O Monte e o Cálice: Parte II - Olbett, o Tistein
O cabelo vistoso, branco, descia em tranças por uma carinha de bronze com olhos grandes e irritadiços. A carinha era chupada e cuspia uma barba que escorria-lhe até o peito onde guardava uma série de rolos de pergaminhos nos braços com afeto paternal. Vestia sua roupa de praticamente quase sempre, um sapato baixo de ponta curva, e as vestes vermelhas com um pequeno brasão de ouro no peito. Por dentro do casaco vermelho havia uma camiseta xadrez que pouco retirava, só quando fedia, sabia bem Kings Aderio.
— Olha, meus livros! O que o hoje trouxe de volta do que só a lua consegue ver. Eu o esperava, rapaz!
— Temos um agendamento de quatro meses... Mas pelo cheiro que sinto, não parecia estar sozinho.
— Ah, de você não conseguirei esconder muitas coisas.
Embora fosse pelo menos vinte anos mais velho que o dracus, Olbett Tistein gozava de longevidade física e se aproveitava bastante disso com suas companhias.
— É um cheiro que, no seu caso, tomaria com bastante cuidado a responsável por ele.
— Cheiros, cheiros... Ora, rapaz! Rosas cheiram bem, não cheiram? Elas só machucam se você for imbecil o suficiente parase acidentar nos espinhos ou ter predileção por isso.
— Mas por experiência própria você tem de dar o pescoço a uma dessas...
Tistein escapou uma risadinha enquanto afastava o casaco deixando a pouca luz da lareira iluminar os dois pequenos furos escuros no pescoço.
— Não espalhe aos corvos, rapaz.
— Se está feliz, não tenho por que pensar em me preocupar.
— Mas venha cá! — o homem deu um abraço forte em Aderio que era um pouco mais baixo e ficou escondido em felpudo vermelho. — É mesmo bom te ver, bom mesmo! Ainda que já o aguardasse. Como sabe, eu não erro.
— Não erra, ele diz. Vejamos sobre isso, Olbett.
Uma verdade sobre Olbett Tistein é que o homem, em toda a sua história, ao menos a que Ade e ele próprio conheciam, nunca esteve errado. Criado em Danvania, que ficava há alguns dias de Nianda, Olbett Tistein sofreu entre as pessoas que não compreendiam o homem que indagava e nunca errava.
Seria isso sobre tudo: as condições de chuvas e ventos; os animais prestes a morrerem de algum mal pelos traços apresentados nos modos de andar ou de olhar; o número de ladrilhos no chão de toda a Danvania num rasgo de olhos, a quantidade das árvores nas florestas na velocidade de um piscar, das frutas em seus pomares e do ilusório aparecimento das estrelas no céu, apresentando fórmulas complexas de cálculos desenhados no chão em giz, carvão ou graveto, e que ninguém, absolutamente ninguém em Danvania, entendia sorte tão estranha de numeralha. Isso tudo o gênio já fazia com apenas seis anos de idade. E o pequeno inspirado cresceu até se tornar jovem e paciente. Dominou línguas em meses. Leu livros em minutos. Conhecia o melhor e o pior das pessoas em segundos.
Quando adulto foi tido como aberração e preso sete vezes ao desafiar a consciência de toda Danvania apresentando conclusões perfeitas acerca de coisas que, por vezes, tratar-se-iam por um tanto mundanas. É que na região de Nianda a adivinhação era proibida, e, qualquer manifestação estranha do normal, repudiada. Assim, quando jovem sua primeira prisão ocorreu ao acertar — e não adivinhar — o número exato de uma ninhada que uma galinha botaria. Não qualquer número, mas um absurdamente longe do normal. Vinte e sete, dos quais os bons seriam apenas três, além da morte da galinha vindo em seguida, resultado de uma completa exaustão.
Ele é feiticeiro, essa coisa não era permitida ali, e blás, e mais blás. O cárcere durou pouco, e a liberdade também. A segunda vez que foi preso ocorreu quando Tistein prenunciou a vinda de uma forte chuva que traria fartura e estio da terra. E essa última parte duraria muito tempo. E a seca durou, o trigo não vigorava, e os morangos pareceram esquecer de florescer; nada cresceu e o culpado por alertar ao povo de tudo isso foi preso por ser ele o responsável pela maldição em Danvania que nunca terminava. E logo quando saiu de sua jaula fria, a porta das masmorras fechou-se novamente à sua frente.
Por algum sinal de intuição, Tistein foi ao banheiro principal, um pouco mais limpo do que a latrina do cárcere, para pegar um penico. Não para ele. Tistein o depositou na frente do carcereiro dizendo que o homem borraria as calças dentro de instantes. Disse ao notar o movimento da barriga de fora das calças do carcereiro. Além da gota estranha no pescoço do sujeito. Sendo Olbett, o Tistein, o feito por se dito assim se fez. Desdenhoso ainda que ameaçador nas palavras, o carcereiro regurgitou as palavras que saíram aos solavancos, pois o homem se borrou ali mesmo, se atrapalhando com o penico. Um dos guardas que observara de sua cadeira ao fundo do corredor desde o começo, se levantou da cadeira e levantou uma bofetada na cara de Tistein levando o intuísta, como se chamava a si, de volta ao antro.
De volta à cela, Tistein foi preso novamente sem nem mesmo ter saído. Como conseguira? Porque um dia ele se recusou a comer o pão molhado na água de batata. Por que comer essa coisa rançosa se já estava de saída?
De saída?
Ninguém pagaria a fiança dele, nem sua família que já tinha sido parcialmente perdida entre desprezos e quedas. Já iam mais de quinze anos entre liberdades e reclusões. Mas não é que alguém pagou? E Tistein saíra dali? Não. Ficou ali mesmo na cela sentenciado por adivinhar — não intuir — qual seria o seu futuro. Quieto em seu cantinho na cela ele não parava de contar, mas aprendeu a ficar calado sabendo que a fiança seria paga logo, logo de novo. Já sobre isso, Tistein nunca revelou de onde vieram os sinais.
Olbett Tistein era um ser humano normal, dois braços, duas pernas, um corpo que aprendera a ser mais do que magro pelo cárcere. Só que para sorte ou azar Tistein via o que ninguém via com uma clareza que ninguém poderia compreender. A mão esquerda trabalhava perfeitamente igual à direita, isso ele sabia, e apenas ele.
Ao ser paga sua fiança a segunda vez, Tistein só queria enxergar quem o fizera por ele, mas nunca o enxergou, nem o encontrou. Eis aí algo muito difuso para o intuísta que via sinais causados por um ente sem rostos. Disseram-lhe ter sido obra de um viajante e nada mais. Que se apiedara por tão esdrúxulas sentenças: uma galinha, penico, chuvas... Que crime havia nisso? Bom, Tistein vira no relatório de suas sentenças lá embaixo no rodapé escrito "o culto ao desconhecido" e, nas províncias de Nianda, a qual fazia parte Danvania, apenas na Universidade de Nianda era permitida qualquer manifestação estranha.
Com essa dúvida, Tistein viveu calado alguns anos. Era mais sábio em fazê-lo. Falar era se pôr novamente na cadeia. Prudente, infurnou-se na biblioteca pequena de Danvania e morreu seus dedos em pergaminhos. Muitos deles secretos pela ignorância dos que nada conseguiam ler.
De lá, A bibliotecária era uma das poucas pessoas que o aturavam. E mais.
Floreta observava o homem comer pergaminhos e livros querendo mais e mais. Ambos.
Aquilo causou furor em seu peito que os levou a várias noites de rubor e suor entre papéis, ditos élficos, quase-gigantinos e histórias do mundo da Primazia. Floreta, os olhos de púrpura gelado e os cabelos ondulados em manchas vermelhas se deliciava com Olbett Tistein por ele ser exímio contador de histórias. Muitas vezes as ouviu direto de seus lábios nos dela. Até hoje Kings Aderio acha que Floreta seja a mulher que Tistein mais amou. E foi por causa dela que os dois, Ade e Olbett, se encontraram.
Tistein disse, certa vez, que Floreta deveria vender a biblioteca, pois algo se aproximava de lá. Floreta, sabendo que Tistein não errava em suas intuições, o fez. Tistein explicou-lhe a seu jeito que fora uma mudança no clima o que fez mudar as percepções da natureza que eram para ser de um jeito e estavam acontecendo de outro, indicando algo se movendo nos meios desconhecidos. Dizia Tistein que algo vinha.
E como veio.
Olbett Tistein pediu a Floreta que colocasse um anúncio. Floreta martelou nas placa a meio quilômetro das duas saídas da cidade sobre haver perigo na montanha ao norte. Desta forma, aventureiros que viessem das estradas descendo o Estreito ou subindo de Nianda estariam alertas.
Mas o perigo não veio apenas para a biblioteca. Veio para toda Danvania e os acontecimentos da descida das montanhas ficaram marcados dali até Nianda.
A previsão, segundo Olbett Tistein, era de que uma série de coisas estranhas andariam pelas sombras e deixariam rastros violentos de destruição. Tistein pediu aos soldados mais próximos de si que cuidassem do templo e das moradias mais próximas à biblioteca. Algo vai descer as montanhas, dizia. Fora mais uma previsão e, por mais que suas intenções fossem as mais sinceras e não errassem nunca, os homens e mulheres o quiseram preso novamente. Ele já sabia e já tinha dito à Floreta de sua prisão. A quinta e última vez que Tistein seria preso pelas autoridades em toda a sua vida. Pois algo que não estava em suas previsões acontecera. Algo que não estava nos planos do mundo, pois também "Os Campeões" não estavam, assim se conta.
Numa noite muito fria, após uma forte visita das nebulosas cortinas de Nianda, um homem estranho veio à cidade. O anúncio rasgado em sua mão. Ele entrou na masmorra pagando a quantia em ouro de Luniestra! Ouro de Luniestra ali? E pelo excêntrico Olbett Tistein? Era dez vezes maior que as niandinas de ouro na cotação da época. A voz como uma navalha disse que nunca mais aquele homem — Olbett Tistein — seria preso novamente e que a guarda usasse as moedas para com a população da forma devida. Desta vez Tistein conheceu o rapaz chamado Kings Aderio que perguntava sobre a biblioteca, sobre o que havia lá e qual fora sua previsão quanto às montanhas. Kings Aderio conversara antes com Floreta que o dissera sobre as previsões de Tistein. A chegada do viajante e sua espada de dois lobos em punho salvou Danvania, mesmo que tal salvamento se tingisse de tanto sangue, o que contadores como o infâme Ladenio brasDieler chamaram de "A tragédia de Danvania".
Após o ocorrido, Kings Aderio disse a Tistein que teria de fazer as malas e ir embora dali junto à Floreta. O destino? Nianda, o lar da Grande Universidade da Província de Nianda onde faria muito mais com seus conhecimentos. Que não se preocupassem, Ade prepararia tudo. Bastaria a Tistein apenas uma prova e, sem dúvidas, seria admitido. Tistein queria entender o porquê de não conseguir enxergar nada a respeito daquele rapaz que brilhava quando o momento era de terror.
Como esperado, Tistein fez os testes para os departamentos de história e de cálculos e passou nos dois com notas celestes. Em pouco tempo ele se tornou o homem mais influente da Universidade, o mais famoso e o mais humilde também. A única arrogância de que se valia era a de dizer que não errava e continuava a nunca errar. Ainda que conhecesse mais do que as outras pessoas em suas próprias funções na Universidade.
O gênio de Nianda, como ficou conhecido, morou com Floreta até que sua certeza dolorosa se fez presente sobre a amada mulher. Era doloroso para Tistein saber que ela tinha um certo tempo quando ela dizia-lhe que tinham todo o tempo do mundo. Seis anos lindos desde que chegaram à cidade. Caminharam pelos pomares, frequentaram as festas das praças, se beijaram quando Duzenaier, o último mês, iniciava um ano em primeiro de Anaier. Fizeram amor na cabana abandonada e observaram a Agulha imponente do alto do lago na montanha, um dos poucos pontos na cidade em que isso se fazia possível. E Tistein sempre tendo a certeza de que ela teria pouco tempo. Como seria doloroso isso... viver à sombra de tempo finito. Floreta não contava os dias. Tistein os contava em suas próprias lágrimas escondidas. O pouco tempo se fez então em hoje na vida dele. Floreta se fora deixando um valoroso senhor para trás. Ele que se irritava por uma cura ser impossível. Era impossível. Ele sabia disso e doía-lhe mais do que a morte.
Após o descanso de Floreta, Tistein demorou muito a ter algo com alguém. Visitas esporádicas de Kings Aderio, nunca cessadas, ocorridas mesmo enquanto Floreta ainda estava entre eles, fizeram o homem pensar em viver novamente o amor. Contou-lhe de muito e o outro lhe contou talvez ainda mais. Pois Kings Aderio já era um dracus e antes disso, um dos reis de Seta Ambel. Bebericavam do vinho, comiam queijo, pão, e cozidos, normalmente feitos por Olbett. Kings Aderio ficava alisando Eberlen até sentir o homem precisando de alguma ajuda. Todo o processo era feito em dupla. Perceberam-se muito ligados, quase como dois irmãos. Até uma vez aparecer Ladenio brasDieler junto a Kings Aderio e se fizeram em três. Um trio de histórias que Ladenio conta por aí até hoje. A partir do primeiro momento Ladenio também passara a frequentar o humildemente suntuoso quarto de hóspedes de Olbett Tistein. Gostavam principalmente de discutir sobre história. Ainda mais quando a história viva estivesse ali ao lado dos dois ou vivendo desventuras juntos. Afinal de contas, Kings Aderio era um dos campeões, e isso moldou o mundo como ele é hoje. Como os três se conheceram, bom, é um conto que o próprio Ladenio poderá contar talvez um dia.
A amizade entre eles foi crescendo e crescendo a cada encontro, a cada enrascada que Olbett se metia por saber demais das coisas e Aderio, de uma maneira miraculosa, soubesse que ele estivesse em perigo.
Olbett foi sequestrado tantas vezes. E se intrigava do porquê que, nas coisas relacionadas ao amigo Ade, ele não tinha suma certeza de nada. Nada sobre Kings Aderio era certo. Para Olbett talvez fosse a natureza de suas chamas. Ora, se tratava de um homem andando por aí com três chamas de um dragão de quase trezentos e cinquenta metros de altura em seu corpo.
Chamava-lhe atenção sobremaneira. Pensava um dia conseguir descobrir mais sobre as chamas de sorte mais invasiva e empírica.
— Eu ainda vou estudá-las — dizia sempre que se encontravam e a demora de um novo retorno de Kings Aderio fosse certa.
Até esse dia ainda não havia o estudado. Até mesmo aquele dia em que Kings Aderio trouxera um livro enorme em suas mãos.
Neste dia Aderio estava receoso. Olbett poucas vezes o vira assim. Na última visita discutiram sobre descobrir o que havia em Danvania. Olbett estava preocupado com sua cidade natal. As pessoas sumiam no ar, sem uma razão aparente. Como se sopros as tirassem da cidade para nunca mais voltarem. A ocasião levou Kings Aderio a uma visita ao palacete que ficava ao lado do rio ladeado pela cidade. O Covil Vermelho. O nome era bastante sugestivo, mas se tratava de uma das mais belas vistas de toda a região niandenense. Quando no verão, as flores ali tomavam conta do palacete forrando as paredes externas com rosas vermelhas de sangue. Quando adentrou aquele lugar, muitas vezes Aderio foi tratado com ternura pela anfitriã. Quando saiu no fim de um belo outono, quis nunca mais voltar a ver tantas rosas vermelhas como aquelas.
E, como Aderio sabia que tinha deixado algo que não podia ficar caído por lá, mas a urgência de outros portais o chamara a andar pelas praias do Orcado, bem, o dracus teve de lá retornar para buscar pelo pequeno e curvo objeto.
Dali, antes, um encontro que não estava nos planos de Kings Aderio teve de ser realizado. Foi o encontro mais rápido que já tiveram dracus e gênio. Tistein estava empolgado com a resolução em Danvania mas, como nunca tinha certezas sobre os passos de Aderio, teve de dormir sem respostas, pois o dracus fora derrotado sozinho por um monstro muito poderoso. Se outros três companheiros de armas não viessem, certamente Kings Aderio não estaria vivo para contar. O criador de tal monstro estava sendo depositado por ele na bancada de Tistein.
Ao olhar pouco, uma profecia se fez. Ele pediu duas informações e ao receber a segunda o rato fugiu do seu terrário deixando uma cobra entristecida lá dentro.
"Essa, não..."
Sabe aquela expressão que dá um arrepio apenas de ser ouvida? Às vezes tão banal quanto letal? Esta foi assim para os dois.
Fora o que disse Kings Aderio e desde então, sua busca pelo Equilíbrio, a demanda dada aos dracus de servir apenas à natureza, ganhou novos rumos. Talvez, para se encaminhar ao fim.
Agora eles estavam juntos e Kings Aderio depositava na mesa de centro de Tistein uma série de coisas: quatro bombas com líquidos de cores distintas verde, vermelha, azul e amarela dentro; um punhal de cartas com uma gema branca no punho; um pincel e um pequeno baú.
— Esses pertences são de?
— Vítimas... A não ser minhas bombas. Estão atormentando minha cintura.
— Avise por coruja que quer um novo cinturão — disse ríspido Tistein. — Conheço bons artesãos.
O dracus riu em desdém e usou o punhal para encaixar a ponta no lacre do baú. O objeto tomou vida e fez um barulho sinalizando abertura da carta pesada.
— Nariz em dia com seus ratos? — indagou Kings Aderio.
— Estão bastantes limpos, obrigado! — Tistein detestou a insinuação torcendo o bigode.
Os ratos no terrário viraram a cabeça para a mesa curiosos.
— Como quiserem — Aderio entortou a cabeça dando de ombros para ratos e gênio.
Ao abrir, ali estava um anel muito distinto, com um desenho entalhado em uma pedra azul. Não era qualquer desenho nem qualquer pedra. Junto a ele havia um diadema cravejado de joias lindas na forma de uma águia de asas abertas. O mesmo desenho da pedra. E por último, um saquinho.
— Eis que a beleza fede! — disse Tistein. — Estes são de...
— Ellera do Covil Vermelho.
Tistein olhou enviesado para Kings Aderio. O saquinho fechado.
— Ellera? Era uma jovem como você quando me tirou de Dan... — hesitou escondendo o rosto na xícara de chá. — Ela foi a responsável?
— Não cheguei a uma conclusão.
O saquinho ainda fechado.
— Aquela moça linda... Aqueles olhos, e uma simpatia. Não, rapaz. Isso... É no mínimo sem jeito e isso, fede, deuses. O que é isso?
Abriu-se o saquinho. E ali dentro estava o que poderia ser um pequeno graveto, não fossem a curva, as falanges e uma garra.
— Um dedo. Mas não é humano. Era dela?
— Não era você o intuísta?
— Aprendia a guardar muitas das minhas intuições para mim, assim como refreá-las.
—Da filha... — respondeu Kings Aderio.
Segurava com muita delicadeza o dedo. Depois o colocou no baú e bem longe do livro que estava aberto em forma de estrela no púlpito.
— E você sabe o que é.
— Certamente, não precisa me dizer — Tistein pegou uma pinça do tamanho de uma agulha e retirou um pouco da pele com ela. Aderio indagava-se de como, com aqueles dedos finos, conseguia manejar o ínfimo objeto do tamanho de uma agulha. — A tecitura da pele é completamente diferente da humana. Ela se molda nela mesma tomando duas formas, consigo ver as nuances de cada hexágono de pele ainda querendo se mover, não importando que esteja morta, o que é característica também dos vampirescos.
— Vampiros, Tistein? — insinuou Aderio erguendo o nariz para uma almofada de veludo lilás ali perto.
— Não espalhe aos corvos. Mas não era uma vampira, por assim dizer, até vi uma nesga de sangue coagulado, tem pelos aqui embaixo da unha. É isso! Uma chupa-cabras. Definitivamente uma chupa-cabras que levava um anel no dedo. Machos não tem falanges delgadas assim.
— Sabe, se tivesse perguntado seria mais rápido.
— E a graça de descobrir certezas sobre você, honorável dracus? - Tistein guardou cuidadosamente o dedo no baú pegando em seguida o anel. — É um anel de libelo. Estava sendo controlada?
— Libelos são um controle, não é?
— Tipos de acusações, sim. Era de Ellera? Arrancou-lhe o dedo?
Aderio se aproximou da janela, mais perto de uma lua que deixava seus dedos luminosos aproximarem-se do livro.
— Sei que quer as respostas. Aguarde, meu jovem. Você vai tê-las depois de tomarmos um chá e você discorrer sobre minha estimada Danvania.
Aderio aprovou a sugestão. Os chás revigorantes de Olbett Tistein eram algo a nunca se recusar.
"Chá de camomila, a alma alivia
Erva doce, medo queira que não fosse
Chá de hibisco, desembucha o vício
De gengibre, gripe se vá em sumiço."
Olbett cantarolava na cozinha enquanto preparava a água.
— A pequena ampulheta, sim?
Kings Aderio foi até a prateleira e pegou a pequena ampulheta, não a menor nem a nanica, e a girou pousando em seguida na ilha da cozinha.
— Dois giros serão o bastante para você terminar e eu começar.
— Tistein... — Aderio torceu os lábios. — Pois bem. Indo a Danvania descobri alguns padrões. Pessoas pareciam sumir quando saíam à noite. Simples, corriqueiro demais. Não havia casos de crianças. Apenas de jovens e adultos de diversas idades entre homens e mulheres. Os rastros me levaram ao Covil Vermelho, único lugar onde não temiam a nada com duas senhorias morando. Consegui me aproximar de Lady Ellera. A bela senhora do Covil Vermelho sempre pareceu-me distante do mundo. Estranho, pensei. Ainda mais estranhos os costumes da casa. Tudo era em seu devido lugar e em sua devida hora. Eu não podia ficar na casa depois das seis, pois era o momento das senhorias jantarem em família. Imaginei que Mangura diria: você não é estúpido, Ade. E não fui. Eu já havia observado o anel de libelo na mão de Siara. Um anel mágico num dedo de menina de dezesseis outonos. Por quê? Conversei com Mangura que me indicou Bereor. Usei um portal para chegar em Berílios e atrapalhar a época de Grande Montaria do rei anão.
— Ele ainda faz aquilo?
— Sim, e o anão corre mais que um puro-sangue, mas essa é outra história.
— Fascinantes esses dracus...
— Sem contar dos saltos nas Silenciosas, mas isso não vem ao caso. O que vem é que você já vai querendo estudar mais um.
— Não espalhe aos corvos... Continue.
E Kings Aderio continuou dizendo da disputa com o anão para ver quem montava o puro-sangue mais rápido. Tendo perdido, Kings Aderio teve de fazer algo que Ladenio adorava dizer quando ouvia a história. Basta dizer que era nojento.
— Rapaz, às vezes nojeiras podem ser negociadas.
— Não com um anão dos mais teimosos e sábios. Posso continuar?
Ao saber do anel, o líder supremo de Berílios disse ser uma cláusula pétrea que provavelmente a pessoa em posse dele desconhecia. Ele fazia com que a portadora não saísse de casa, não importasse a situação, o anel não a deixaria fazê-lo. Depois, Ade disse o que houve no retorno ao Covil Vermelho resultando numa sonora gargalhada de Olbett Tistein. Ade coçou o queixo apenas observando.
— Mas é claro que estava faltando isso. Não me surpreenderia uma vez que Ellera era uma moça de beleza espetacular.
Um cheiro entrou no aposento e não era de chá.
— Ehm... Tistein?
— Fascinava-me seu porte, confesso!
— Tistein...
— Não espalhe aos corvos, meu bom rapaz.
— Tisteein...
— Busto de deusa, que calor!
— Tis... tein.
—, mas não tanto quanto Floreta.
— Tistein!
— Oh, Floreta...
— OLBETT!
— O que foi?!
— A barba ao...
— Fogo!
A barba de Tistein perdeu alguns centímetros pensando na senhora da história de Kings Aderio. Ade estalou os dedos e o fogo ali se desfez.
A voz de Olbett Tistein foi crescendo.
— Obrigado. Mas, oras, poderia ter APAGADO O FOGO ANTES!
— E perder as certezas do fogo quando come uma barba assim geniosa? Quero ver o que vai dizer para sua companhia sobre barbas chamuscadas.
Olbett Tistein pegou um paninho e espalhou confetes de barba fina abrasada pela cozinha, não obstante longe do chá.
— Não vamos espalhar aos corvos. Mas então se engraçou com a bela senhoria do palacete. A suposta assassina?
— Ela nunca me pareceu hostil. Na verdade nunca foi. Acho ainda que ela não é. Mesmo quando cortei o dedo da filha dela quando tentou me morder. Siara não mostrou menor resistência. Pareceu confusa. Morreu de maneira confusa chupando e rasgando a carne do próprio braço enquanto chorava pelo pai.
Olbett dramatizou sua cara mais enojada.
— A frieza com que você fala dessas nuances aterrorizantes até agora me causa arrepios, Aderio.
— A mãe tentava estancar o sangue e eu perguntava se havia mais alguém preso por elas. Nada me responderam até que Siara morreu ao saciar a própria fome consigo.
— Kings Aderio, ainda bem que não senta tanto no trono. O tornaria uma coisa pior. Ou talvez deveria sentar-se mais ao lado de Ravenz e Neiva, nessas eu queria ter certezas sobre você!
— Ora, homem...
— Ora, jovem, continue. E Ellera?
— Ela fugiu e não deixou muitos vestígios. Não pude buscar antes por ela, tinha de enterrar a menina ou coisa mais catastrófica poderia ocorrer. Mal a coloquei sepultada ela se levantou e tive de usar bombas de tão cansado que estava.
— E os dracus não são os tais deuses? - provocou Tistein. - Lá deus se cansa? Ah, é verdade. Um dragão andando em corpo de um homem mediano.
— A gente come, a gente dorme e a gente mija, homem! Não deixei de ser mortal!
— Mas assinou sua sentença queimando-se no fogo do dragão.
Nos fogos, Olbett. E como me queimei, pensava Kings Aderio lembrando-se do recluso vale onde ainda vive Adverus Aramor. O terror sentido por cada um de seus companheiros ao ver a imensa boca do dragão gorgolejando. A catarata de chamas desceu de uma só vez. E em Kings Aderio ela veio da boca, das narinas e dos olhos.
— Artifícios são necessários muitas vezes. Em batalha precisam ser usados com astúcia, velho amigo. Sou o único de nós que consegue usar dois portais. Poderia significar muito poder, mas é o contrário, quando me canso quase morro por dias numa cama. Os outros quando se cansam bastam meditar.
— Muito bem, e quanto à senhora do Covil Vermelho?
A ampulheta já ia terminando a sua segunda volta.
— Seja breve, o tempo para mim tem de ser exato. Vamos, pegue o chá. Ele está quente... Homem! Ah, homem.
Olbett Tistein repetiu uma vez que Aderio sem cerimônia tomou um gole fumegante do chá sem sentir calor. Depois prosseguiu: — Ellera ficou fugida, seu rastro subiu o Estreito Oeste e depois fui jogado para outras praias, como bem sabe. As que vim aqui e tive de dar-lhe este livro! Razão principal...
— Para estar aqui, eu sei. E trouxe os pertences. É tudo como eu não conseguia imaginar. Eu juro, essas três chamas me turvam a visão. E para quê precisamos disso?
— O Equilíbrio! Preciso que me ajude a entender completamente dos chupa-cabras para...
— Equilibrar as balanças. Muito bem — Olbett Tistein sorriu com o fogo da lareira abraçando a sala. No púlpito uma estrela estava prestes a receber a luz da lua.
— De fato — continuou -, é intrigante que, após o livro estar aqui, eu precisasse de certos pertences que você tem agora. Se não tivesse folheado esse espécime tão absurdo — Tistein falava do Livro — eu não teria uma resposta para o seu Equilíbrio. Pois agora eu tenho e acaba de ser encaixada a última peça que faltava para entendermos onde estamos e onde possivelmente não queremos chegar.
A ampulheta trocou seu último suspiro. Em um lado morreu e no outro deu início a uma apreensão que dracus nenhum poderia imaginar ser verdade.
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