O Froco: Parte VIII - Os uivos de Eberlen
É, você é podre.
Kings Aderio meneava a espada de brilho leitoso contra a neve, riscos em descenso pelo ar. As pessoas olhavam aquilo atônitas: magia não acontecia já fazia muito tempo em Venova, rogavam. O espanto, porém, não vinha com as chamas de Kings Aderio. Era ao froco que temiam não tendo menor conhecimento de seu nome. Ficaram horrorizadas com aquela massa horripilante dobrando árvores e muralhas sem esforço algum.
Não compreendiam o que trouxe esses dois à sua cidade junto a um grupo de cinco lobos enormes. Mas compreender era acreditar e, por instância, correr era salvar-se.
O horrível froco ganhava proporções colossais a cada vã batida de seus tentáculos. Talvez crescesse com a noite ou com o medo. Não era possível saber. O que sabiam as pessoas é que um homem tinha capacidade o bastante para não deixar a coisa seguir. Com cinco adendos em forma de lobos para lhe servirem.
Descia suor frio nos rostos querendo ver o responsável por tais urros na noite. Logo iniciou-se uma saraivada de flechas contra o demônio. Em vão: Aderio sabia que obviamente o demônio nada sentira. Se sentimentos conhecesse o froco teria gargalhado, arrancando das pessoas suas almas.
— PAREM! VÃO PROCURAR ABRIGO E SALVEM-SE! — mas os guardas tinham vontade própria. Não dava para saber ao certo se era estupidez, orgulho, raiva, ou o misto de todas as bebidas. Para Ade, no entanto, era só uma das três.
O froco quis mostrar novamente sua capacidade destruidora. O choro de criança veio seguido de escombros. Uma região toda da praça desmoronou com o corpanzil desonestamente grande da criatura demoníaca. Após observar aquela muralha ensandecida derrubar uma ponte na qual a árvore mais alta da praça envolvia suas raízes e, nesse ímpeto avassalador, levar a árvore ao caudaloso rio, Kings Aderio brandiu a espada. Seu coração enfurecia-se dentro do peito. Girou a espada como a pá de um moinho e uma palavra assoviou de sua boca para o beijo da lâmina:
Eberlen
De imediato, uma aura despertou na espada. Junto à ela um uivo e em seguida o brilho que transpassava o corpo de Aderio e seus lobos. Suas caudas faiscavam debatendo-se, esperando apenas por uma desculpa para atacar. Um simples movimento no único olhar daquele monstro. O vento mudou sua direção. Todo de encontro a Kings Aderio. E foi quando o froco abaixou a caraça feia para tentar morder um dos lobos que tudo começou.
Uma noite tomada por uivos.
Os homens da guarda de Venova ainda tentavam acertar flechas na estranha criatura. Outros moradores vieram com o que tinham para tentar atiçar o monstro ouvindo reprimendas de todos os lados, inclusive do próprio froco que, sozinho e suas cores transluzentes, inquiria respeito.
Brandiam cutelos, clavas, vassouras, tochas, forcados, foices, espadas enferrujadas, pás entortadas, pedaços de madeira, picaretas. Qualquer utensílio era uma espada nas mãos daqueles homens. São realmente estúpidos, refletiu Aderio. Estupidamente corajosos. Melhor fazer algo, antes que se machuquem e uma seta dos guardas voe para o peito de um inocente.
Girando Eberlen algumas vezes como uma roda d'água elegante, Kings Aderio desferiu um corte vertical na direção das estrelas e uma muralha de fogo irrompeu do chão formando um semicírculo que deixou o froco, os lobos e Aderio, de um lado das chamas e o exército inútil de pessoas do outro. Urraram bruxarias, feitiçarias, gritarias que nada adiantariam contra Ade e seus formidável adversário.
O demônio olhou profundamente nos olhos de seu desafiante. Trocaram ódio um pelo outro. Aderio sentia isso, um formigamento crispando sua raiva. Principalmente por tratar-se de um demônio no corpo de uma criança. Onde estaria o corpo dela em meio a todo aquele horror, era um dos mistérios que irritavam aquele que não era um homem. Não era apenas um guerreiro.
Ele correu e assim os lobos o fizeram também. Desviou-se das investidas da coisa que jogava tudo para o ar, a neve perdia camadas no chão enquanto o demônio batia e Aderio derretia o tapete branco no gume de sua espada. Os lobos atacavam em grupo, sitiando o demônio, coagindo o froco que respondia com mordidas brutais no corpo dos animais. Se tratasse de um lobo comum cada mordida atravessaria a carne como a faca quente em manteiga, mas não aqueles lobos que mais pareciam ter prata nos pelos do que maciez luzidia. Após um novo desabamento do corpo do froco, Aderio passou pelos tentáculos, desviou-se de um braço cheio de bocas e dentes, saltou do buraco deixado pelo corpanzil fenomenal e girou nos calcanhares. Eberlen luziu à semelhança do luar. Cortou uma, duas, cinco e sete vezes a criatura desferindo giros, piruetas e saltos impossíveis a um homem normal enquanto movia bruscamente a espada. O gume de Eberlen lambia o froco despedaçando a criatura, não obstante sua fúria. Um facho de luz assombrosa e flamejante, movendo-se feroz, contra uma imensa onda violeta se refazendo instantes após ser cortada.
— Desgraça de demônio! — vociferou Kings Aderio, a espada recebia os ventos quentes do ar. — Desembeste de se REFAZER!
Um dos lobos saltou em cima do telhado de uma casa e buscou a cabeça do froco — ou o que pudesse se tratar de cabeça na altura do maldito olhinho dotado da pureza deturpada de uma criança — seria uma investida mortal. Seria... O inimigo, no entanto, agiu rápido, seu corpo disforme tomou a aparência de uma coluna maciça, plana, uma bizarrice sem tamanho cheia de dentes. O lobo se enlevou, repleto de chamas e ares poderosos. Aquilo deve ter sido muito forte, pois o impacto contra o lobo lançou o animal ganindo para longe e derrubando o concreto em que se chocou. Os outros lobos irados uivaram e Aderio voltou-se para o froco tão irado quanto seus companheiros ferais. Kings Aderio respirava acelerado, a raiva lhe crescendo.
Saltou para trás, realizou uma nova pirueta passando a espada por debaixo dos pés ainda no ar e, ao voltar para o chão, a espada cintilou enraivecida. Foi um uivo de gelar o coração. O raio em chamas que se formou buscava apenas ao froco, estava sedento pela abominação. O froco ficou ainda mais enfurecido com parte de seu corpo indo embora em milhares de centelhas púrpuras quando o jato de chamas advindas de Eberlen se encontrou com a carne etérea do demônio. Atrás de Aderio que meneava a lâmina para ouvir os sons, dois lobos foram ao auxílio do outro abatido.
Outra magia acontecia: a chama de Kings Aderio parecia fazer parte também dos lobos, serpeava por eles, envolvendo-os igual a uma armadura. Caídos levantaram-se. A lua os beijou com o luar. A moral dos lobos aumentara: é que dos escombros da parede caída o lobo indolente e branco regressava. A fera ficou furiosa. Latiu brandindo presas, garras e saliva ao ar. Depois uivou ela com os seus e com Eberlen. O froco odiou ainda mais ver o animal de volta à ação.
Seu alvo mudou de Aderio para o lobo branco. Desesperado, tal como uma criança mimada, desferiu uma série de ataques desvairados e decididamente desordenados para todos os cantos. Onde seus tentáculos alcançavam, algo vinha abaixo. Casas, construções, o resto das ameias por detrás das chamas, a destruição só crescia. A verdade é que o monstro era muito forte sendo ao mesmo tempo irritante.
Chega de perder mais tempo com essa coisa. Aderio assoviou e todos os lobos vieram a ele trazendo um froco a atropelos destruindo a praça, o resto da ponte e a rua. O poste onde havia uma das únicas luzes acesas desapareceu como num passe de mágica por dentro da massa violeta.
Os lobos alcançaram Kings Aderio. Caminharam até ele abaixando suas cabeças para o que vinha de seu mestre. Kings Aderio colocou a espada diante de seu rosto como se fosse dar um beijo na lâmina ou fizesse com ela um ritual. O vento ao redor parou.
Eberlen
Disse ele e imediatamente os olhos de um dos lobos da espada acordaram azuis.
Eberlen...
Disse longamente Kings Aderio abaixando o rosto no gume da espada ainda hirta. O outro lobo em sua mão abriu os olhos brancos.
O Froco vinha, o tempo parou diante dos olhos de quem assistia aquela batalha esperando pelo amanhecer. E o dracus, finalmente, se pronunciou. Não como um lobo, mas como aquilo que se tornara anos atrás. Como se fosse um deus.
EBERLEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEN!!!!!!!!!!!!!
O chamado fez o rosto de Kings Aderio trovejar. A espada uivou novamente no que em seguida se tornou um verdadeiro rugido. Para os lobos, aquela espada era uma líder. Aderio gritou com toda a sua força e bateu a lâmina da espada no chão. O froco não estava ali. Mesmo assim, o fogo branco mesclou-se às chamas. Uma mistura de vermelho, azul e branco pintou a espada de Kings Aderio nas extremidades da aura que a cobria. O fogo se alastrou em ondas expulsas pela lâmina da espada varrendo tudo à frente até finalmente chegar no tão esperado alvo. O choque entre a outra onda — o froco — resultou numa cadeia explosiva poderosa.
Aderio segurou com todas as suas forças a espada na mesma direção. Ficou assim: lobos alimentando o jorro de luz da espada de Aderio aos uivos; o dracus segurando-se para não deixar o demônio se aproximar e, o froco, se lançando às explosões de seu corpo obscuro contra a luz da espada. Os dentes de Kings Aderio rangiam, as pernas já causavam rachaduras no chão tamanha era a pressão do ar. E o ar se condensou em um único ponto. Naquele em que o choque não encontrara o alvo, mas resistência além da compreensão.
De repente não havia mais contenção. Não havia mais momento senão um sopro veloz dirigindo-se para dentro de uma esfera de ar. O último suspiro de uma imensa e derradeira explosão. Como se o ar respirasse toda a nevasca de uma só vez e de seus pulmões soltasse numa golfada contra o chão, o céu, as casas, o froco e o dracus. Sons sumiram, o froco virou o chão aos olhos de Kings Aderio que foi lançado contra a parede pelo choque de forças. A neve caiu sobre seu corpo como uma cascata, e tinha de agir, aproveitar que estava distante do demônio. Estava na rua por onde Ék havia se dirigido. Os lobos tiveram o mesmo destino ganindo dolorosamente com o baque. Levantando-se com a ajuda da espada fitou desolado para a chama incandescente em tons de púrpura e ouro irrompendo para o ar.
Era ora de agir como outrora, nos tempos em que ainda nem era um dracus. Aderio levou um dedo rápido à cintura arrancando um pequeno frasco do tamanho de um dedo indicador com um líquido marrom de aparência dura e pegajosa. Recipiente em mãos, apertou a tampa com ainda mais força suprimindo dolorosamente o que estivesse lá dentro e o lançou contra a coluna de chamas e fumaça. Kings Aderio subiu em seu lobo que, ainda mancando, bateu em retirada velozmente enquanto o frasco viajava ao chão.
Quando aquela coisa pequena estilhaçou, uma nova explosão se formou atingindo o froco em cheio! Os lobos correram o mais depressa dali antes que o deslocamento do som fizesse seu trabalho. Ou o froco morreria ou a cidade toda estaria prestes a ser destruída numa batalha colossal. Tinha de acabar.
Aderio olhava para cima a contemplar uma aurora de cores nefastas erguendo-se da direção da praça. A rua à frente foi ficando mais estreita. Passou por várias entradas de gelo escorregadio no chão, becos, pulou por cima de uma ponte até avistar, lá adiante, um portão de ferro maciço com o topo completamente trabalhado em malhas curvas de metal. Havia uma árvore bem grande ao lado de um casarão de fachada completamente destruída. Aderio quis ter visto aquele lugar antes, pois isso acabaria com qualquer suspeita sobre o possível lugo quando visitara a cidade de Cormin.
Não havia tempo para arrependimentos. Seu inimigo, o froco, estava bem ali atrás, vindo mais voraz, violento e destrutivo depois da segunda explosão.
Ék tremia contemplando o monstro em rompante lá embaixo na rua. Mas o padeiro não estava sozinho. Havia uma moça ali ao lado de Ék e o saco de pano surrado. Aderio parou os lobos, abriu o saco rapidamente sem dar atenção aos outros dois. Olhou dentro e conferiu uma última vez o que ali estava guardado. De sua cintura deixou cair mais um frasco saco adentro. Enrolou o saco numa corda; ela gemeu um pouco enquanto estrangulava o pano. Depois disso, carregou o saco nos ombros sem dificuldades até onde ficava o casarão.
— Devo pedir para que se afaste daqui — disse Aderio, a espada em mãos. — Não sei o que pode acontecer após o encantamento ser feito.
— O que pretende fazer com isso? — indagou o bom padeiro. — E o que é que tem aí dentro, afinal?
— Para a primeira pergunta, nem eu sei, sinceramente. É uma facada no escuro. Nunca lutei contra essa coisa, só sei que é muito forte. A segunda pergunta, bom, olhe para o cemitério e tire suas deduções — Aderio olhou de soslaio para a moça. — E teve tempo para fazer amigas, senhor padeiro? Posso saber de quem se trata? — Ék nem conseguiu responder, a mulher encapuzada foi mais rápida. Sua voz sussurrava mistério.
— Alguém — disse apenas. Trajava uma capa surrada, não tinha adornos nos dedos nem nas orelhas, era muito pálida sem deixar de entoar beleza pelos lábios bastante finos; a única coisa que Aderio achou estranha era sobre seus pés. Tentavam, em vão, pela delicadeza da sapatilha, esconder uma horrenda cicatriz.
— Serve — Ade tomou isso como o bastante e ordenou que afastassem dali de perto. "Alguém" andou sem pressa, despertando desconfiança no dracus. Ék por sua vez correu rapidamente para longe em direção ao portão do cemitério. O vento começou a uivar assim como os lobos que se aproximaram de Kings Aderio novamente. O froco em algum lugar chorava alto.
Eberlen.
Disse o mestre beijando a lâmina de sua espada que entoava novo uivo à lua. As chamas tomaram posse dos dois. Os lobos vieram como que por mágica ao auxílio do uivo e entoaram na noite uma única e melancólica nota contínua. De repente, o vento bateu forte no portão e contra o casarão; um estrondo de derrubar gigantes floresceu na rua. O froco chegara.
Transformava-se como se fosse a coisa mais simples do mundo, tinha dezenas de tentáculos, mãos e pernas, um corpo descomunalmente grande na forma de uma onda e uma cabeçorra cujo olho não era mais que uma linha fina e desordenada. O globo ocular crescera, a íris era oblíqua como uma gota de orvalho querendo largar de uma folha e pungia nervos sanguíneos nos arredores. Veio no mesmo desordenado rompante e, desta vez, diretamente para o ínfimo saco se comparado ao tamanho do demônio. Aderio tinha de ser rápido. O froco talvez não percebesse onde estava, mas logo notaria.
Eberlen...
Disse mais uma vez longamente o dracus, os lobos ao redor se formaram em posição de ataque. Kings Aderio trouxe a espada ao encontro do ombro, o gume olhando para um dia que nascia. Algo como neblina desceu em espiral para a espada, como se alimentada pelo luar. Daquele lugar a contenção diminuía cada vez mais, o ar suspirava da espada, os uivos uivavam no fim da noite, e, o froco, ali vinha.
O que viera ao ar antes? A espada, ou o grito?
EBERLEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEN!!!!!!!!!!!!!
Tão intensa quanto a última vez, a forma da espada cresceu e se dirigiu para o froco. Ék e Alguém misteriosa lá atrás tiveram de se segurar em algo para não alçarem um voo desordenado. A espada uivava, esta era a verdade, e o froco, desta vez, recebeu a força de Kings Aderio inteira em seu corpo, o que o fez perder parte significativa de seu corpo.
Era agora ou nunca!
Caiu na minha armadilha, demônio maldito!
A espada girou uma vez tomando um brilho vermelho lançando fogo ao ar. Kings Aderio girou-a outra vez em suas mãos luzindo palidamente e uma última vez numa fúria dourada. Para Ék, foi como se amanhecesse antes de se acabar a noite.
Aderio bateu Eberlen verticalmente no chão e foi como se ele tirasse um raio lá de cima do céu. A mancha de fogo dourado passou pelo ar emitindo o mais violento som de corte e dirigiu-se para o ponto em que estava o saco, o froco, e o casarão, exatamente na posição em que estava o demônio naquele momento. Quando o raio dourado encontrou os seus alvos o cenário ficou mais branco do que a própria neve.
Mais raios irromperam na queda, vinham de dentro do saco fechado, espumando o ar, cobrindo as sensações dos que viam. Diante do dracus um jorro em arco-íris subia aos céus. O saco agitava-se enormemente. Como se dentro dele, algo estivesse desesperado para sair. Ade tomou Eberlen mais uma vez e num movimento rasgou o saco deixando um volume de coisas brancas revolver a terra do interior do que há pouco a continha.
— Ei! — gritou Kings Aderio para o froco que olhou diretamente para o que acontecia no saco aberto.
Lá dentro do saco, realmente algo estava além da terra. O corpo pútrido saiu dali tomando contornos, luz vestindo-se em magia. Obedecia a alguma sorte de encantamento de encher os olhos. Inclusive aos do froco que olhava para o saco como se só aquilo fosse determinar sua vida para sempre.
Era deslumbrante! O froco começou a desesperar-se chorando como uma criança. Fagulhas irromperam do demônio semelhantes às lambidas das chamas numa lareira. Vozes em diversos tons saíam de todas as suas bocas, gemidos de súplica presenteavam a noite com angústia. Logo, membros foram expulsos para fora do saco. Roupas brancas vestiam um corpo a olhos nus sendo formado. O froco observava atônito. Sabia o que via mesmo não querendo saber. Diante dele nascia, da morte, uma linda criança.
Ék observava perplexo à cena: o froco, uma gigantesca coisa, de forma hedionda, fitava uma criança que se aproximava do demônio sem medo. As mãos estendidas emitiam luz branda. Por instinto, Ék quis busca-la, mas a misteriosa mulher censurou-lhe.
A luz na mão da menina ia dissolvendo pouco a pouco o demônio que entoou várias coisas entre "nãos", e "minha mãe" em vozes guturais, até morrer no mais triste desespero de uma criança sumindo com o derreter da neve. Quando a última fagulha do froco se foi, a criança também desapareceu sem olhar para trás.
Ao fim de tudo, Aderio estava apoiado à espada. Suava com as duas mãos segurando as cabeças de lobo na empunhadura. Olhou em volta para ter certeza de ter sido o fim: do saco, nada restava, e nem mesmo do corpo da criança.
Tinha algumas coisas a dizer a Mangura sobre isso, embora você esteja vendo tudo isso, seu grande miserável, ele disse soltando uma gargalhada para o céu.
Braços, pernas, dedos, tudo tremia em Ék. Isso, no entanto, não o impediu de ir para o rapaz que, de alguma maneira, o salvara.
— Ele se foi — disse olhando a nevasca que não cessara de cair. — Ele realmente se foi! Você conseguiu! Haha! Você finalmente derrotou o demônio! Você... — mas havia algo errado. — Você está bem? — Aderio tremia demais. Não contendo-se deixou a espada despencar de sua mão também, os lobos ao redor rezaram com seus uivos, baixinho.
— Kings Aderio! Hey, rapaz! — continuou tentando Ék.
Como se atendesse a um chamado, Alguém saiu de onde estava e aproximou-se lentamente dos dois. Os lobos ringiram depois fizeram uma reverência a ela. Ék não viu isso, só a viu quando ela se aproximou sem dizer nada e tocar nos ombros de Aderio. A mão dela luziu, a capa lhe envolvendo o corpo caiu e os cabelos negros como os de um corvo alçaram voo. Kings Aderio sentia alívio com aquele toque em seus ombros e em seus cabelos. Como o toque de sua mãe, pensou. Ék, por sua vez, ficou pasmo com a visão. A mulher, de um momento para outro se transformou em algo digno de admiração e lugar certo entre as musas das canções mais belas conhecidas por Ék. Faltavam ar e palavras ao bom padeiro. Nenhum som transmitia, senão, pelos seus olhos hipnotizados com o canto em curso. Quando se deu por satisfeita, deixou Aderio ali no chão, sumindo junto às suas razões, atrás do casarão ainda em pé.
Kings Aderio sentiu calor novamente, calafrios e novamente calor. Respirou fundo como se tivesse saído de um mergulho muito profundo e viu o grande padeiro à sua frente. Levantou-se, com dificuldade auxiliado pelo bom Ék. À sua volta não havia froco, mulher ou lobos, a não ser um único lobo, o branco. Apenas ele, Ék e o lobo branco como a neve estavam ali. O padeiro era só admiração e pelo corajoso homem que tomara em seus braços o cadáver de uma criança sem sequer o saber, Kings Aderio tinha uma última coisa a fazer.
— Leni está bem — disse Aderio recusando gentilmente um abraço de Ék. — Ela está fora de perigo. Quando cheguei a Cormin, a primeira coisa que fiz foi subir até o seu quarto deixando ali um feitiço. O fogo que você viu não tomou a sua casa, era tudo uma ilusão. Mas não o que o froco causou à sua casa, infelizmente. Mas, serviu para guardar Leni por trás de suas cortinas ilusórias. O demônio, ingênuo por sua natureza, não pôde vê-la detrás do encantamento. Disse a ela que eu e você teríamos uma viagem com extrema urgência e que o encontrasse aqui, nesta cidade, neste endereço — Aderio deu uma caixinha a Ék com uma chave em seu interior. — É um quarto na estalagem do Cancioneiro do tombadilho. Espero não ter explodido com tudo o que aconteceu. Agora vá aguardá-la.
— Rapaz... você nos salvou... como pago tal dívida se sou só um padeiro? — Ék tinha espanto e admiração, não conseguia falar da misteriosa curandeira que estava ali e sumira. Só pensava em Leni, em vê-la, beijá-la mais uma vez. Mas agora tinha uma dívida e queria muito honrá-la. Aquela torta! Iriam comê-la juntos, talvez. Aderio, sorria exausto para o padeiro.
— Minha espada, por favor — ele apontou para Eberlen. Ék segurou-a como se fosse o bem mais precioso do mundo e a entregou a seu mestre. Ela era estranhamente quente. Ék teve certeza de ser a mesma sensação de segurar a um cachorro. Sentiu-se honrado por tocar em lâmina tão bela, lisa, sem nenhum adorno sequer pelo longo do gume; porém, observou os dois lobos brandindo os dentes um em cada lado do punho lembrando-se da história que terminava aos poucos. O amigo Barsy, Mirto e toda a gente em Cormin fora vingada.
O dia demoraria mais um pouco para se levantar. A neve e a noite ainda estavam densas. Aderio cumprimentou Ék rápida e gentilmente
Apenas... viva e continue sendo um bom padeiro, resumiu-se a dizer.
Ek não pôde dizer o quanto era grato ao rapaz. Sua vontade de dizer que sempre seria bem vindo à morada dele e de Leni não pôde ser proferida. Dentro do bom padeiro sobrou um sentimento de alívio e frustração, pois aquele que tinha o salvado foi embora sem pedir algo em troca se não a própria felicidade de Ék e que ele continuasse sendo o bom homem que era.
Ainda abatido e tentando colocar as ideias no lugar sentou-se na beira da estrada com um cemitério atrás de si querendo que a noite fosse embora e nunca mais retornasse, esperando que o amanhã trouxesse Leni, Cormin e a vida de padeiro de volta ao lar de seu coração.
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