evidenciava a lua, Ade levou um pano por cima do Infinite strelatom completamente aberto. Algo estranho aconteceu quando o fez. Um chiado que ele pensou melhor não ter ouvido. Aquilo poderia esperar. O amigo anfitrião da casa estava ali ao lado e era um misto de curiosidade e preocupação. 

     Imediatamente os outros dois repararam no pequeno baú. Antes que os homens pudessem explicar o que o objeto perguntava, a voz de Ellera tomou a noite.

     — Do Covil Vermelho. Na boca dos homens sou posse de um lugar, não posse de mim mesma. Agora este baú. Reconheço, pois o mesmo era de uma de minhas mães, um presente muito querido de uma amiga dela, e que me deu quando completei anos que desconheço, há muito tempo. Tempo que nenhum dos bebês aqui era nascido, até passar para minha filha. E agora está aqui no lugar onde tramaram a morte dela, visto pelo dedo que o saco guarda. Foi isso que obteve como troféu?

     A língua de Ellera era uma navalha muito bem amolada. E Aderio não queria ver a sangrenta poesia que ela poderia entoar.

     — Homem! Vá trabalhar! O chá mais frutado que você tiver. Ela irá gostar, e pra já!

     — "Ela irá gostar" — repetiu Olbett Tistein desdenhando o sabor das palavras. — Há algum tempo você estava destruindo à ela e seu chamado Covil.

     — Tistein, a hora não é agora!

     — Não minto, meu rapaz, não minto.

     Não era o caso, mas se Ellera tivesse forças, poderia fazer com que ambos tremessem em receio. Derrotada, contudo, guardou apenas aquelas palavras em algum lugar no qual os dois não poderiam alcançar. Os sentimentos dela continuavam confusos. Muito provável que pensasse estar no limiar entre a vida e a morte. Bastava um último chá. Depois, o sal do metal certamente abrasando-lhe o sangue.

     — Devo lembrá-lo de quem me levou até lá? Você e seu pedido — disse Aderio rasgando a espada para fora de sua bainha direita. — E você se esqueceu do chá.

     Ellera indagava-se quem era ele.

     — Oh, sim. Milady Ellera residia num lugar muito bonito — a voz de Tistein saiu desconversada.

     — Tão bonito quanto amaldiçoado — disse Ellera. 

     Uma gota de suor rolou pelo rosto macilento de Tistein que deixava a voz morrer à medida que se enfurnava adentro da casa.

     — Não espalhe aos corvos, Olbett — disse Kings Aderio atento ao que pudesse acontecer. Como Tistein já tinha sumido, Ade embainhou novamente a espada atento ao que Tistein fosse dizer nos fundos.

     — "Não espalhe aos corvos", dracus de cabeça fechada. Mas que essa! Frutas? — resmungou uma voz entre "abre e fechas" de gavetas. — Uma vampira que gosta de frutas, por essa nova eu não esperava. Vejamos, maçã, canela, limão... temo decididamente que não. Laranja, acerola, amora e citronela, também não farão tão bem à ela. Hm... Tenho das silvestres. Sim, um chá de tonalidade púrpura bastante escuro e muito frutado! Ah, aquela senhora olhará para o chá na caneca e já terá sensações revigorantes.

     Ellera e Aderio conseguiam ouvir nitidamente os resmungos dali onde estavam. 

     — Não duvido — disse Ellera bem baixinho, ofegante.

     Pálida, deixou-se acomodar na poltrona mais próxima à lareira. De algum outro lugar nos túneis cavernosos da casa, Tistein gritava rápida e severamente, sem se importar com a outra "residente" deitada ali em algum lugar.

     — Kings Aderio, você deixou a milady letárgica! A respiração eu consigo ouvir daqui, o que não é bom sinal. Presumo que o pulso também esteja fraco, outro péssimo sinal. Você a trouxe para que definhasse aqui? Não! Você a trouxe para esse Equilíbrio, para que se depare com o livro e que possamos conversar sobre o Sopro que tanto deseja.

     Equilíbrio, livro, sopro. As três coisas que juntas perfuravam a cabeça de Kings Aderio, além de uma desconfiada Ellera.

     O dracus e rei tinha um plano traçado para ela e Tistein. Bastava que o vento os ouvisse depois de desembainhar sua lâmina mais uma vez.

     — Então serei julgada por um livro? — perguntou Ellera para o silêncio. — Como? Cortando-me com as páginas?

     O grande lume da lareira refletiu a dúvida em seu rosto. Um enorme castiçal tremeluzia na mesa também. Mas era só isso que havia ali. Não mais o diadema, ou as adagas, ou os outros pertences que o dracus trouxera do Covil Vermelho. Apenas o baú aberto com o dedo dentro do saquinho de couro para compor o cenário de um ritual que, para Aderio, continuava repleto de estranhezas. Entre gritos lá de dentro da cozinha e uma chaleira iniciando seu convite estridente para um chá, Kings Aderio ouvia os batimentos de Ellera como tambores de guerra batendo ao seu lado. Na sala ampla e abrasiva, trocaram olhares. 

     — Dracus. Poderia ter me contado  — disse Ellera.

     — Não era necessário — disse Kings Aderio.

     — Não é ninguém para julgar dessa forma, Kings Aderio. Esteve no Quase Guerra, uma história que poderia ter me contado. O meu Covil Vermelho tremeu com o que aconteceu há quase dezoito anos.

     — Um quase guerra em que se luta e se morre, não é um quase guerra. É a própria.

     — Penso sobre o quê mais você mentiu para mim. E na mentira de alguém justificar mentir.

     Kings Aderio não respondeu. Afinal, não tinha respostas. A sinceridade sempre lhe foi tão fácil. Era um ensinamento que pensava um dia poder ser ensinado a alguém. Ali ele só pensava que Olbett demorava demais com aquele chá. Precisava falar o quanto antes, e Ellera também. O vento e as neblinas de Nianda tinham de ouví-los. Além disso, a gralha de Iala não havia adentrado por nenhuma janela em busca de Ade. Tantas coisas na cabeça, que Kings Aderio até se esquecia o porquê de olhar para a floresta através da janela.

     Do lado de fora, a Universidade dormitava numa paisagem de um grande mar branco rasgado por pináculos escuros. As torres de cada departamento eram altas. Quem as observasse diria se tratar de uma muralha guardando um enorme gigante. O Monte e suas torres mais altas que qualquer espaço dentro de Nianda. E, por um relance lá ao fundo, Kings Aderio viu uma silhueta da Agulha como se estivesse a um metro de distância. Podia tocar nela se quisesse. Tinha seus sentidos confusos. Nauseado, talvez por se pôr no alto daquela torre que desafiava a altura da montanha, encostou-se junto à parede, derrotado mais uma vez pela terrível verdade dos dracus de que Ellera queria tanto conhecer mais. Situação que entre todos os campeões, somente Aderio passava com demasiada frequência.

     E era uma tolice enorme. Tentar esconder de uma criatura da Natureza é pedir para perder seu tempo. A milady, como Tistein a chamou, não ofegava sem perder vestígio do dracus.

     No tilintar de prataria ao fundo, Aderio se perguntava qual dos dois era o mais exausto. Ellera respondeu-lhe quase cessando no respirar.

     Seu corpo estava gelado, mostrava-se prestes a ter espasmos. 

     Ade tomou-lhe os braços, era preciso agir rápido. Mas também estava fraco. Uma lareira ardia ali ao lado. Ade tirou as luvas e depositou a mão na brasa, não sem sentir bastante dor no início. A chupa-cabras o olhava com aflição. Se tivesse forças para impedi-lo, mas não as tinha. O que faria com ela exausta, indefesa? As mãos de Kings Aderio tomaram a cor laranja do fogo que continuou lambendo-lhe os dedos. A outra mão tinha um calor envolvente demais, assertivo demais. Estava pousada no rosto de Ellera. O dracus tinha propriedades curativas, mas não eram tão boas como as de Mangura ou Rapey-Rhôda, seus outros companheiros. Estes curavam até mesmo o cessar dos movimentos dos braços e pernas. Já Ade, precisava de outras, como solicitar às virtudes do fogo. Por breves instantes ele fechou os olhos sentindo o corpo de Ellera nos dedos.

     Como um menestrel, ouvindo sons de ocarinas e tambores, Aderio entoou em mente:

"Não chego aos confins de sua mente ou de seu coração. Mas encontro as linhas de sua dores com as mãos 

Meu calor as tira como se vestisse o perdão.

Como se fosse com a mão. 

E sente dor, senhora. 

Seu pânico é o último sopro do coração. 

Sua dor aumenta mais na ponta dos dedos. 

Dos dedos quentes de minha mão. 

E há de se entregar ao calor. 

No pertencer à paz, não à dor. 

Descanse. 

Deixe que eu tire sua dor com os rios de meu calor. 

Não esmoreça, descanse.

E deixe-me tirar-lhe na mão tudo o que é sua dor."

     Não houve luz ou qualquer sorte de movimento estranho do fogo. Apenas o alívio. Ellera sorriu rápida e disfarçadamente assim que ele terminou de falar em sua própria mente. Leria a chupa-cabras mentes?

     Ade tomou liberdade de pegar um cobertor que tinha cheiro forte de perfumes. Para sua surpresa, Ellera não comentou absolutamente nada. Estava revigorada, mesmo assim, exausta. Olhava do baú para o pano que guardava o livro que a sentenciaria ou não à morte.

     Dos interiores da casa, passos apressados e o tilintar mais forte da prataria indicavam que o anfitrião chegara: 

     — Aqui está — disse Tistein com uma bandeja entregando chá para ela e alguns biscoitos de nata com geleias de brusberry, a amora das Sinuosas. Tinha um aroma forte, a cor verde assemelhava-se aos venenos-de-sapo, bolinhas verdes comuns por empestiar a grama por todos os lugares. Apenas um herbalista brilhante poderia diferenciá-las uma da outra. E se não bastasse só o desjejum noturno, Olbett também trouxe um pano úmido e quente para levar ao rosto de Ellera e limpá-la. Isso ficou à cargo de Aderio. A roupa de Ellera tinha se tornado um camisolão. Nada havia debaixo dele. Mesmo assim ela desabotoou a roupa, espontânea, e indicou onde Aderio deveria limpá-la. Ele o fez rápida e delicadamente torcendo a sujeira molhada num bálsamo. Era tanta que se juntou em crosta. Com outro pano úmido, Ade amaciou a testa de Ellera gentilmente. Ela sorria morna.

     Logo irá ficar irada, pensou Aderio.

     E enfim o chá fez o seu efeito na boca dos três convivas, já que prontamente a convalescida Ellera mostrou-se levemente mais disposta por ser tão nítido o quanto adorou o chá.

     — Tenho que reparar num livro — disse Ellera lembrando o que ouvira de Tistein. — Mas que mal isso tem?

     — Mais fácil indagar que bem ele tem — disse Tistein, a voz tremia. — E a resposta é pouco ou nenhum. Apenas uma mente mais inteligente que o próprio livro pode transformar o ruim que está ali em algo bom.

     Olbett Tistein puxou o casaco com confiança. Continuava a despejar o calor da chaleira nas frutas trituradas para mais uma rodada de chá. A fragrância era quase sentida pelo paladar enquanto falavam.

     Logo os fatos duros tornaram em conversas acolhedoras. As histórias fluíram à medida em que o chá descia por suas gargantas. A lua lá fora tinha passado o cume das montanhas quando a história de Olbett Tistein, Floreta e Danvania deram lugar ao horror do Covil Vermelho. Ellera não omitia nenhum detalhe para o perguntador Tistein que andava de um lado a outro fazendo anotações mentais. Kings Aderio apenas olhava e confirmava. Mas, é claro, em algum momento seu nome aconteceria em meio aos fatos. Pois os três eram interessantes entre si. Ellera, uma mulher, chupa-cabras com idade milenar. Olbett Tistein, capaz de tirar o mar de conhecimento dentro de uma mísera pedra. E Kings Aderio, rei torto que vagava pelo mundo a desterro de seu trono, e um dos dracus deste tempo. A sorte de assuntos era tão grande que mudou de consistência rapidamente.

     — Essa reunião é muito estranha. Eu pedi à Aderio aqui que fosse até Danvania e resolvesse sobre os desaparecimentos na cidade. Ele vai, descobre o que havia de errado e derrota a senhora e sua filha. E agora estamos todos reunidos em meus corredores conversando as razões que o levam a não falar que é um rei e dracus. E o mais estranho deles, muito provavelmente.

     — Penso no que mais não me contou — disse Ellera.

     — Eu lhe disse o que era necessário — respondeu Ade.

     — As necessidades escondem suas mentiras.

     Kings Aderio começava a sentir o calor do chá ferver-lhe a paciência — Pois então, Olbett ouça o que ela tem a dizer e diga se menti.

     O cômodo ouviu uma rápida explicação de quem era Kings Aderio. A voz de Ellera foi breve, elencando o todo sobre o dracus, acrescentando agora este último ponto. Todo que era nada. O amigo Olbett, contudo, não conseguiu esconder um riso que por si discorria o problema que Ade pediu por enfrentar.

     — Olbett! — ralhou Kings Aderio.

     — Mentiu para mim — disse Ellera destilando o gosto de cada letra.

     — Fui pleno em verdade! No que menti?

     Olbett começou a elencar:

     — Por onde começar do que não disse? Vejamos: Que é rei em um diunreinatus condecorado por nada mais nada menos do que Lorde e Rei Ecanda de Luniestra; e antes lutou contra o exército de Verygar, o lunático da magikha, e foi testemunha ocular do golpe que tirou da serpente a cabeça? Que é tido por muita gente como o maior portador de espadas deste mundo; que já salvou muitas pessoas pelo seu caminho das mais estranhas histórias trágicas, inclusive a mim, nesta parte já falamos um pouquinho, confesso; que fez parte da comitiva de Bellara e foi com ela que se tornou em dracus; que enfrentou a Sacerdotisa de Sangue e foi o responsável por desferir o golpe que a baniria de nosso mundo;  que talvez seja o homem mais poderoso desse mundo, ao menos que eu conheça; que é como um dragão, mas não o é... Enfim, meu rapaz, você não contou a ela nada de sua vida. Apenas seu nome e de onde vinha, aparentemente. Um grão.

     — Mas nada disso era necessário.

     Ellera murmurava que tinha sido enganada. Olbett soube o quanto Kings Aderio não entendia certas coisas. Ou que pudesse tê-las esquecido.

     — Para se obter o melhor resultado, opte sempre pela sinceridade — disse-lhe o amigo.

     — Que diferença faria se contasse tudo?

     — A diferença do real saber, Kings Aderio. E não é você que tem esperança quanto à ela? Ora, o livro não está coberto à toa.

     — Posso confiar nela pela Natureza e o que rege o... 

     — Equilíbrio — interrompeu desdenhosa e bruscamente Tistein. — Temos que conversar sobre o tal Equilíbrio que pensa conhecer, mas não agora que as confianças decrescem a cada gole de chá!

     — Não quero mesmo confiar em você — disse Ellera passando o dedo na borda da xícara de chá. Era de alguma sorte de cristal e fez um barulho lamurioso.

     — Disse-me que sou boa. Que há esperanças para mim. Mas não se cansa de mentir. Desde minha casa tem mentido e sustentado suas omissões para conseguir algo. Já entendo que foi à mando deste senhor investigar — Ellera voltou-se para Tistein. — Não lhe censuro por isso. Talvez agisse por igual. Ainda porque não estava combinado entre os dois que ele me enganasse.

     — Não sabíamos quem ou o quê estivesse causando as mortes — disse Olbett Tistein. — Muito dessa história ainda parece um borrão se comparado às telas de seu falecido esposo.

     — Em cada engano da língua se vai sem volta a confiança — disse Ellera. — Vou prosseguir com o que quer que seja. Será ligeiro, suponho, e melhor, já que isso tudo é torturante.

     — Pois que não seja — disse Tistein bastante alterado. — Ora, aliás! Eu quem estou lendo este livro que a julgará! Nenhum dos dois está soltando as tripas fora com as náuseas. Vocês não têm ideia do que se trata engolir tantas sortes de conhecimento de uma só vez. E, detalhe que não disse a Kings Aderio antes, mas como já esperava, não há como, não existe possibilidade, é humanamente impossível eu guardar tamanho aluvião de conhecimento. A cada vômito, a cada dor de cabeça, algo se vai! Ouve, Kings Aderio?! Algo se vai! Eu não quero ser alguém esquecido!

     Ellera ergueu uma sobrancelha para o senhor de todos os chás.

     — Acalme-se, homem — tentou Ade. Tentou, pois já tinha provocado em demasia.

     — Calma para a perda de estudo? Não há calma para a perda do meu tempo sendo que não podemos perder tempo com sua inútil estupidez.

"Estou deixando ele irritado, e isso pode ser muito bom para meus planos".

     Surgia a oportunidade para Eberlen uivar. Enquanto ela deixava a bainha novamente, também saíam esperanças para o dracus e a um enorme mal-entendido. 

     — Mas, pelas minhas barbas, o que pensa que está fazendo? — indagou veementemente Olbett Tistein.

     — Façamos da pressa sua o fio de minha espada. — disse um fingido dracus. —  Esquece-se de que ela foi a principal razão das mortes em Danvania!

     Ellera estarreceu-se.

     — Você mentiu mesmo! Só me trouxe aqui para o abate, uma armadilha regada à chá.

     Mas as palavras de Ellera não tinham resposta no meio de uma discussão planejada por Kings Aderio.

    — Meu chá não teve nada a ver com isso — disse Tistein. — Ora, e principal, rapaz? Você mesmo disse que a filha era a entidade perigosa.

     "Continue, Olbett, continue, vou me aproveitar que de mim você não consegue deduzir quase nada."

     — Eu não posso ter me enganado?

     — Olhe para ela! Uma mulher querendo terminar o seu chá. Só isso o que vejo! Você também ouviu o que ela disse, ouviu sua história!

     — Já está cativo pela beleza de Ellera, Tistein? Mas agora precisa usar a cabeça.

     — Kings Aderio! Dracus, rei ou não, você que não ouse duvidar do melhor da minha inteligência ou de minhas intenções! Ainda menos quando sob o meu teto!

     — É para isso que me trouxe aqui? — disse Ellera. — Para me humilhar e ter certezas? Então arranque minha cabeça, caçador!

     "Nenhum dos dois sabe o que quero. E isso é ótimo. Uma vez, no tempo que não andavam ainda guerreiros como eu, uma verdadeira montanha disse: solte as palavras ao vento. Brade, grite, vocifere! E foi assim que Eberlen, depois de um descanso de aeons, acordou, pois as palavras têm grande poder na Natureza. Que o vento ouça comigo, abrindo estas janelas, o mesmo que eu ouço. Já que não quero lavar Eberlen em sangue."

     — Impertinente rapaz! Feche estas janelas que são de minha casa! Não sente frio, mas eu sinto!

     — Frio foi a maneira como ela assassinou...

     — Eu não assassinei ninguém! — gritou uma fúria dentro de Ellera quebrando a xícara no chão. — Foi minha filha! Siara! Só Siara! Fazia o que Siara me pedia. A vontade dela reinava! Em minha cabeça só aquilo me sorria. É terrível, eu sei... e por isso...

     O ímpeto chegara ao limite do suportável.

     — E por isso que BASTA! — urrou o mais alterado Olbett Tistein que Ade teria visto na vida. — Responsável ou não, um dedo decepado, adagas, diademas, vários pertences, e uma porção de vida que esta senhora perdeu. Basta! O que se pode fazer é continuar com o que precisa ser feito. Desaparecimentos aqui nesta cidade precisam ser resolvidos, que aumentaram exponencialmente quando saiu daqui há três dias, Kings Aderio. Não é ela a razão e quem buscamos. Mas creio, com enorme convicção, que é dela de quem precisamos. Pedi-lhe por uma matriz de esperança! O que teve início também precisa ter um fim, e libertá-la para tanto.

     A voz de Aderio trovejou arrepiando cada vestígio de pele de Ellera e Tistein. Fraco? O que saía da garganta daquele homem não denotava em nada tal ruído.

— Olbett Tistein, você acredita que esta mulher, esta criatura, esta mãe de uma assassina, pode ser salva?

     Ellera se entregava aos soluços enquanto, por dentro, Kings Aderio sorria, apesar do sofrimento que um coração gritante irrompia naquele momento. Se iria perdoá-lo, não sabia. Mas o vento os ouviria custe o que custasse. Para ele, aqui, neste momento, os fins justificavam os meios.

     — Não só ela como aos seus. Conseguiremos se você abrir mais essa cabeça fechada sua. Age como a porcaria de um moleque. Quase desconheço você... Agora, de pessoas e povos é verdade que pouco entendo. São das teorias que eu compreendo, e a da vez é libertária! Minha vontade agora é de romper esses elos que ela tem com um passado de traumas e só. Tenho grande convicção... minto, eu sei, que ela não tem culpa. Mas em muito temos nós mais culpa quanto à dor que esta senhora sente. As coisas poderiam ser feitas de uma maneira diferente, não fosse essa água já ter passado por debaixo da ponte.

    — Ouvi bem?

     — Kings Aderio, você ouve o bater de asas de uma mosca muito bem! Os corvos estão espalhando! Ouviu o que disse! De nada Ellera do Covil Vermelho tem culpa.

     O dracus realmente ouvia. E ouviu algo que mais ninguém pôde, e preferiu não levantar suspeitas para o local de onde saíra não só o som, mas também uma segunda sensação horrível que morreu no vento que deixou os aposentos rumando para o lado de fora. 

     — Será decidido — disse soturno Kings Aderio. — Ellera, dirija-se para o púlpito, olhe para o livro. Ele o dirá.

     — Ela não precisa, está em minha casa e eu digo que não precisa!

     Ellera deixou gentilmente sua xícara de chá quebrada ao lado do baú que lhe pertencia. Olhou para os dois objetos com tristeza. A xícara ficou muito mais pesada em sua mão. Dura e tão fácil de ser destruída. Viu semelhanças ali. Mas continuou até o livro.

     — Que assim seja, caçador. Já estou pronta para morrer há muito tempo.

     Mas a desconfiança passou a Tistein que começava a temer pelo que poderia acontecer. Afinal, era ele quem lia as minúcias do Livro. Somente ele sabia o quanto desafiavam em matéria de risco.

     — Você parece certo demais disso, rapaz. Certo de poder enfrentá-la. Mas se ela se transformar. Se esse livro a julgar de maneira errada em algo sequer, minha casa não vai aguentar e minhas pesquisas todas vão para os ares. Ela é maior que um demônio encarnado como o que você enfrentou. Se algo acontecer, terá arrumado dor para ela e a Universidade toda no estado em que você está. E sem contar uma briga feia com Oromergus Orom.

     — O rei de Nianda que vá à merda. E em que estado estou?

     Foi Ellera quem respondeu prontamente:

     — Quebrado. Vazio. Se eu quisesse o quebraria como torço um galho. Mas, infelizmente, esqueci o que é querer.

     Nenhuma palavra mais foi ouvida. O momento de algo que parecia mundano foi coberto pela dúvida. O barulho de uma lâmina começou a entoar no gume de Eberlen. A espada realmente parecia uivar baixinho, lenta e longamente. Como uma lamúria trazida pela frieza daquele tempo. Foi assim que os corações pulsaram dolorosos. A menção de outros sons era feita por gralhas lá fora, o amassar de tecidos em corpos apreensivos e os estalos da lenha do lado de dentro da casa. Olbett Tistein era um misto de esperança e apreensão. O que viria a seguir? Ainda que deduzisse centenas de opções catastróficas, uma o fazia acreditar. Mas Aderio não cooperava. Por quê, nas Fendas, aquele maldito rapaz não cooperava?

     Catástrofes? Nenhuma refletia o olhar cansado de Ellera para o pano cobrindo o Infinite strelatom. Objeto e mulher se encararam por alguns instantes. Gralhas, chamas e dois corações batendo muito mais aliviados tomaram o olhar do Livro.

     E foi assim que Eberlen voltou à bainha instantes antes de Ellera tocar no pano que cobria o Livro. Aquele gesto foi tudo. Ainda que incompreensível por tudo de há pouco, teve seu significado. Antes a dor descompassada que Aderio ouvia no peito de Ellera dizia-lhe que já tinha morrido.

     Não mais. Um fino sorriso de esperança apareceu em seu rosto. O tempo pareceu parar. Chegara a hora. Ellera queria dizer coisas a Kings Aderio. Nenhuma delas cruéis. Via-se morta. Era agora.

     De fora o luar contemplou a fúria do Infinite strelatom ao ser olhado por Ellera. Uma fúria que continuou adormecida. O alívio completo se fez em suspiros.

    Kings Aderio se jogou na poltrona depois de ter fechado a janela à agrado de Olbett Tistein.

     — Alegre-se e viva, Senhora do Covil Vermelho. Você foi julgada.

    Diante do Livro, Ellera tremia.

     — Confesso que... eu confesso que estou realmente aliviado — gaguejou Tistein colocando uma nova xícara de chá na mão de Ellera. Não sem tremer um pouco, não sem mostrar-se ainda um tanto perplexo e levar o lenço às próprias maçãs do rosto. Dali olhou para Kings Aderio. O sorriso escondido do dracus lhe disse tanto quanto compêndios em sua prateleira. — Maldito seja você, Kings Aderio. Maldito seja você me preocupando intuindo mais do que eu. 

     Kings Aderio lembrou de um antigo amigo tenerà. Um que o chamara de demônio várias vezes. Todas elas fora salvo pelo dracus, que, naquele tempo, nada mais era do que um guerreiro em busca de vingança. Mas esta história já foi contada em outro lugar.

     Ellera, por sua vez, não deixou seu lugar. Contemplava o livro como se inebriada. A atração por ele era enorme. Apesar de suspeito o comportamento penetrante voltado para o Infinite strelatom, Kings Aderio não retornou a tocar em Eberlen. Foi aí que os três olharam para a lua. E se um menestrel estivesse ali, poderia jurar que aquele misterioso círculo no céu pudesse estar cantando. Pois a dama do Covil Vermelho brilhava sua paz. Pouco a compreendia, talvez, mas a verdade é que agora começava um novo momento para Ellera. Não era mais observada com desconfiança, ou com dor. A tranquilidade então desceu.

     Aliviada deixou o lado do púlpito e ficou mais próxima à lareira. 

     — Com isso acredito que podemos nos ater à questão dos chupa-cabras, não é mesmo? — indagou o gênio.

     — Não me explicaram o que esperavam com essa experiência estranha. E percebi algo de muito estranho nesse livro. A começar pelo formato.

     Aderio disse que se houvesse algo de maligna, o livro responderia e a transformaria em algum tipo de força extremamente poderosa.

     — O livro, segundo pesquisas de Tistein, é uma entidade. Está vivo, e dentro dele entoam incontáveis vozes. Mas não entoam canções. São encantamentos poderosíssimos. Eu vi um encarnado tornar-se um demônio colossal de doze metros de altura ao mero vislumbre do livro.

     — Encarnado — Ellera lambeu os lábios. — Há muito tempo não ouço sobre esses demônios menores. Na verdade imaginava que não existiam mais. O que fazia com um desses?

     — É uma longa história que não precisa ser contada neste momento enquanto estou aqui, minha senhora. — disse Tistein descansando os pés sobre a mesa.— Quando me recolher, vocês poderão discutir. 

     — Nem nesse momento. — disse Kings Aderio. — Precisamos agir rapidamente. Você soube de alguma coisa?

     — Alguma coisa? — riu-se Olbett Tistein.

     Em Nianda acontecia um turbilhão de coisas. Era como se a paz estivesse completamente presa em algum fundo de carroças em meio ao trânsito de Cormin à Nianda. Bandidos tinham suas cabeças à recompensa; o Cálice ameaçava influenciar pouco a pouco, além das pessoas do povoado da muralha, às pessoas na vila dos arredores de Nianda e as do portão Sul; os pomares estavam sendo dizimados por alguma coisa que comia as frutas e não deixavam rastro nem caroço; o prefeito da vila à beira do rio tinha sido morto, as investigações não conseguiam responder como a genitália dele era a síntese de seus restos mortais; um vulto estranho fora visto na região da ponte rumo ao norte, que veio a desabar misteriosamente naquele dia; havia grande movimento no antigo fosso do menir na floresta, os moradores dos a-piques colocavam recompensas por algo num lugar chamado Resto do Nojo; afogadores retornaram às margens dos rios, e chupa-cabras estavam atacando todo tipo de criatura, inclusive pessoas

     "Cadê a merda dos outros caçadores? Hm, eu juro, o caos segue de perto o tamanho das cidades desse mundo."

     Olbett Tistein ainda falou sobre a nelia que Kings Aderio mencionara dias atrás. Isso chamou atenção de Ellera.

     — Um demônio da emoção nas redondezas? Sabe quem é o responsável por isso?

     Aderio ergueu uma mão descontente de sua estupidez.

    — Eu. E há ainda uma pequena chance de conseguir reparar meu erro se eu encontrar o corpo da menina em questão e queimá-lo.

     — Não espalhe aos corvos que você irá violar o descanso eterno de uma criança — disse Tistein.

     — Esta é a questão. Ela não está descansando em paz. Farei o que for preciso para tanto. Além disso, ela não terá descanso enquanto essa criatura andar entre nós. E será menos doloroso também desse jeito, ou ela terá dor além da morte. Mas está fugida, e ir atrás dessas coisas é o Abismo.

     — A dor além da morte — disse Ellera. — Meu saudoso esposo uma vez pintou uma bela imagem com essa temática. A cena se tratava de um campo com vista para o mar. Uma mulher recebia uma maçã de outra. A fruta trespassava-lhe o coração. Mas era o semblante dela o que chamava atenção às interpretações. Num momento, a serenidade angustiante da morte, perfurada pelo pomo da maçã, no outro, a sombra atrás daquela mulher, como se tratasse de sua alma atormentada, pegava a maçã em desespero com uma mão e a outra segurando-se fortemente ao peito, onde não mais existia o coração.

     Eu lembro desse quadro, pensava o dracus.

    — Podemos ver que se tratava mesmo do Do Contriísmo a predileção de seu esposo pintor — disse Tistein. 

    — É uma boa ilustração — disse Ade. — Diz-se que a Dor além da morte é terrível porque cada dor é sentida junto à mesma dor que teria levado alguém à morte.

     — Talvez seja a maior das aflições. Ser demônio — disse Ellera.

     — Saindo daqui irei diretamente até a vila, no meio da noite. Usarei o fogo enterrado, para não precisar cavar o túmulo. Eberlen jogará as chamas para dentro da terra, queimando de dentro dela para fora. Nenhum estalo de lareira será ouvido.

     Tistein voltou-se espantado para as elucubrações do dracus

    — Que grotesco, Kings Aderio. Não a trate como lenha para a fogueira.

     — Não o faço, meu amigo. É apenas o que vai acontecer.

     "Assim espero".

     Enquanto há chá, há prosa, diria Ladenio brasDieler. E conhecendo Olbett Tistein, Ade sabia que o assunto mais urgente acabaria ficando mais para frente na noite, apenas para angariar mais informações. Indagado ao dracus sobre quem ou o quê teria assassinado o prefeito, Kings Aderio não teve respostas senão dizer que tinha uma leve suspeita de onde o suposto assassino estaria.

     — Foi para as Sinuosas, talvez seja até mesmo de lá. E seja lá o que for consegue camuflar bem o cheiro, ou não tem mesmo nenhum cheiro. E há criaturas assim. Também garanto que a coisa odiava tanto ao prefeito quanto Nianda. Temo que vá atrás de Oromergius. 

     — O rei de Nianda. É verdade, esqueci que você também é um rei e não me contou. — disse Ellera.

      Da lareira, um estalo da lenha fez Kings Aderio ter uma forte dor de cabeça.

     "Pareceu como algo explodindo em minha mente. Hm, é, eu não estou muito bem. Viagens, perseguições, quedas imbecis, sem comer muito e bebendo menos ainda. Eberlen e eu precisamos de um descanso. Um portal está fora de cogitação ou corro o risco de levar um esporro de Bedaya ou Mangura. Rapey daria risada, com certeza. Hm, e essa! Como descansar com tudo isso acontecendo sem resolução?"

     Kings Aderio reparou no fogo crepitando na lareira. Queria estar perto do fogo tomando vinho, com cabelos quentes em seu colo também. Devaneios ao olhar para Ellera que não parava de falar. O mundo batia sons intensos em sua cabeça. Ela doía. O mundo doía.

     O infinite strelatom estava aberto. Por instantes, ao olhar para ele, ouviu barulhos distantes. Não o crepitar da fogueira, as batidas dos corações ansiosos. Era mais contínuo, suave, ainda que tomasse forma de uma cacofonia distinta. De ave volitando e gracejando; do movimento desesperado com o trombar do mar. A imagem abriu-se como uma pintura. As ondas quebravam digladiando entre sons de lâminas e rugidos. Os rugidos faziam o mar e a costa tremerem. E viu para seu ódio aquela mulher que lhe deixara o Livro antes sem nome. "Antes não tivesse lhe encontrado". Quem sabe? No entanto, Ele estava ali, pulsando, atormentando seus pensamentos agora mais que confusos entre a divindade e a loucura.

     Ellera ouvia a tudo o que Olbett Tistein falava agora com bastante atenção sem tirar os olhos de Kings Aderio. O rapaz, a seu julgamento, não se sentia bem. E não só isso: ele tinha as mãos na espada de novo, suava frio. Aquele mesmo homem que a trouxe até ali e agia quase sem clemência? Mais parecia à uma criança sem o abrigo de um abraço. Um único abraço.

     — Você compreende, milady? — indagou Tistein.

     — Que devo ser sua esperança infundada — disse Ellera.

     — Não devia pensar assim — disse Kings Aderio que ouvira a voz de Ellera em algum lugar em sua mente, não sem enorme atraso.

     — E como não pensaria se sua espada está prestes a sair tocada por seus dedos? Não foi você quem disse que fui julgada?

    O dracus não tinha percebido isso. Seus dedos tremiam. Deixou Eberlen de lado, perto da porta de entrada e voltou a se sentar.

     — O que há de errado com ele?

     Tistein, para raiva de Kings Aderio ensaiou explicar as minúcias do que se tratava ser um dracus, mas Ade pediu foco à outra coisa.

     — Não... espalhe... aos corvos, Tistein. Mas estou bem, só um pouco atribulado com essas inúmeras coisas acontecendo. Nesse sentido, podemos conversar sobre o que pretende com Ellera, já que ela se fundou em nossa esperança.

     — Você irá deixar sua espada ali e eu irei colocar as ideias no lugar, sim? Ótimo, agora que estamos finalmente no mesmo ponto de equilíbrio — Olbett Tistein limpou a garganta e prosseguiu  —, vamos buscar resoluções. Em resumo precisamos da Milady por ser uma matriz de sua raça. Não das primeiras entre os seus, mas que já deu a luz uma vez. 

     — Tenho muito tempo — disse Ellera sorvendo um gole de chá. 

     Olbett Tistein riscou no bojo do longo cachimbo — como sua barba —, logo deixando a poltrona onde se sentou espessa de fumaça. Ellera suspirou olhando tensamente para o dracus — E Siara foi minha mais recente filha. Tive outros filhos também, nesse tempo, mas não uma mestiça. E por quê precisam de uma matriz?

     Kings Aderio não pôde deixar de pensar em como Ellera tivera suas outras proles depois de conhecer mais sobre os chupa-cabras há não muito tempo atrás. Olbett explicou que os chupa-cabras na região estavam atacando toda espécie de vida, inclusive pessoas, dando preferência para crianças. Além disso o número de ataques aumentava a cada dia.

     — Se o número de ataques aumenta, o número de nós também deve estar se multiplicando. Minha raça não ataca para outra coisa, senão, procriar.

     — Vou tomar cuidado com a palavra — bufou elos de fumaça Tistein. — Mas é como se fossem pragas?

     — Não — Ellera franziu o cenho. — Mais como precaução. Não procriamos por sentimento como fazem humanos. É pela defesa de nossa espécie que o fazemos. Quanto mais de nós, menor o risco de uma ameaça cair sobre nós.  E se estão procriando desenfreadamente,  bem, é porque estão sendo ameaçados por alguma coisa.

     — Uma ameaça aos chupa-cabras? — indagou Tistein. — Como deveríamos pensar quanto a isso?

     — Como uma aniquilação. Não temos predadores naturais. A vasta maioria de nós, diferente do que pensam, não é sugadora de sangue. Deve ter sido uma dessas histórias que foram contadas por alguém, passada por outra pessoa, que ouviu ainda de outra pessoa, e assim por diante, sobre fatos desencontrados. Uma carcaça que tinha sido sugada, e um... chupa-cabra estava no lugar naquele momento, e foi tido como responsável, sem poder defender-se do olhar do homem. Fomentou ideias erradas. Gerou uma história virando fato ainda que entoada por acordes mentirosos.

     Kings Aderio ameaçou um comentário, mas Ellera prontificou-se a elucidar seus argumentos.

     Enquanto isso, Tistein recorreu a um de seus livros na prateleira. Um objeto de capa cinza, cheio de nervuras, amassado como a vela guardada de um navio. Ele soprou e a fumaça levantou a poeira do livro que mostrava diversos relatos de ataques de monstros. Ali estavam retratados em desenhos perfeitamente detalhados: afogadores, piromanios, vermes-da-fossa, cavernúculos, epinhanzeiros, perdigueiros, estripadores, leanpanteras, e outras tantas feras que Kings Aderio já tivera o prazer e o desgosto de encontrar. 

     "Nunca mais quero ver um espinhanzeiro, eu juro. Malditos baixinhos." 

    E em meio há tantos relatos de encontros com espécimes que a maioria dos seres viventes desconhecia, entoou a leitura Tistein:

"A criatura se portava de maneira agressiva. Seus olhos muito grandes se moviam para direções diferentes ao mesmo tempo, como fazem os lagartos das regiões de florestas áridas ao norte de Escudo de Beon. Esferas de cor viva, pulsante, iradas e ávidas. Voltaram-se para o mesmo ponto apenas quando viram o que tanto queriam: carne, pele, sangue. A boca era toda formada por molares, não havia nenhum canino por toda a arcada dentária, mas a língua do exemplar era fina e aguda como um prego. Movimentava-se como serpente fazendo silvos de chicotes. As correntes quase não seguraram a lascividade furiosa que se expressou do exemplar. Os braços, antes esguios, como da mais lívida das mulheres, ganhou contornos, músculos e mais veias do que um ser humano consegue ter. Resolvi jogar a perna de cervo para ela. Não demorou muito e já não existia cervo algum. A criatura o chupou de uma maneira grotesca enchendo a garganta com a perna toda que foi sumindo pouco a pouco, tornada em suco de carne, pelos e ossos"

     — Por Ambel, Olbett! — Kings Aderio invocou sua estimada pedindo para o relato terminar. 

     Ao contrário do que pedira, Olbett correu os olhos mais rápido pelo relato até que seus dedos pararam de riscar o livro puído.

"Continuamos os procedimentos. A criatura já havia experimentado da carne dos animais mais comuns da região. De fato, se trata de um espécime carnívoro e, diferente de muitos na natureza, consome inclusive os ossos de suas presas. Temo, principalmente, ter o dever de alertar sobre suas capacidades mentais. De alguma maneira, o espécime conseguiu manipular a um de nossos cuidadores que vigiavam a cela. Quando chegamos já era tarde, tendo ele sido reduzido ao tecido das roupas. A criatura em questão sorria. Aos olhos de um leigo, apenas uma criança."

     Olbett fechou o livro buscando fogo do bojo do cachimbo.

     — Os relatos deste livro remontam há mais de oitocentos anos. Não à toa é grosso. Há incontáveis histórias de experiências terríveis que foram realizadas ao longo do tempo. Este em questão é o relato de um dos primeiros casos relatados de ataque de um chupa-cabras. Uma criança.

     — Cuja história vocês desconhecem — disse Ellera veementemente. — O exemplar, como chamaram ali, era alguém. Antes de um experimento era uma criança. Estaria passando fome pela falta de tato dos senhores de sua cidade? Teria sido abandonada? Não podem saber, apenas julgar o que viram.

     — Não vejo sentido nesse relato, Olbett — disse Kings Aderio embora em se tratando de Olbett Tistein, cada linha dita por ele teria uma razão de ser.

     — Para procedermos com o ritual, é preciso que nossa valorosa milady aqui, como matriz, compreenda que sua própria espécie é capaz de tanto.

     — Não basta o que vi minha filha fazer?

     — Não, isso não basta. Pois por ela a senhora tinha laço sanguíneo, era mãe daquela. No entanto, dos desconhecidos você pode não apresentar laços quaisquer, o que torna necessário um sentimento de comprometimento com o outro. Uma coisa tanto lasciva quanto parental. Em outras palavras, você precisa se compadecer por eles.

     O olhar de Ellera escureceu em dúvida e desconfiança. Depois de um breve silêncio o dracus se pronunciou já perto da porta. O tempo ali, parecia urgir.

     — Isso acaba de me fazer sentido se pensando no que conversamos, Olbett.

     Os olhos do gênio brilhavam.

     — Vamos ver se atentou-se mesmo às minhas lições.

     — Nada de bom pode ser retirado do Livro. Nada de virtuoso vem Dele. Apenas pode ser manipulado para o oposto do que Ele diz, e não por qualquer um. Nele deve existir toda sorte de maldição e manipulação. E nós precisamos de uma manipulação aqui. Mas não uma qualquer. Uma forma de expressão muito mais profunda. Que corra com o vento, percorra pelo ar, como a um sopro.

     — Oh, Kings Aderio, quer mesmo espalhar aos corvos. Quase tenho vontade de fazer um novo chá! Continue.

     — Ellera mesma disse que, se estão procriando, é por temerem pela própria espécie. Algo os ameaça: O Monte, o Cálice, esse espírito errante que chamam de sacerdotisa? Não é o ponto no momento. Esse comportamento, nas mãos das pessoas erradas, poderia ser usado para deflagrar raiva, ódio, cobiça, sentimentos compulsórios em uma batalha. Usar e manipular o pior para gerar uma força de guerra bastante poderosa. De obediência, e só. Coisas que vão de encontro a o que é o Livro. Se existe tal, existe então seu oposto.  O sentimento de proteção, de tomar o outro como mais do que alguém a seu lado. Como do próprio sangue. Em guerra, senhores não derrubam o sangue de seus próprios filhos. Isso o fazem com os desesperados, os manipulados. E qual poder tem as lágrimas dos que se vão?

     — Guerras, senhores, lágrimas — disse Ellera. — Qual relação fazem com essas ideias?

     — Basta pensarmos em no que se resume as lágrimas pela ida dos soldados? — indagou Olbett Tistein com os olhos em chamas. A resposta que se deu veio ainda mais poderosa na voz de um dracus.

     — O amor de mãe.

     Se teria sido por causa daquelas palavras que a janela se abriu, os três nunca saberiam. A verdade é que os três olharam para a janela indicando uma lua já quedada atrás das árvores.

     — Você me disse isso — lembrou Ellera. — Ter feito o que fiz por ser minha filha. Mas não entendo.

     — O poder dentro do amor de uma mãe ainda é muito estudado pelos caminhos de nossos Sete Continentes — disse Olbett Tistein. — Isso porque seu tamanho ainda nos era, em muito, incompreensível. Algumas vezes ele já foi colocado à prova. E às vezes se manifesta nos homens também, como foi o caso de Lorde e Rei Ecanda, de Luniestra. Relação poderosa que levou este entre nós a se tornar um dracus.

     Kings Aderio não queria continuar aquela conversa que duraria mais do que diversas xícaras de chá. Falar sobre a comitiva de Bellara ainda doía-lhe mais do que deveria. Além disso, não estavam mais em três. Alguém acordara no quarto ao fundo. E Kings Aderio não queria ter com ares arrogantes tão cedo, por mais belos e sedutores que fossem. Algo lhe dizia que não muito tarde estaria com o senhor do Monte para fazer cerimônias ao plano de Iala que ainda não tinha começado. Pensava se o que houve ali na casa de Tistein teria desdobramentos de alguma maneira à favor do que estaria por acontecer. Isso só os corvos talvez saberiam.

     Ao tomar a espada e se dirigir para a porta, ouviu apenas um "deixe, ele é assim" da voz de Tistein. Mas não conseguiu sair à tempo. Na escadaria, fitava-lhe com olhar de lince marinho uma mulher destemida. Quando Aderio fez menção de se mover, Ellera dominou a ele e a todos os momentos.

     — Sai assim sem nada dizer quando tem muito o que me contar ainda — ela lhe disse.

     — Talvez em outro momento. Além disso, terá companhia o bastante para uma longa conversa, acredite.

     — Mas não será com você, caçador de mim. 

     — Ainda não.

    Ellera desceu um degrau. O olhar alto, como Kings Aderio a vira uma vez descendo de seus aposentos no Covil Vermelho. Ela se vestia de alegria. Estranhamente, ali também.

     — Como lhe disse, estarei na cabana da floresta, que tem vista para a Agulha. Aguardarei por suas verdades lá.

     Antes que ele pudesse dizer algo, a distância de alguns metros foi vencida na mesma velocidade com que o vento assoprava. O dracus viu-se derrotado contra a parede enquanto seus lábios eram amaciados pelos de Ellera. Os lábios não se moveram, e na boca um do outro repousaram guardando o profuso momento no fechar dos olhos. Aderio pensou se foi uma nuvem o que veio antes até ele. Ou quem sabe alguma sorte de brincadeira da neblina de Nianda. Foi tão rápido, a força empreendida, impressionante. Seus braços estavam seguros por Ellera. Languidamente vencido, dominado por um beijo profuso.

     Na rua olhando para as luzes foscas eneblinadas, Kings Aderio ainda se indagava se buscava o céu por entre o mar eterno, ou um olhar de céu mais azul do que o próprio mar.

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