O Froco: Parte VII - A fuga pelo desfiladeiro
O grande lobo e seus companheiros de alcateia passavam pela neve como se fosse uma superfície dura e macia ao mesmo tempo; corriam com tal velocidade que Ék não conseguia distinguir o que se via à sua volta. Passaram pela praça saindo pelo portal da cidade; depois, atravessaram uma longa estrada que caía rumo ao planalto, finalmente, nas margens de um riacho. Ao observar um tronco que estava naquele riacho desde seus tempos de criança, Ék surpreendeu-se com a velocidade do grande lobo.
— Isso é impossível! Como chegamos tão rápido aqui? Fica a milhas da cidade!
Aderio empurrou a cabeça do padeiro contra o dorso do lobo.
— Não fale muito ou sentirá náuseas! Abaixe a sua cabeça! — gritou. — Ou se arriscará perde-la! Estamos quase entrando na floresta.
— Na floresta? — Ék não acreditava no que estava ouvindo. — Vamos pela floresta? Você é louco!? Ela é cheia de...
— Lobos? — completou Aderio em suas costas. — E o que é isso debaixo da sua bunda, homem? Abaixe-se que eles fazem o restante.
Aderio observou o vento estourar uma árvore a seu lado. Foi um tronco contra outro, o rebuliço no ar quase abraçou os lobos. Destemidos, continuaram. A correria era alta junto à noite. Ék não sabia como, mas o rapaz via uma aproximação mesmo sem olhar para trás apenas por menear a espada de um lado a outro.
Ele vem!
De repente gritou para a urgência das patas tomarem a forma de fogo contra a neve.
— Ele quem? — indagou o padeiro.
— O Froco. — respondeu Kings Aderio, via-se o asco em seu dizer. — Um demônio que só vai cessar se você e sua esposa morrerem.
— Mas por quê? Que droga eu fiz para uma coisa assim buscar minha morte? E Leni? Leni não faz mal a um graveto!
— Você existiu, Ék! Existiu e cresceu — respondeu abruptamente Aderio. — Você cresceu nos negócios, nas alegrias, no amor; Mirto e Barsano também! Foram bons amigos! Razão para que esse demônio não perdoe esses fatores aglutinados.
Ék, um vendaval mais forte que a nevasca a voar debaixo das patas furiosas dos lobos, nisso se resumia sua mente. Tudo parecia um alucinógeno nos dentes, era isso. Nos dentes, não na mente, daqueles de mascar. Os outros quatro lobos moviam-se juntos como irmãos. Corriam velozmente contra a borra branca e espessa que caía do céu, sem cessar de crescer. Nada parecia ser obstáculo para aquelas patas. Não são lobos normais, pensava Ék. Saltaram todos por cima de uma rocha, fizeram uma curva vertiginosa pela clareira que adensou, começando, para desespero do padeiro, a descer um desfiladeiro mais íngreme que a altura das árvores. Ék sentiu sua barriga esfriar, descer e subir abruptamente. Corriam na mais reta verticalidade, para baixo, ganhando mais velocidade, o pico das árvores se aproximaram e foram embora lá no alto até chegarem ao chão. Ék quis vomitar quando as patas do lobo encontrou chão em forma de gelo azulado.
As rochas começaram a se soltar quando do fundo, num rompante desordenado, o froco apareceu a certa distância. Movia-se como uma onda. Enrolava-se no próprio corpo, jogava os tentáculos, as pernas e braços moviam-se sem articulações de maneiras impossíveis para todos os lados deslocando-se, ora pelo ar, ora pela terra. Dotados de valentia feral, alguns lobos ficavam para trás e lançavam-se em cima da coisa. Ék queria ter aquela coragem toda, mais parecia uma loucura do que coragem, pensava cheirando o fedor do lobo em que montava. Os animais não aparentavam cansaço. Corriam, batiam, e retornavam para seu galope atravessando muros de tentáculos, pernas e braços. Cada investida uma fagulha; a cada fagulha apagada, um berro alto. Ék pensou ter ouvido várias vezes o grito de uma criança quando os choques marcavam aquela noite.
O lobo que levava Kings Aderio aumentou o passo ficando rente ao padeiro.
— Segure-se, Ék! Tenho que fazer algo, ou todos nós morremos soterrados aqui!
Kings Aderio tinha razão quanto ao soterramento. Tudo começou a se mover lá atrás. Uma coluna de neve imensa começou a descer o penhasco. Escoava numa corredeira de sujeira, rochas e árvores inteiras. Uma avalanche vinha! O froco batera com força demasiada nas rochas. Estavam no chão, mas o nível do morro continuava a descer. Os gritos do froco ecoaram e deslocaram tudo à frente e atrás. Os lobos, corajosos, corriam sem atrapalharem-se nos próprios passos. O tempo não parecia os ajudar, a montanha vinha a baixo, e os animais pareciam mais agitados, apesar de que corriam. A montaria de Aderio diminuía perigosamente sua corrida. Os outros lobos foram à frente e formaram uma corrente em volta de Ék.
Ficaram o froco, Kings Aderio e sua montaria, e a corrente de lobos. Amedrontado, Ék procurou entender o que ocorria e, contra tudo aquilo que pensou ser possível, contemplou o rapaz em pé no dorso do lobo.
— Que raio você vai fazer?! — indagou Ék. Aderio não respondeu, apenas saltou.
Ék teve o vislumbre por um segundo de algo que se assemelharia a uma pintura de contações de história, das mais incríveis, não fosse o pesadelo bufando em suas costas.
Os lobos saltavam seguidos de raios em suas caudas, as árvores caíam ao redor estraçalhando-se no chão, a neve furiosa descia morro abaixo com uma massa de bocas púrpura na matiz negra do céu, urrando, enquanto um homem brilhava e erguia sua espada contra ela. Ele girava, girava, girava, na mesma velocidade que a alcateia vinha descendo o morro.
Ao encontrar prumo, como se tivesse ali uma plataforma na qual ficar em pé, Kings Aderio meneou a espada para baixo furiosamente. Um lampejo de chamas azuis, amarelas e brancas adornou a ponta da espada se intensificando até alcançar o froco numa explosão colossal contra o morro. Tudo estremecia com as chamas derretendo neve nascendo em labaredas vulcânicas. A noite que era escura e branca se tingiu da cor fremente do sangue.
Uma lágrima surgiu dos olhos de Ék com aquilo; era tanta luz, coragem e loucura que sua mente e coração não conseguiam conceber se era verdade ou mesmo a desgraça de um sonho. A luz penetrou forte na criatura e no chão, forçando aquilo que repensasse o passo seguinte. O incêndio cresceu lá atrás e a coisa gritou furiosa no mesmo instante em que o homem retirado das mais estranhas canções caía leve, retido por algum ar, voltando diretamente ao encontro do lobo. Ék viu o homem passar por debaixo do grande lobo cinzento, pendurar-se ali, ganhar impulso e saltar de volta ao dorso do animal. O lobo voltou a descer e Aderio a se sentar. Ék só conseguia balbuciar com os olhos esbugalhados e a cabeça que não parava de sacudir.
— Que di... Quem... O que... Ah!... O QUE NAS CANÇÕES DAS PROFUNDEZAS É VOCÊ?! — Indagou perplexo o padeiro.
Os outros quatro lobos abriram caminho, deixando o lobo maior e Aderio passarem velozmente. Estavam chegando ao fundo do desfiladeiro quando depararam com outro grande obstáculo: o penhasco morria numa pequena parte plana, entretanto, não findava com toda a sua altura. Havia ainda outro penhasco e neste, um rio urrava lá embaixo esperando triturar o que caísse em sua correnteza.
Mesmo aquilo não trouxe dificuldades aos lobos. Todos os seis saltaram caindo do outro lado do penhasco enquanto a neve se perdia em uma catarata branca enchendo a correnteza lá embaixo.
Não havia sinal do froco. Neve caía e o ar abrasava lá em cima naquele lado da floresta. Mas os lobos não cessaram o galope. Continuaram correndo pela orla, deixando a floresta à esquerda, atravessando por pântanos congelados até chegarem à estrada novamente.
Depois de um galope nada suave subindo a estrada, finalmente avistaram uma placa de madeira que indicaria Venova. Era lá o destino da noite cerrada. Ék sabia, pois já havia passado por ali várias vezes. A última demorou cinco dias numa viagem pela estrada, entre pousadas e acampamentos.
Jamais imaginou que um dia cortaria caminho pelo desfiladeiro em cima de um lobo com um rapaz, um homem... não! Um demente completo capaz de realizar tremenda façanha a pleno galope.
— Quase chegando! — gritou o demente Kings Aderio. Ék notou um sorriso vagamente perturbador fugindo do rosto.
Não demoraram nada para atravessar o portal que estava cheio de guardas na murada, apontando suas setas ao chão. Não se importaram com eles, eram muito mais rápidos. Os guardas não tiveram o menor tempo para gritar ou fazer algo, pois o froco os perseguira até ali e derrubou as ameias e o muro como se fossem gravetos levando neve pedras e metal pelo ar.
— Ele é mesmo muito forte — observou Kings Aderio experimentando a espada — Ék, você precisa fazer algo muito importante — Aderio desceu do lobo, o animal furioso não saiu dali e não deixou Ék descer também. — Confie nesse lobo! Ele vai te levar bem longe daqui. Preciso que você pegue um saco grande que está ao pé de uma árvore na entrada do cemitério. O lobo o deixará lá. Depois vá até o tecelão que fica duas ruas abaixo do cemitério. Você vai voltar ao cemitério! É imprescindível que volte! Homem, você entendeu?
O padeiro só pensava em Leni, no amigo Barsy, em Mirto e em que canção ele se encontraria agora. Ao ouvir seu nome urrado novamente assentiu e deixou o lobo seguir seu rumo deixando um homem lá atrás brandindo a espada contra uma torrente de energia maligna erguendo-se exuberante.
Viu-a despencar sobre Aderio. Viu este brilhar incandescente. Isso agora ficara para trás. Restavam agora os tijolos à frente guardando uma esperança, insone, de reencontrar aquele homem mais que impressionante novamente.
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