O Monte e o Cálice: Parte IV - Coração Confuso
Estrada adentro e estalagem afora, Kings Aderio só pensava num lugar para se deitar. Esta noite não seria na casa de Tistein. Normalmente quando terminava algum trabalho pendurado nas tabuletas de avisos de perigo, desaparecimento, descontrole populacional, mortes, ou onde se chafurdar nos poços de bostas, em pântanos e aquedutos, Ade preferia pegar parte — ou nada — da recompensa e depois ir embora do lugar. Muito raramente ficava numa estalagem, dando preferência ao relento ou a uma longa jornada.
Os dracus tinham uma pequena peculiaridade além das inúmeras que já possuíam. A caminhada para um dracus era uma forma de revigorar as energias. Os pés saciavam a fome dos músculos, recuperavam feridas, até mesmo as profundas, o ar retornava aos pulmões com mais profusão. Isso se dava, segundo Adverus Aramor, por bípedes serem tão incompetentes de evolução. Não entrou em muitos detalhes, apenas era assim e se mostrava artífice maravilhoso para os dracus, afinal, podiam caminhar por distâncias depois de atravessar rapidamente uma porção vasta de terra recuperando-se sem cessar. Destarte, se tivesse para onde viajar, iria. Mas Kings Aderio tinha deixado muitas coisas fora de lugar: a menina precisava ser sepultada e incinerada por sua morte tão brutal causando no aparecimento da nelia; Olbett Tistein ainda precisava ser consultado, ora, não tinham finalizado a conversa niandina, por assim dizer, à respeito do sopro que vencia a morte; ainda havia o ritual, Ade achava apenas um capricho de Olbett, mas vindo dele dever-se-ia tratar a sério. Além disso ainda havia a rainha, precisava ter certeza de estar bem; além de Oromergius. Essa última parte não deixou-lhe nada animado. A vontade era de esbofetear o rei, depois Pólo, para finalmente tomar um banho, lavar as mãos manchadas do sangue dos dois.
Antes de adentrar na Arco em Forca, Kings Aderio foi pedido a explicar para o estalajadeiro o que havia acontecido naquela noite. O homem estava com outros mais do lado de fora atraídos pelos barulhos de Eberlen e os gritos dos chupa-cabras. Como sempre prezou pela sinceridade, e era muito frio quanto a ela. Deu detalhes encorajando para que se apressassem a dormir e que possíveis ladrões, em meio à multidão se avultando com o som de sua voz, pensassem muito antes de buscarem um possível combate. Cansado estava, não inofensivo. Assim se fez deixando a estalagem emudecida. Vozes, portas batendo, bandejas na mesa, garrafas guardadas, louças gemendo na água gelada da pia, o pano lustrando, o canto crepitante da lareira. Até se aquietar na recepção, nas mesas e na cozinha.
O dono da estalagem, um homem chamado Vilar, obedeceu a seu pedido mais pelo ouro de Luniestra do que pelas ameaças na voz de Kings Aderio. Não obstante uma mordida na moeda, apenas para ter certeza da procedência. Sem contar o olhar ríspido de Aderio.
Deitado em seu quarto, Kings Aderio lembrou de algo que ouvira lá embaixo. Na verdade uma expressão entre cachimbos, bebidas e queijos. Das falas de boca cheia ouviu cálice, cálice, Cálice. Diversas vezes. Nem um elfo ouviria tão baixo sussurro. O assunto dizia respeito aos a-piques e pessoas fugidas de lá. Haveria certo movimento antes e em breve. Muitos se aventuravam a deixar seus barracões desafiando a guarda mais baixa de Nianda. Queriam ir em busca dele: Tenar Alvum.
Nianda tinha um sistema simples de ser explicado quando não se entrava nas miudezas dos moradores. Basicamente tratava-se de uma cidade opulenta, beneficiada pelos minérios das Colinas Sinuosas ao norte, os pomares à volta, a Universidade em seu centro e toda sorte de mercadorias por todos os lados. Na cidade se tecia, armava, vendia, comia, roubava, traía. Uma cidade como muitas. Mas ao lado da muralha leste, ao pé dos canais desembocando no lago, se avultou uma família. Depois outra. E mais outra. E outra, crescendo nas sombras da ponte lá no alto. O Monte não podia observar o crescimento do que estava abaixo da ponte. É que Nianda era Nianda. O olhar voltado apenas para o alto e à frente. As pessoas andavam com queixo erguido, o olhar baixo, tentando ficar acima da neblina. Se de fora da cidade fosse visto um porte parecido, as pessoas já diriam se tratar de ar niandense de ser. E escondidos pela ponte, famílias cresceram crianças. Junto a elas, sonhos, pois as pessoas não podiam pagar a taxa para entrar na cidade. Portanto, que trabalhassem, ora. Como, se o trabalho faltava? Então agora o niandense tendo erguido seu trabalho agora teria de arranjar lugar para essas pessoas? Quem as mandou aparecer em seus muros? Ora, não se doa lugar a quem não tem lugar!
As palavras eram lembradas por Kings Aderio com raiva. O Equilíbrio deveria ser relativo a esses reis que se acham tão superiores, pensava ele. Equilíbrio para matar quem deve morrer. Em dada reunião, ele, Oromergius e a rainha Iala dedicaram-se nesse assunto. O primeiro com curiosidade, o outro com desprezo e a rainha buscando uma solução. "É seu povo, rei de Nianda. E meu povo, já que me escolheu como esposa". "Silêncio, rainha minha. A senhora não pensa com a mente, mas com a inocência do coração, ao defender o bem-viver dos subalternos, com toda a devida vênia."
A senhora Iala tinha apenas treze anos.
"Seu olhar para mim foi inclemente, Iala. O busto ergueu-se feroz com sua respiração. Hm, você se irritou e mostrou fibra ao respondê-lo. Palavras que não me esqueço."
Ade revirou na cama dura até receber uma batida na porta. O banho estaria pronto. Já um pouco despido, abriu a porta para ouvir ventos de fúria lá de baixo na estalagem. Uma voz crocitante, fina como instrumento desafinado, demandava a presença de certo forasteiro, sabiam que estava lá, tinha de estar ali. Ade ouviu o estalajadeiro vociferar em defesa do rapaz, o que deixou o hóspede muito grato.
— Tome um banho você — disse o rei para o menino ao vê-lo trazer uma bacia com água fervente. — E durma no quarto também, se não tiver um.
— Senhor eu não posso — aos balbúcios a criança não sabia se acertava palavras ou segurava água. O rei a levou para perto da porta da bacia.
— Apenas aceite minhas palavras, o quarto está pago.
— Mas e o senhor, meu senhor?
Ali o rei tocou-lhe no rosto como um pai faz ao filho.
— Pelo jeito, durmo hoje em outro lugar.
Ao descer foi exatamente o que aconteceu. O olhar de Kings Aderio fez as poucas pessoas ainda nas mesas se afastarem. O que estava acontecendo? Por que queriam que se apresentasse ao rei de Nianda? As respostas vieram a seguir, quando o homem de elmo de bico de águia disse que a presença de um dos ilustres reis do diunreinatus de Seta Ambel era requisitada e sua escolta seria realizada imediatamente.
Rei de Seta, em diversas vozes sacodiram copos e velas naquela noite.
Uma visita à cidade que era para ser rápida e sem chamar atenção, foi o que pensou Aderio quando veio em busca de Olbett. Não demorarei, pensou. Ele me dirá o que quero saber e eu lhe darei aquilo que quer, pensou. Não verei Oromergius e infelizmente não verei Iala, pensava. Ninguém vai me ver. É ninguém, iria vê-lo.
Janelas se abriram para ver foscas tochas desafiando a neblina. Trombetas tocando a melodia das visitas ecoaram na noite. As obviedades do rei de Nianda, pensava Ade: fazê-lo famoso para que também não tivesse sossego. Com o tempo as pessoas poderiam amá-lo, provavelmente. Os espiões também. Olhos por toda a parte estariam voltados para ele, o rei de Seta. Atormentado por toda essa pompa, a única coisa aliviando-o era poder ver a rainha, se Iala estaria bem e também uma oportunidade para perguntar sobre o homem misterioso que se dirigiu até ela. Kings Aderio esperava por ouvir o relato de Iala. Ela, Neiva e Ambel talvez fossem as pessoas mais sábias que já conhecera em sua longa jornada. Talvez mais até mesmo do que seu amigo Tistein. Diversas vezes Olbett lhe disse não haver sabedoria maior do que o saber da própria vida "seus conhecimentos particulares, meu jovem," dizia Olbett, "são a verdadeira sabedoria, pois ninguém pode saber o que é viver a vida do outro." Seu querer colidia com o dono do Monte. Oromergius, é claro, recebeu Aderio na porta do castelo. Para desagrado de Kings Aderio, os entulhos da destruição estavam sendo contados e recolhidos por trabalhadores. Kings Aderio percebeu: eram todos de pele bronzeada ou escura, sinal de que Iala não estava ali, ou seria terminantemente contra, ainda que perdesse um embate com Oromergius. E se Neiva,a rainha de Seta estivesse ali também, seria ela a erguer os entulhos porque o povo era dela e ela devia a ele, não o contrário.
— Pelo visto prefere entrar no castelo sem convites a ser convidado — disse a boca fina de Oromergius.
— Já havia incomodado as paredes desse lugar demais por uma noite.
— Tolice. Estando em Nianda, rei de Seta, pousará no Monte.
— Não precisa se incomodar da minha estadia na cidade. Vim rápido.
— Para ver amigos — Aderio notou o queixo de Oromergius apontando para a Universidade. — Então isso quer dizer que veio ver o Monte, ou o Monte não tem amizade com Seta.
— Seta tem grande amizade com todas as nações. A rainha Neiva, Ravenz e eu não somos afeitos a embates contra nenhum Estado — disse o rei de Seta, ansiando que fosse entre os dentes.
— De fato. Os novos aprendem o reinado. Seus aposentos o aguardam, dracus e rei de Seta. E espero vê-lo dormindo como uma codorna no ninho todas as noites de sua estadia em Nianda.
— Uma codorna em meio às águias — desafiou Kings Aderio às costas de Oromergius.
— Não. Uma muito confortável em meio às águias.
Oromergius subiu as escadas enquanto Kings Aderio ainda ficou do lado de fora com uma guarda ao redor dele.
— Se sabem quem sou, melhor irem para seus postos, cavaleiros.
Aquele-que-cavalga-sobre-as-caveiras-levando-a-neblina nos ordenou que ficássemos à sua disposição — disse um dos bicos de águia.
"Ele ainda usa essa porcaria de renome?"
— Se estão à minha disposição eu alegremente os disponho para beber na taverna mais próxima.
—Aquele-que-cavalga-sobre-as-caveiras-levando-a-neblina nos ordenou que insistisse para estar a seu lado por precaução.
"Precaução, você diz."
— Eu agradeço a generosa segurança e tomarei em conta a fiel insistência às ordens de seu rei. No entanto, eu não preciso de vocês para me verem tomar um banho.
— Aquele-que...
Kings Aderio já estava farto de tanta cavalgadura na neblina.
— Ouça aqui, camarada. Vosso rei ordenou-lhe que fosse-me fiel, e está sendo. Mas corre o risco de não ser mais, pois o rei de Seta também é dracus, já que seu magnânimo fez questão de frisar há pouco. Preciso explicar o que significa isso?
O homem fez menção em abrir a boca. Detrás dele havia outro distinto homem segurando o elmo nas mãos. A barba branca algodoada e a pele negra encheram Aderio de esperança. Havia um brilho intenso naqueles olhos negros. Os lábios grossos se fizeram num sorriso cúmplice tocados pelo indicador da mão livre. Ele fez uma mesura e se foi para dentro do castelo. O gesto mais tranquilizador de todos até então desde o início daquela noite.
Tendo horrorizado a guarda inteira com a possibilidade da fúria de um dracus, Kings Aderio dirigiu-se para seus aposentos. Desta vez tomou a escada esquerda subindo para o segundo andar no qual ficavam os aposentos de hóspedes reais. Era ali que rainhas e reis passavam suas estadias. Aderio já passara algumas noites nesses aposentos. Sabia como eram e não precisava de escoltas, embora, desta vez, preferiu aceitar a gentileza de uma certa senhorita por sua proximidade com a rainha. Como se fez silêncio depois de dizer que a seguisse, Ade não perguntou nada. Deveria ser um plano de Iala, saberia talvez no dia seguinte. Tudo o que realmente queria era um banho, dado logo que entrou no suntuoso quarto. A penumbra da vela transbordava as cores vermelhas e rosadas das paredes e do tapete felpudo no chão. Certamente Rapey-Rhôda nunca teria passado um dia ali, ou senão Nianda teria um sério embate com o Palácio Cantorvalho. Era pele de lobos-guarás, os gigantes lobos esguios tidos como ancestrais em muitos povos assentados pelo mundo. E muito cultuado pelos elfos.
A sala era ampla, quadrada, com uma enorme cama com dossel de madeira. Havia um estofado vermelho em cima dela, e torres de madeira à volta do teto do dossel. As cortinas tinham uma cor de vermelho mais claro, mas que não deixava a luz penetrar. Havia um pequeno descanso, um pequeno armário em que estavam alguns pergaminhos, alguns molhados em tinta outros não. Também havia uma cadeira suntuosa demais. Jóias crivavam suas pernas e seus encostos de madeira de carvalho. Ainda no quarto havia cortinas por todos os lados que Ade sinceramente não via razão para tanto. Somente para o banho. Ele se despiu ali mesmo, na frente da mulher que logo se retirou. Conheciam-se de ocasiões. Enganado pela possível solidão ficou nu em pelo; a porta do cômodo se abriu e rapidamente dois enormes homens sem nenhum pelo e apenas os tapa-sexos cobrindo-lhes entraram no espaço para banho oferecendo seus especiais cuidados.
"Não é necessário."
"O rei insiste"
"Eu sou um rei também."
"Mas o nosso insiste".
" Eu posso tomar meu banho só, agradeço!"
"O rei insiste."
Kings Aderio fez a água esquentar. A escolta servira-lhe de algo, sentia energia revigorando.
— Ouçam bem! Esse é um dos dias mais longos da minha vida e tudo o que eu quero é que ele termine sem um monte de homens me pegando nas partes!
— Somos bons massageadores, senhor. Ficará aliviado e muito bem relaxado. E o rei insiste.
Ade levou as mãos ao rosto.
— Então estão dispensados, já não preciso de um banho, molhei-me o bastante.
— Não, senhor?
— Não, eu insisto.
Os homens só se viram satisfeitos quando o dracus e rei de Seta se perdeu num descanso no dossel. As chamas da vela bruxuleavam forte. Provavelmente seguindo as energias voluntariosa daqueles dois e suas vontades pelo rei de Seta. Assim que ouviu os passos indo embora de seus aposentos Ade se esgueirou para dentro da banheira, despiu-se, pousou a mão na água gelada e em segundos o calor aprazível massageou seu corpo. Sensações de paz transbordaram pelos membros. Despejou água para fora da banheira como uma criança. Aderio só queria paz, silêncio, que ninguém o ouvisse tomar seu banho sozinho ou jurava capar os membros reprodutores de quem lhe quisesse ousar fazer uma massagem.
No quarto não havia neblina. A única seria o dossel, realmente muito parecidos em textura. Ade se propôs a um sono profundo. Quando atendido pelo mando noturno uma silhueta percorreu seu sono.
Via o toque da sombra dos dedos na cortina. Aproximou-se mais dele, cresceu, e o embalou em um toque parecido com uma canção deliciosa. A canção se tornou ondas, movimentos subindo e descendo várias vezes. Foi quando acordou já no outro dia. Havia algo estranho. Não pensava que o sono tinha sido um sonho. Não precisou esfregar o rosto com a luz do sol arremessada pelo dia lá fora para notar: seus lábios estavam sedutoramente molhados.
Com toda a privacidade agora Ade sorriu para fora da janela. Via os pássaros voando sobre Nianda, tão esplêndida. As casas desciam de mansões nas Colinas apinhando-se depois ao fundo em diversos montes quadrados de tetos tão iguais àquela distância. Ainda via alguns departamentos da Universidade erguerem-se cinzentos, tapando as montanhas verdes mais ao fundo. Era cedo na manhã e nem tanto. Os brilhos do sol deixavam a paisagem toda ruborizada, inclusive o mar eterno. Embaixo de Ade se formavam caminhos e passadiços de um lado ao outro do Monte, que encontravam escadas, e encontravam portas, e encontravam câmaras secretas, agora pensava. Ao longe, do outro lado, a floresta parecia a barriga de um gigante verde. Havia uma pequena cabana bem escondida entre troncos de árvores caídas. De quando em quando Ade via algumas fagulhas subindo pelas cumeeiras. Poderiam ser fadas, ou poderiam ser velampejos também. Ele pensou que era engraçado antes não saber tanto de tantas criaturas diferentes do mundo. Desde a última vez que fora ao Monte muito mudou. Lutou contra mantícoras e quimeras; derrubou monstros alados e as mais perigosas feras; pequenas que matariam num sussurro, enormes que o fariam em pedaços caso o alcançassem com seus músculos; tudo a favor de um Equilíbrio não qualquer.
Segundo Olbett Tistein, o Equilíbrio, pilar dos dracus, era uma questão muito mais profunda do que apenas o controle entre as espécies do mundo. E isso causava estranheza tamanha em Kings Aderio. Tudo isso o que fizeram teria sido em vão?
Rapey-Rhôda em Cantorvalho; Bedaya e Mangura no Largo de Lunia; Bereor em Berílios? A partida de Feregard Thalmor e Bellara teria sido por nada? Havia algo mais. O dracus sabia mais do que nunca soube e isso já era um começo. Somente o pensamento em Olbett Tistein que o assustava.
Quando desceu, Kings Aderio estava vestido com as mesmas roupas. A capa cinza-esverdeada derrubada nas costas, a ombreira esquerda e as luvas grossas; uma camiseta de cor apagada por baixo de uma malha de aço muito fina e um colete de pele debaixo de um casaco. Suas botas o fizeram se aproximar de um lugar no castelo, nos andares mais baixos, onde o barulho de um sopro, um chiado e um impacto podiam ser ouvidos. A cada passo que dava o dracus ouvia também a respiração de alguém que soltava flecha atrás de flecha. Havia uma demora compassada entre o silvo no ar da flecha e o próximo, e o próximo. Do hall central ao jardim Aderio ouviu seis destes silvos. Olhou a seu redor e as pessoas trabalhavam suas mãos pelo melhor para o castelo. Novamente lamentou os estilhaços de um sublime Zairus o conciliador, no chão. E Oromergius? Nenhum sinal dele. Ótimo, pensava Ade. Todavia uma coisa o incomodava demais. Pessoas de pele negra e cor bronzeada no rosto eram as únicas a trabalharem. Oromergius continuava tratando o regime escravocrata como a essência de sua Casa. Aderio queria não se tratar de escravos, mas seu querer, seu reino, se findava em Seta e regiões, o que já era demais.
Deixando de lado pensamentos sobre Tistein e Oromergius, Kings Aderio tinha o coração a palpitar. Aproximava-se daquele ar solto por lábios carnudos e viajou no tempo. Momento em que estava em Nostermira. Nostermira era a Mira do Norte, uma região próspera de peculiaridades deixadas por bruxas há muito tempo. Na ocasião, Ravenz estava a seu lado, Neiva também... Oromergius do outro lado de um suntuoso salão. Uma nação que tinha uma linda princesa em seus onze verões de vida realçados no âmbar dos olhos. As crianças de Nostermira tinham tão linda peculiaridade. Provavelmente pelas benesses das bruxas ancestrais. Nasciam com olhos entre o amarelo e o vermelho, mas todas acabavam suas vidas com olhos do púrpura ao azul. A última vez que vira aquela mesma criança, Aderio viu um brilho de cinza em seus olhos. Qual seria agora, qual teria se tornado a cor dela? A última vez tinha belíssimos quinze verões, era ainda uma jovem. Agora, em seus vinte, Aderio não cansava de imaginar.
Soltava flechas como uma exímia caçadora de andorinhas em pleno voo. Seus cabelos eram envoltos por laços em renda, descendo-lhe pela trança deitada no ombro direito. O rosto com a cor rosada, da pétala de flor que do caule preferira largar o branco ao colo alto; tinha a tez levemente escurecida seu rosto descia-lhe liso na forma de um diamante perfeito. No rosto nenhuma marca senão a dos lábios muito grossos e os cílios enormes, hipnotizantes. O piscar de olhos deles eram como borboletas alçando voo e, agora, uma cor de cabelos difícil de ser descrita. Talvez uma brincadeira que o rosa fez com o caramelo. Aderio não sabia. Sabia que ela vestia o verde que amava, a saudade de Nostermira. Suas pernas e corpo eram laceados pela seda verde e por jóias: na altura dos tornozelos, uma corrente de prata; nas pernas nuas vestidas em tecido quase transparente havia outra na coxa direita, em elos pontudos, parecendo nada amistosos; e no colo uma gargantilha simples com uma pequena ametista.
Nem a pedra fazia jus aos olhos que, com imensa ternura, se viraram para Ade.
— Eis que vem, de mansinho, o causador de tamanha confusão — disse a rainha com a voz de manhã eterna que Ade nunca se esqueceria, a coroa num estofado deitado no chão.
— Iala — disse o coração do dracus e rei Kings Aderio.
Na verdade Ade queria dizer o quanto se preocupava com a rainha. Não conseguia, um pouco de timidez o continha
— Soube que fez muito pela cidade. E por isso sou grata.
— Somente o que devia fazer.
— Não foi o que Orom me disse.
O dracus viu-se contrariado com a forma como Iala disse. A rainha conseguira o que queria.
— É mais fácil do que chamá-lo de um nome que nos trava a língua, não é?
— Isso quando não é chamado como seus soldados menores o fazem.
Iala mostrou-se contrariada.
— Caprichos estúpidos, é o que são. Tenho pena, só pena...
Iala pegou uma flecha de uma aljava pendurada num limoeiro anão e apontou para um alvo lá na frente, no campo depois do jardim. Seus acertos seguiam uma espiral no alvo. Ela inspirou e espirou soltando a flecha depois do ar. A ponta atingiu o centro, distando dali setenta e cinco metros.
— Mas adoraria que aqueles alvos tivessem um rosto — a rainha deixou o arco ao lado. Estava sozinha, nenhum de seus cuidadores ou companheiras, como gostava de chamá-los, estava ao redor.
— Meus perdizes estão por aí fazendo as deles. Isso inclui orgasmos. Agora, pode se afastar um pouco mais para trás, por favor? Ali na sombra.
Ela olhou rapidamente para várias direções enquanto Kings Aderio respondia a seu pedido.
A rainha andou ganhando poucos passos e o peito de Kings Aderio. Estava ligeiramente mais baixa que ele, mas mesmo assim seus braços arquearam como se usasse os ombros de Ade para se espreguiçar. Ali deixou os corações baterem juntos; o tempo deixou o rosto pousar no ombro do dracus. Quem dera estar desnudo naquela região, pensou Ade. Na cintura, Iala prendeu-lhe com a perna. Abraçados por instantes ficaram, deixando a respiração decidir o que fazer ou a primeira voz sair.
— Muito tempo já faz, dracus.Tenho esperado por suas cartas.
— Precisei cessar os envios por um tempo — respondeu Aderio querendo dar um beijo em cabelos, laços, rendas...
— Imaginava várias vezes você morto.
— Isso ainda não.
Iala deu um soco em seu peito.
— Sua Eberlen que me falhe para ver eu jogá-la lá do alto da Agulha. Quero ver se não irá estilhaçar no chão.
— Não afronte minha espada, rainha de Nianda — disse escondendo um riso.
— Os dois lobos vão acordá-la, é? Tão temperamental assim?
— Um pouco...
— Ciumenta, deve ser. Seria uma surpresa se de repente ela fosse mais mágica do que deveria ser e se transformasse em uma mulher que você desposasse. Ela você pode, não é? Deve ter quantos anos no mínimo, uns mil? Nada jovem.
— Iala... — tentou dizer Ade, mas a rainha sacudiu o rosto bem perto do dele.
— É só uma brincadeira, sério lobo e dracus. Pelos movimentos aqui embaixo, presumo que ainda não fez seu desjejum.
— Não o fiz.
— Pois então venha comigo, faremos juntos. Há assuntos muito importantes a serem tratados.
Seguiram num silêncio cúmplice observando o lago a se agigantar diante deles até que chegaram a um belo coreto de tijolos brancos. Havia cortinas ligadas nas colunas à parte alta dos arcos. O pano se erguia um pouco com a brisa quente daquela manhã advinda de lá de baixo do lago. Detrás deles um campo e um monte guardavam o Monte. Algumas pessoas se aproximaram, todas uniformizadas em cor prata e golas altas brancas. Iala se adiantou até elas conversando algumas palavras. Aderio soltou um suspiro e um riso. Não demorou muito para voltarem com bandejas e bastantes coisas para comer. Havia diversas geleias, sucos, leite, café fumegante, pães e frutas. Parte ficou com a rainha e Ade. Parte ficou com as pessoas que se desbarataram para além do coreto, próximas ao ponto alto de onde se via a floresta à frente cumeando o horizonte.
— Vejo que não mudou — disse Aderio.
— Nada mudou, Aderio — disse Iala descontente. — Nada mudou com as estações. Mas venha e me responda. Que confusão toda foi aquela ontem à noite?
— Na verdade eu quero respostas. Onde estava? Você se escondeu?
Iala riu — Eu? me escondendo? Por um momento pensei que deveria fazê-lo. Seria prudente, estava na biblioteca, nenhuma aguiazinha por perto.
Aderio olhou ao fundo, no Monte. De onde estavam conseguia ver o vitral da enorme — e proibida — biblioteca de Nianda.
— Dedicava-me a uma leitura frugal, uma vela apenas me acompanhando e um lindo livro de Adelaide Seirir. Mas o que você trouxe debaixo da capa dessa vez?
Seus risinhos faziam Ade perder a concentração.
— Não fui eu que trouxe... bem, sou o meio-culpado da coisa andar.
— Só a vi voando, e muitas luzes.
— Você a viu?! — Ade era só espantos.
— Prossiga depois digo, Aderio.
— Trata-se de um demônio. Um dos tipos que surge com a morte precedida de uma emoção muito forte. Uma nelia.
— Nelia... — Iala fremiu os lábios fazendo-se assobiar muito alto. — Áquila, Élia!
Trotando apareceram dois enormes cães sujos de grama nas barrigas. Um branco focinhudo, o outro negro com os lábios caídos. Peludos como se se vestissem jubas, seus pelos guardavam patas e dorso musculosos. Os cães olharam para Aderio com desconfiança até receberem a mão de Iala. Tornaram-se filhotes no toque. Aderio invejava aquele tratamento.
"Ora, mas é claro, até eu."
— Desculpe, mas nelia, eu não pude me conter. Élia tem quatro anos. É grande, robusta, caça faisões com habilidade. Áquila tem de se esforçar para acompanhá-la. Nada que beijos não façam-nos se entenderem, não é?
— Claro, beijos caninos.
— Teria inveja dos beijos que dou em meus cães, dracus?
Aderio pigarreou.
— O manual para te corar eu possuo, realmente. Enfim, você estava caçando e eu vou contar o que houve. Essa nelia — Élia olhou para o pedaço de cenoura balançado em sua direção. — Apareceu na biblioteca. O rosto de uma mulher, jovem, mais do que eu à primeira impressão, sombria, algo fantasmagórico como não se lê nos livros. Estava do lado de fora do vitral e apareceu dentro da biblioteca.
Aderio olhou para o vitral ao fundo para se certificar. Estava intacto, como era possível?
— Como ela entrou?
— Atravessando o vitral, não foi você quem disse que se trata de uma demônia?
Esse detalhe não lhe era conhecido. Viu-se pensativo.
— Alguém está te espionando — riu-se Iala.
— Eu sinceramente já não sei de mais nada do que acontece ao meu redor ou quando estou dormindo. Às vezes penso em não dormir para não ter o susto de alguém bem grande estar me olhando. Alguém de Mangrensis.
— Preferia então alguém pequena, é? — Iala provocou-o tomando demoradamente uma caneca de suco.
— Não seria má ideia.
— Ade... — Iala pousou o queixo nas costas da mão direita, olhando para o dracus. Mas ele estava ali? Seu semblante vestiu-se de mistério
Iala pensava que Aderio estivesse no passado preferindo continuar.
— Provavelmente mais tarde. Tenho que dizer-lhe. Olhe para trás. Vê no canto da muralha, depois da ponte? São os a-piques, os barracões de que conversamos muito sobre a última vez que esteve em meus corredores. Têm me dado muito trabalho interceder pelas pessoas dali. Começaram a ser despejadas, rechaçadas. Muitas acabaram atravessando os rios de Melandro. Meu esposo as detestava, chama-os de ranhentinhos, comedores de restos. No fim o são, pois não têm opção alguma. As taxas para entrar na cidade tem sido mais caras em vista do que ocorre nas Sinuosas.
— O Cálice — lembrou Aderio.
— Sim. Você está familiarizado com o termo?
— O pouco que sei é de que se trata de uma seita, e nada mais.
— Se fosse este o caso, Orom não se daria ao trabalho de suspeitar. Ele trama algo contra o Cálice. Perdeu os minérios que vêm daquela região tendo de se contentar com seus pomares e em Saiarboria.
— A cidade na montanha ainda vigora?
— Não com a mesma força que antes, isso é óbvio. Mas está em pé, para sorte de Oromergius, Nianda e... minha.
Aderio estreitou o olhar.
— Não, Ade. Ele não faz nada para mim. E também não me satisfaz. Nunca o fará, me irrita só de pensar. Mas são enfins meus. O assunto aqui é sobre o Cálice. As pessoas de Nianda cada vez mais — com toda a justiça — procuram por aquelas terras. Muitas perecem no meio da estrada. Já ouvi relatos de corpos retalhados. Os perigos são imensos ao norte de Nianda. Situações diversas. Elas não têm um ponto onde se apoiar.
— Elas têm uma rainha poderosa.
— Você é um doce, mas é estúpido.
— Ora, Iala!
— Se eu quiser explicar desde onde vem sua estupidez estaríamos indo às nossas núpcias.
Aderio ficou calado. Nas mãos de Iala um garfo apertava gostosamente a manteiga, embebendo um pedaço vistoso de pão.
— Estamos falando de quantas pessoas?
— Em torno de dez mil pessoas vivem ali em estado de pobreza extremo.
Aderio balançou a cabeça. Fez a comida entrar. Precisava refletir.
— Sabe que não posso muito. Algumas pessoas eu consigo realmente ajudar. Uma comunidade inteira fica longe de minhas capacidades. A seguridade para tanto me pediria que espalhasse muitas pessoas em muitos lugares fazendo coisas diversas e harmônicas. Um acontecimento errado, uma maçã no chão de uma moça atabalhoada nas ruas da cidade, um acaso não combinado, e tudo estaria por perder. Detalhes matam, Kings Aderio. Estas pessoas precisam de alguém para levá-las o quanto antes pelo caminho debaixo da ponte até a floresta. E eu não posso ser essa pessoa. Esperava receber uma nova carta sua para falar sobre isso, para combinarmos uma estratégia juntos. Há crianças, idosos, doentes, todos passam fome, comem dos restos. Morrem tornando-se restos. Todas as semanas eu vou aos a-piques e converso com as pessoas. Não se vê liderança ali, estão perdidos vendo seus números diminuindo pela extrema pobreza. Percebeu que nas cercanias não se vê mais pessoas com a pele mais escura, lugar onde normalmente Oromergius pretendia que morassem, longe de seus Brancos? Foi porque houve uma debandada de dentro da cidade, quase uma emigração. O Cálice tem ganhado forças. Acredito se tratar de uma organização muito coesa. Além de bem mais honesta do que o Monte. O que você tem a me dizer?
Aderio se levantou da poltrona, de frente para o lago e os barracões longe de onde estavam. Cercado pelas palavras de Iala ponderou dizer apenas uma palavra.
— Equilíbrio.
Iala baixou a cabeça, as sobrancelhas tremiam escondendo seu olhar púrpura.
— Para o Abismo com esse seu equilíbrio, Kings Aderio!
— Acha que eu não gostaria de agir de outra maneira? Eu faço o que posso, o que não deveria, e em tudo isso não consigo menor resposta de nada. Só um monte de visões que nem são minhas.
— Você veio pelo gênio. O que ele lhe diz?
— Medos.
— Medos. Seriedade, Kings Aderio, você com medo?
Não havia percebido, mas estava repleto de medo. Como se não importasse o quão forte fosse, nada faria efeito para o que vinha. E viria, segundo Tistein, o pior dos viventes a agourar algo.
— Tenho imensos medos, eu não sou nenhum deus.
— Mas é chama de dragão. Dragões são deuses, e vocês são como dragões. Não é este o postulado de seu padrinho?
— Guarda cada detalhe que digo, não é?
— Leio suas cartas e depois estudo mistérios nos livros, certamente, algo que sempre me tornou mais inteligente que meu esposo — Iala rolou os olhos descontente. — Disse-me de medos, os quais seriam?
— Ainda é muito incerto, e não quero conversar sobre isso, não até retornar para Olbett Tistein me dizer o que descobriu — uma sombra pairou sobre o coreto. Uma enorme nuvem que se avolumava no céu querendo dar chuvas à paisagem.
— Como queira, afinal, não veio para me ver — de súbito a ferida foi lembrada.
— Iala...
— É, o assunto é sério, mas, hoje em dia tenho vinte estações das quais passei anos da infância na cama com um homem sempre vinte e seis anos mais vivido.
— Iala...
— Meu nome. Que você foi às Miras tomar. Você recebeu minha súplica. Sabia o que me esperava. E você fugiu. Antes tivesse fugido para Lahana, teria ficado um tanto feliz de vê-los felizes.
— Temos a afeição de companheiros de armas um pelo outro, nada mais.
— Eu conheço minha prima, conheço você. Mas tem razão, temos eu e ela algo em comum: Fugiu dela e fugiu de mim.
— Voltei depois para você.
— Quase me dá vontade de fazer como meu esposo e dizer para que se cale. Não sou assim. Vamos ao que interessa. Kings Aderio eu preciso que faça um favor para mim enquanto eu cuido de Oromergius na cama. Sim tenho que dizer para dar muita ênfase. Queria ter forças para dar fim a esse casamento e não morrer. Elas me faltam, e se o fizer, as pessoas ficarão sem alguém para defendê-las aqui e nas Miras. Para aquele queixo plano, as pessoas que moram nos barracões dos a-piques são parasitas de seu ouro. Elas nem mesmo veem cor do comércio, dois mundos totalmente distintos separados por um muro de grande altura. Coisa que você não tem em sua cidade.
— Não temos, mas há certa estratificação social ainda.
— É impossível não haver. Porém o tratamento com dignidade é o que se diferencia.
— Isso são méritos de Neiva e Ravenz. Eu só...
— A porra do Equilíbrio, eu sei! Bom, o que quero é o seguinte. Prepare-se por um sinal que eu der entre esta semana e a outra. Não poderemos conversar muito. Teremos de ser cautelosos. Meu sinal será apenas para você. Orom lhe disse que pousasse no castelo, fazendo com que retorne e fique tutelado por ele. Na verdade você está em cárcere.
— Eu sei.
— Sabe, mas o cárcere vai acabar. Pois você receberá meu sinal e levará as pessoas dos barracões para fora de Nianda. Os levará numa viagem pela floresta em busca do Cálice. Para tanto você precisa buscar a localização do Cálice.
— Completamente recluso nas Sinuosas.
— Tem três dias para fazer isso. Resolva suas coisas com Olbett Tistein, nas tavernas, volte de coração pio para dentro de seus aposentos, durma, coma, tenha reuniões com Oromergius. Mas descubra onde é esse lugar.
Antes que Kings Aderio pudesse dizer algo, Iala sustentou um olhar agudo e firme para ele:
— Você me deve!
Kings Aderio apenas fez uma mesura.
— Qual será o sinal?
Iala apontou para um pássaro azul, no alto de uma das janelas do castelo.
— É uma excelente companhia quando não estou me aquecendo em outras camas que disse nas cartas. O canto daquela gralha é maravilhoso. Ela irá até você, onde quer que você esteja na região de Nianda. Dou-lhe a palavra. Desde que haja uma janela, ela consegue te alcançar em lugares fechados.
Áquila e Élia olharam manhosos para a rainha, pedindo.
— Não se preocupem, é ele que vai ter com a gralha, não estou abandonando vocês, meus pequenos. E então?
— Farei, Iala. Eu farei.
— Fantástico. E você está com energias renovadas, suponho?
— Não todas, mas uma caminhada até a Universidade trará um bom efeito.
— Muito bem, cuidaremos de outros assuntos no devido tempo.
Porém havia algo muito importante a ser indagado.
— Você disse que a nelia atravessou o vitral. E você fugiu?
— Fugir? Não, meu querido, aquele rosto me olhou como se quisesse me debruçar um beijo. Era medonho, mas nada fez.
— Nada fez?
Iala discorreu sobre o que aconteceu. A nelia teria olhado para ela, para os livros, e depois atravessado o mesmo vitral de onde saíra. Não se portou de maneira perigosa. Pelo contrário, muito assustada.
— Eu pensarei sobre isso. E o homem que foi até você?
— Aquele honrado homem se chama Lauro. É difícil conhecer mulher que não o deseje. É uma das armas do rei, intentava usar a cor de sua pele para demonstrar sua visão imparcial forjada na mentira. Todavia, Lauro goza de minha inteira confiança.
— Ele me conhece.
— Claro que sim. Talvez gostasse de conhecê-lo por debaixo dos cobertores também.
— Não me interesso por brigas de espadas. Conheço um rei anão que se interessa.
— Bereor de Berílios? Talvez goste... enfim, peço a ele notícias de você quando está em viagens. Ele descobriu que estava no Aborreão, que foi ao Orcado após deixar as Narvais. Pensei se não buscava virar um homem de redes litorâneas. E não me pergunte como Lauro consegue. Tem seus métodos. Um formidável guerreiro, sábio e muito perigoso para seus inimigos.
— Ficarei alerta quanto a isso.
— Ele não é seu inimigo.
— Continuarei atento quanto a isso.
— Como queira. Ele também será uma das razões para que nosso plano corra com tranquilidade.
— Falando em nosso plano, onde se enfurnou o seu esposo.
— Eu sinceramente não quero saber agora.
Do castelo a mesma moça que indicara os aposentos de Kings Aderio na noite anterior aproximou-se do coreto. Iala foi até ela, momento que trocaram confidências e um pouco mais.
Aderio entendia que se tratava de uma das moças das cartas.
— Ficamos combinados, dracus. Não se esqueça de minha gralha e...
— Que eu te devo. Sim.
Aderio ainda tinha uma última coisa sufocando-lhe. Ela pulsava dentro de seu peito. Foi da época que Iala lhe preveniu de algo que iria acontecer naquele mesmo aposento em que pernoitou.
"Um dia, Kings Aderio, você irá dormir neste castelo, naquele quarto, sobre minha vigilância. Terá uma noite agradável. E de manhã seus lábios antes secos estarão molhados. Sim, eles estarão devidamente molhados. Nunca fui menina, sempre fui rainha."
— Esta noite tive um sonho muito estranho. Estava no quarto e uma sombra passou delicadamente os dedos pelo pano no dossel.
— E então você acordou.
— Não. A sombra cresceu em seguida me tomando como se, como se...
— O embalasse.
— Iala, uma vez me disse que iria acordar com os lábios molhados depois de dormir naquele quarto. Hoje... Hoje acordei assim, os lábios molhados.
Iala voltou seu olhar para Ade.
— Vive de pensamentos no passado. Por que não vive o hoje, Aderio?
— Estou vivendo... e não tinha babado durante a noite, ou os travesseiros estariam úmidos.
Iala sorriu.
— Não, Ade. Você não babou.
— Então?
— Então desejo-lhe boas procuras e caçadas, dracus. Conversaremos noutro momento. Mas digo-lhe: é exatamente por isso que me deve tanto. Por não escolher tal cenário todos os dias. Não lhe aguardarei para a ceia.
Iala fez uma leve mesura e seguiu junto à sua confidente. Aderio levou os dedos aos lábios. Estava recordando, estava sorrindo. Não, a rainha estava brincando com ele, jovialmente; sedutora.
Mais tarde, os transeuntes de Nianda viam o homem taciturno do dia anterior andar lépido. Parecia outro, iluminando olhos vidrados num sol que brilharia só para ele. Além disso, agora tratavam-no como rei. Isso fez com que Kings Aderio sorrísse e pedisse a todos para levantarem as cabeças, ele não precisava de tais tratamentos.
Kings Aderio dirigiu-se para a Universidade depois de passar pelos destroços causados pela nelia. Com isso indagou-se da razão para que o demônio não fizesse nada a Iala. Se não estava atrás dela estaria atrás de alguém no castelo, e por quê?
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