O Froco: Parte V - O Onisciente Filho de Mangrensis
O ar descia pleno em pó, fuligem e cinzas derivados de montanhas incandescentes, de tempos imemoriais, expelindo rochas a temperaturas impossíveis o bastante para destruir a mais forte rocha. Ao menos no mundo em que deixara. Este agora se escondia entre o imaginário e o desconhecimento. E que bom ser tão desconhecido. Kings Aderio sentia dores indizíveis sem que o demonstrasse. Os dentes rangiam furiosos, mas era só, apesar do corpo querer se desfazer no passo seguinte.
Pois imagine o seguinte: Transformar pele em fogo para, a seguir, ser fogo em pele a fim de adentrar nos reinos da obscuridade flamejante. Cada pedaço de pele e de tecido que o guardava se desfizeram em chamas para serem redesenhados em seu corpo novamente do outro lado do portal. Uma habilidade inerente à sua qualidade. A primeira a ser manifestada quando saíra do Vale. Ele e os seis. Não era algo que uma pessoa qualquer seria capaz. Era preciso muito mais do que uma mulher ou um homem pudessem ser normalmente. O tento devia-se, somente, ao beijo de Aramor, dádiva que fora dada a Aderio e aos seis mais notáveis deste tempo. E a Falha Vermelha, como esse reino flamejante era conhecido, estava novamente prestes a observar o encontro de dois deles.
Kings Aderio caminhou meramente aliado do escuro. Ouvia, ao redor, criaturas rastejarem, entoando dizeres detestáveis. Em tal escuridão, apenas olhos o perseguiam, brilhavam em sua direção sem aproximarem-se. É que há muito aprenderam a lição de que, daquele homem — e de seus companheiros — era melhor não receber atenção. Não na Falha Vermelha, de modo que Aderio nem mesmo colocava suas mãos em Eberlen, ele não necessitava mais disso. Seu nome obtivera grande respeito nas profundezas desses covis da escuridão. Poucos afrontariam quaisquer dos cinco guerreiros vivos beijados pelo fogo de Aramor, o risco era muito alto.
Em seu andar, Aderio ouvia a voz melodiosa de alguém; um tanto fria e distante entoava algo vindo lá longe no túnel velado pelas chamas escuras e a escuridão. Era difícil ouvi-la, mesmo para Aderio. As palavras se juntavam à fúria do fogo ao redor, constante, crescente.
E contente na tez o braço brandiu
As quatro pernas da montanha assim quis fender
As sete armas um coração cantaram
No rio o fogo veio ao dia para vencer
Vencer... Lembrou-se de algo há muito tempo ocorrido: uma cascata alta como o céu ladeada por duas montanhas estreitas e muito altas de onde poder-se-ia ver um ser gigantesco e cinzento descansando em seu trono. Lembrar-se disso foi o intervalo de uma piscadela, o abrir dos olhos deixando aquele mundo perto e distante ao mesmo tempo. Seus passos o levaram por séries de descidas e subidas e mais descidas. As paredes se afastaram contornando os arredores de uma imensa caverna. A voz por elas entoou menos distante.
Sete armas, uma alabarda ascendem
Um salto da pedra, e o sol em si fende
A lareira espalhou o seu véu ardente
Corram, senhores! Caminho aberto aos viventes
Uma piscadela, fortes dores nas têmporas. Amaciou com os dedos levemente as pálpebras. Parecia fuligem o que tocava com as mãos em chamas, além de um passado distante aparecer nítido em sua mente. Viu seis homens embaixo de uma cascata, e uma mulher de cabelos entre o ouro e o rosa das cerejeiras, seus olhos eram profundos e estava com uma tocha em suas mãos. À sua frente, uma cabeça grande como uma piscina delgada e escamosa. A cabeça ergueu-se para esconder o Sol. Ade viu em sua frente as chamas descerem sobre a mulher em forma de chuva torrencial.
De volta à baixa luz, nesses cantos reclusos do além-mundo, o fogo alastrou. Aderio andou entre ratos incandescentes, vermes, e uma parede de um verde que dava dores ao se olhar. Dessa parede, algumas coisas de descrição odiosa vinham ver rapidamente quem caminhava naquelas redondezas. O brilho de Eberlen fulgia impelindo pânico aos curiosos.
Era estranho tratar aquilo por parede. O verde se movia como as ondas do mar, violentamente e sem cessar. Adiante, tocou em algo com suas mãos, sentindo imediatamente uma criatura roçar por elas como um gato. Parecia amistosa. Desceu deslizando pelas pernas e sumiu no escuro. A voz de alguém mais adiante sofria.
Oh! Dor da flecha, Oh, sangue quente do gelo
Gelo fino do vinho, olhos de fogo do espelho
Mecha da dor, fúria sempre rasa
Nesse momento a voz ribombou fora da caverna.
Martelo rompido e sofrimento em brasa.
Aderio viu-se caindo de joelhos enquanto o céu enegrecia-se de flechas e escudos de madeira se quebravam. Um corpo pendia nos seus braços, nos de outro homem e de uma mulher de cabelos de brilho branco ao sol. Os três seguravam a dor de alguém nos braços. Tinha o olhar doce, sofria de algo que, em seu peito, explodia. Aderio sentia-se furioso. Lembrava-se do frio sofrimento de um retorno sem volta.
As imagens fugiram de sua mente, tão logo vieram. Kings Aderio começou a subir as escadas em pedra onde uma construção o esperava com um livro de tamanho incomum em cima de uma mesa. Cercado por balaústres e uma vasta sorte de vasos com folhagens verdes, residia um coreto. Nele, a mesa e o grande livro. Era perscrutado por um homem que não tirou os olhos do livro nem por um momento mesmo quando Aderio se aproximou.
Abrem-se as cortinas de um beijo terrível
Lágrimas infestam a alma dos sete convivas
Vazam as dores do sopro invencível
O herói vem... A morte insípida convida
Kings Aderio parou diante da mesa há poucos metros do enorme homem que não ergueu nem mesmo uma sobrancelha para encará-lo. Tinha duas adagas belíssimas em cada lado da cintura que, como a cintura de Kings Aderio, estava cravejada de frascos estranhos com figuras esculpidas em pedras de cores distintas em cada um.
Havia um leão branco derrubado por um urso preto; uma serpente dominada por uma enguia púrpura, um rato azulado arrancando a peçonha de um escorpião; um texugo fazendo reverência a um cisne vermelho, um lobo prateado uivando a outros três lobos e um cervo vermelho brilhando ao céu estrelado; seis frascos, seis figuras esculpidas e seis cores lhes guardavam. A eles. Os sete.
O homem tinha um semblante ameaçador, os lábios guardavam um sorriso malicioso detrás da barba pontuda no queixo e no bigode fino em curva. Um rosto macilento combinando com seu corpo magro que trajava cota de malha de metal leve, sem deixar de brilhar com o fogo ondulante a seu redor. Trajava um capuz da cor violeta que descia pelos ombros recostados confortavelmente em um trono de pedra chamejante. O homem era grande o bastante para colocar o livro imenso em suas pernas. Maior que o maior dos homens normais que se possa imaginar, deveria ter pelo menos uns três metros e meio de altura. Sua voz, um convite aos caminhos da desconfiança. A voz que vinha das Tormentas.
— O jovem capitão regressa — disse passando uma página adiante no livro, suas unhas eram garras pintadas da mesma cor do capuz. A enguia em sua cintura parecia brilhar.
— Mangura de Mangrensis — assentiu Aderio.
— Aderio... Vem suando pela Falha... Tsc, tsc, tsc... Um dracus envolvido pelo fogo magno não deveria estar suando.
— Não é de calor — respondeu Aderio nem um pouco incomodado. — É de calafrios e já vou logo ao assunto.
— Bedaya detestaria saber que você retornou a este lugar nessa época — Mangura sibilou um riso bem baixinho. — Para ele e os outros você deveria estar em outro lugar sem usar tantos portais tantas vezes.
— Vai me ameaçar com esse tipo de frivolidades — disse Aderio fincando Eberlen na pedra, a espada uivou soltando faíscas que caíram no livro e se desfizeram ali mesmo. — Amigo...
— Claro que não, meu caro, não tenho menor vontade em mostrar capacidade de sobrepujar a tão bela Eberlen. Menos ainda gostará disso a coisa que procura com tanto afinco nos últimos dias. — Aderio apoiou-se na espada, o que fez Eberlen flamejar agradavelmente sobre seu rosto.
— Já sabe do que se trata? - indagou erguendo o queixo para o que lia Mangura.
— Seguir você é muito mais interessante que a Bereor ou Rapey-rhôda. Não se sabe com qual homem um estará de novo e em que plano o outro se esconderá atrás dos livros.
— Se eles ouvem você — sorriu maliciosamente o outro dracus.
— Nada farão — respondeu entediado Mangura. — São poderosos, sim, mas juntos anão e elfo não conseguem ouvir o mundo dos demônios... Água e ar meu amigo, água e ar. Ainda que tenha sido por Bereor que vimos o poder de uma deusa caída pela primeira vez.
Aderio considerou o calor muito forte ali dentro. Todo ar entraria em combustão. Toda água evaporaria por tamanha pressão. Apenas o fogo e as rochas resistiam ali.
— O que acha que seja? — perguntou Aderio. — O causador disso tudo causando desordem. Se é um lugo...
— Isso depende de como estão os lugares onde ocorreu a matança — ponderou Mangura. — Como descreveria a bagunça? Ao estilo dos Cantos de Pele e Sangue?
Esse era um tema do qual Kings Aderio odiava. Fora por tal que se tornara um dracus. Não sem muita dor.
— Bagunça? É um eufemismo gigantesco para o que ocorreu naquele lugar. Você estava me espiando e nada viu?
Mangura fez um espelho aparecer diante dos dois. Não tinha uma forma definida o contornando, senão, pelas chamas que dançavam formando uma figura semelhante a um tronco de árvore; o espelho, na estrutura, seria o orifício com uma "cabeça de Mangura" de tamanho. Lá dentro, ele demonstrou a mesma cena que estava acontecendo agora, ali mesmo. Aderio brilhava com quatro fios negros girando sobre seu corpo iluminado em azul-celeste. Mangura tinha apenas dois fios.
— Eu só vejo a sua sombra — disse Mangura apontando um dedo para o Aderio azulado lá dentro e alguém sentado sem uma silhueta muito bem definida. — Fico bonito, não é? — não aguardando respostas de um Kings Aderio que tocava numa folhagem ali ao lado, Mangura prosseguiu. — Não dá para ver nada, Ade. Apenas sua sombra, como ela se move, resplandece. Para enxergar arredores, ainda falta-me certa sabedoria — um dedo insinuante apontou para o outro dracus.
— Mais do que tem o senhor do Silêncio de Mangrensis? — desafiou Aderio lembrando aos dois o reino de Mangrensis lá fora, o castelo defronte às ondas mais temidas do mundo por não fazerem arrulho algum, mas Mangura era astuto.
— Não sou eu quem devia estar sentado e lendo este compêndio sem fim alimentando os limites dos conhecimentos do homem e dos seres em geral, e sim, certo lobo — Aderio evitou olhar para um sorriso cruel de Mangura salientando o quanto o incomodara — Não foi o que Aramor nos disse? Prossiga.
— Se esse mundo tivesse as respostas do que procuro... Pois bem... O primeiro cenário indica se tratar de um lugo: a casa estava em pé sem nada ter sido tocado, e como o lugar não possuía nada de vidro...
— Nada aderiu no ar ou caindo pelo chão, de maneira que não chamasse tanta atenção — Mangura encostou o nariz fino e comprido na parte inferior da página do livro tocando nele como se o nariz pudesse aderir à folha luzidia. — A exceção de corpos mutilados. O que, consideravelmente, chama certa curiosidade.
— Exato... Em Cormin, cidade não muito distante do primeiro caso, dois lugares diferentes. Em um havia certa destruição, as paredes estavam tingidas de sangue. Noutro, uma estalagem, tudo estava completamente destruído
Mangura ergueu uma sobrancelha.
— Sinal que impossibilita se tratar de um lugo. Você não é o caçador, Aderio? — esbravejou friamente. — Então cace e pare de foder tantas criaturas diferentes.
Aderio continuou firme como uma rocha, nenhum gota de suor caiu-lhe o rosto.
— Eu já falei para parar de me observar nesses momentos — falou ameaçadoramente. O outro tratou o tom como uma brisa.
— Fico a observar os seus gostos exóticos para mulheres e fêmeas de raças humanídeas, se prefere assim. Isso me diverte, compreende? Ora, isso é uma lâmina de suor bem bonita cortando seu rosto agora. Cadê a rocha, meu amor e senhor? — Mangura riu-se.
— Está na vala onde jaz a paciência de Bereor para te aturar tanto, gigante do abismo. Devo prosseguir? — interrompeu impacientemente Kings Aderio. Do outro lado do livro, Mangura dava de ombros.
— Nem deveria se já sabe. Não é um lugo, ele não pode destruir nada que não seja pele e carne de pessoas adultas, as únicas coisas que devoram. Um lugo sorri para crianças, morre pela decocção da lágrima do gargalho de um bebê. Um demônio que destas quer distância.
— Como você mesmo disse, a única coisa que devoram. Mas isso, seja lá o que for, age como um lugo move-se como um e, é tão perigoso, ou mais, que um. Ele devorou um bebê.
Mangura largou pela primeira vez o livro e olhou para um raio de fogo que rompeu o céu negro. A aquarela negra não parava de se mexer. Aparentavam ao longe serem nuvens de fundo noturno, movendo-se pela ação de um vento ausente. Algumas runas dançavam de fora do livro para dentro da mente de Mangura e, outras, buscaram Aderio que não dava a menor atenção a elas brincando em seu corpo.
— Crianças e um bebê! — indagou Mangura bastante surpreso. — As crianças eram de que idade?
— Infantes e outras um pouco mais velhas — disse Aderio.
— Tem rastro da coisa? — indagou Mangura ao que Aderio percebeu um nervosismo inédito no companheiro.
— Está branco, amigo, ou isso é só...
A voz de Mangura era urgente.
— Temo que Eberlen tenha de ser usada como se a sua alma dependesse disso — Mangura gesticulou de maneira estranha com os dedos. Ao terminar, o livro fechou-se como se guiado pelas mãos daquele homem enorme. As páginas deixaram poeira dourada cintilar pelo ar. — Ade, isso que você arrumou é uma enrascada e tanto. Bastante rara também, levadas as circunstâncias em que isso se manifesta.
— Do que se trata?
— Bom... Relembrando o que sabemos desses demônios surgidos das emoções: o lugo é um demônio de nível menor que surge do sentimento de uma paixão exaurida ou de uma decepção realmente séria entre adultos; ele se apropria disso e toma forma, atravessando o âmbito da energia negativa causada pela mudança de sentimentos transformando a massa imaginária do rompimento de uma relação amorosa em matéria que brilha ao luar. Em miúdos, transforma o sofrimento em energia e brilha com a lua.
— E assim sua massa não se estabelece em corpo ou forma definidos. A não ser quando contemplado pela lua. Para derrota-lo, portanto, o melhor é fazê-lo com sua lua preferida e exatamente onde nasceu, o que pede uma captura.
— Sim, a captura de um lugo é possível e necessária, porque a estes ainda existe um vislumbre de esperança — Mangura observava algo muito distante que nem mesmo Aderio poderia saber o que era. Era um homem esguio e anormalmente alto para muitos e incomodaria a vários pescoços. Não o de Aderio. — Agora, o que está à espera de Eberlen, não. O lugo não é o único demônio que nasce de uma decepção; há outros mais e você estará diante do pior deles — o ar ficou pesado entre os dois dracus. — Nasce do choro inconsolável de uma criança ao contemplar o indizível que nem seus pesadelos são capazes de vislumbrar. A criatura guarda o choro e transforma a inocência perdida em um elixir poderosíssimo que nele se incorpora, se forma e transforma. Se um demônio é forte com o sentimento latente entre duas pessoas, imagine então quando surgido do amor inocente de uma criança por alguém, que não sabe discernir o que é o ódio, amor ou perdão? O amor de uma criança nunca encontra a escuridão. A segunda que o encontra.
— Isso significa que uma criança foi corrompida, isso é certeza?
Enquanto Mangura elencava nomes, massas de energia de cores diferentes apareciam pululando num chão invisível em pleno ar.
— Grávius, kelinus e grocos, os mais fracos em essência, nascem da decepção de idosos com a aproximação da morte, sem ser possível, até o momento, precisar qual deles surgirá até que a cor neles se manifeste; lugos, da decepção entre adultos podendo ela ser amorosa ou o que tange a esfera social; nelias, estas formam-se exclusivamente da decepção amorosa entre jovens e, você sabe muito bem, que é preciso sempre uma decepção absurdamente séria para ocorrer tal coisa, não mera bulha adolescente. Agora, estes aqui — disse Mangura mostrando uma massa de energia que fez Aderio lembrar da pigmentação no vidro da estalagem e da apotecária. — Os frocos. Estes são excelentes exemplos do que não deveria ter sido. Nascem da compreensão do indizível à uma criança.
A massa energética modelou-se numa criança que via seus pais morrerem diante dela. A imagem agitou-se num desespero caótico. Logo, tornou-se mais agitada, agressiva, furiosa e a massa ensaiou criar algo com tentáculos disformes. Formaram-se braços, pernas e muitas bocas tanto no rosto sem olhos quanto na barriga, nos braços e nas pernas. Possuía dentes imensos, garras e um corpo disforme bailando como se não tivesse ossos.
— Então se trata disso — Kings Aderio odiou ver aquela coisa. — Um... Froco.
— Vai ver seja uma alusão para fraco, feita pelos antigos caçadores, mas já lhe aviso que você pode morrer lutando contra uma coisa dessas. Eu o conheço, Ade, mas, se lutar com isso e não ser prudente, e saltitar feito gota de chuva ficará até os últimos dias de sua vida defendendo-se e atacando até que algum deslize ocorra e um dos dois morra. A coisa não é nem de longe fraca.
— Essa coisa é como o lugo e só apareceu de noite ou em meados da manhã.
— Infelizmente — Mangura fez uma pausa um tanto comovida. — Diferente do lugo e dos outros demônios, frocos possuem pessoas assim que se manifestam. Crianças gostam mais do dia do que da noite. Amam a chegada da manhã sem aperceberem-se ao certo disso. Momento em que elas vão brincar. Os frocos se apropriam também disso, e preferem a chegada da manhã, os primeiros calores da madrugada que deixa de ser. Chegando os primeiros raios de sol que humano algum consegue ver, eles vêm. Mas o problema é que ele existe e, como já se manifestou, ele possuiu uma criança para tanto, podendo ser a mesma criança que vira algum horror, sendo assim...
Houve um silêncio breve, e Aderio respondeu como se desaprovasse suas próprias palavras.
— Terei de matá-la... Uma criança... Não existe exorcismo capaz de tanto. Não de minhas capacidades.
— De ninguém, meu caro.
— Uma vida inocente pela morte de um demônio.
— Troca justa? - a pergunta de Mangura tinha contornos retóricos respondidos pelo olhar penetrante de Aderio. Já tiveram grande indagação semelhante. — Precisamente. O froco é o pior na classe de demônios, pois ele é ou pode ser a própria criança. Ele mata e devora sem parcimônia, Aderio. Como se cada pessoa que vê pela frente fosse um doce. E pior ainda se o caso for o de um bebê que só conhece o gosto do leite materno. E não vamos esperar que ele descubra qual é seu gosto predileto, isso não deve acontecer. Você precisa descobrir o que houve para a criança ter soltado tanta energia negativa e condensado em um froco. Já sabe se é a morte de pai e mãe?
— Sigo o rastro dessa coisa há uma boa distância e tenho pouco tempo para verificar a outra cidade novamente — objetou Aderio.
— A criança viu algo e morreu, Ade. Isso pode ser um fato. As razões por trás disso são essenciais para estabelecer um padrão. Uma coisa em comum entre os demônios é que são arrogantes por natureza. São calculistas, agem com muita frieza com relação às circunstâncias que os fizeram nascer. Pensemos nas circunstâncias. As pessoas que morreram nessa cidade de Cormin tem alguma relação?
— Eram bem sucedidos e eram amigos de infância, uns mais que os outros — explicou Aderio.
— Estamos chegando a algum lugar. Nisso os lugos e os frocos tem algo muito em comum e por este cenário você pode me dizer o que é.
O fato relampejou na mente de Aderio. Num instante, Eberlen estava de volta à sua bainha.
— Eles guardam as aparências. Não as físicas... As que regem a vida das pessoas envolvidas naquilo que teria gerado a dor para se endemoniar. Pessoas com relações de vida. Pessoas assim como Mirto e Barsano. Pessoas como... Ék.
Mangura aprovava a perspicácia do companheiro.
— Acredito que a criança viu o assassinato de alguém que amava; suponhamos ainda a morte da mãe e do pai e que isto aconteceu pelas mãos de alguém próximo da família.
— Próximo e bem sucedido... como as famílias em Cormin... A herbalista em Venova — lembrou-se Kings Aderio. — Tinha amizade com outra moça que morrera num certo incidente. Não dei importância porque foi do outro lado da cidade e algumas semanas antes. Nem passou pela minha cabeça, o intervalo de tempo era grande — as coisas começavam a clarear na mente de Aderio e as runas no livro se agitaram ainda mais. Mangura soltou um breve sorriso observando Ade raciocinar. Isso lhe dava lembranças. — Disseram-me que foi algo trágico e que a criança, filha da moça, não havia morrido na ocasião, ainda estava internada.
— Isso talvez não fosse certeza naquele momento — ponderou Mangura. — E você estava do outro lado da cidade, o que nem o fez pensar sobre o assunto. E, aliás...
— Não sabia nem mesmo da existência deste... froco — concluiu Aderio. Mangura assentiu deitando uma mão cansada em seus ombros.
— Correto, meu caro lobo. E outra coisa — disse Mangura, seu capuz violeta balançava de lá para cá enquanto retornava ao seu trono em chamas. — Quando foi a morte da mulher que você mencionou?
Aderio sabia que qualquer informação nas mãos de Mangura era algo relevante, mesmo que fosse um fio de cabelo no vaso de uma pia.
— Há quatro dias. Antes de eu chegar à cidade.
— E disse que a criança estava internada, com semanas antecedendo a morte da herbalista de Venova.
— A criança pode ter se manifestado depois? — indagou Aderio. — Um adulto ou um adolescente já possui conhecimento, vivência, algo que faz com que, por si, tenha forças de fazer algo se manifestar.
— Com uma criança leva tempo até tudo ser completamente processado na mente já que conhece pouco ou quase nada. Sim, meu amigo. Ela pode ter se manifestado depois. E não foi apresentada à solidão.
— Talvez não soubessem ali que a criança estava morta... Fora deixada internada e não cuidaram dela!
— Sugiro-lhe lâmina fria e pressa. Ao menos sabe onde será o campo de batalha.
Aderio virou de costas para Mangura. A escada foi tomada por chamas à medida que Mangura descia trazendo algo a mais em sua mão. Uma adaga muito bonita, com uma serpente enrolando-se no cabo. Tinha a boca aberta, por onde a língua lambia a lâmina quase transparente. Ambos os dracus envolveram-se nas chamas: Mangura entrava num fogareiro de imensas chamas negras e Aderio em suas chamas brancas, azuis e amarelas. O calor parecendo não os ferir.
— E arde em chamas o prodígio de Bellara, o querido das moças puras — riu-se Mangura.
— Ergue-se da flama negra a flor do amparo de Mangrensis, filho e senhor da Tormenta — respondeu Aderio com uma mesura.
— Não levará mais nada? — as chamas bruxuleavam digladiando-se uma ao pé das escadas, a outra ao lado do livro imenso. Mangura de Mangrensis era uma figura que impunha total respeito seja pela sabedoria ou pelo tamanho acima do mais alto homem. — Nem mesmo uma coroa?
— Levo esperança, eu acho. E paciência, apenas. Tenho um longo caminho agora e preciso correr. Quanto à coroa, o adorno ainda não me cabe.
— Então sugiro...
— Um caminho de uivos, meu amigo — interrompeu Aderio levantando um sorriso zombeteiro para Mangura.
Os lobos na espada de Kings Aderio acordaram do descanso fazendo um estardalhaço se manifestar por todos os lados. Gritos de desespero na noite imaterial.
— Eberlen realmente lhe faz bem, Kings Aderio. Agora, para completar, só falta o cessar da busca. Você sabe que deve parar, meu velho amigo.
— Ela não cessará — Aderio falou para si e para a dor já que Mangura não estava mais lá, amparado por névoas flamejantes. — Até que cessar seja meu único fundamento.
Uma risada entoou em algum lugar das cavernas. A luz emanada por Aderio revelou formigueiros e nuvens de demônios espreitando o livro contra uma parede de luz intransponível a estes que a batiam sem cessar. O fogo se apagou. Os demônios sumiram na escuridão, ainda batendo com toda a força que podiam. Quanto à parede, esta resistiu.
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