O Froco: Parte III - Um Estranho na Praça
O relato do que ocorrera na estalagem foi trágico. Como na Apotecária, havia manchas de sangue por todo o teto e nas paredes. A estalagem era uma construção antiga e grande e, segundo o povo dizia, comportaria ao menos oitenta pessoas com folga em suas instalações, e todos, todos os cômodos guardavam o rastro de destruição. Os móveis estavam jogados para todos os lados, voltados para o ar, destruídos, rasgados. No chão, não havia restos dos corpos. Diziam que braços e pernas ficavam pendurados ou enfiados parede afora. Um horror. Ninguém sobrevivera. Disseram ser complicado precisar a quantidade de mortos em vista de tantos membros despedaçados pelo saguão da estalagem: braços sobre os bancos, pernas penduradas nos candelabros, pés distantes das pernas. A estalagem obtivera contornos de açougue e, contra todas as convenções, um especializado em carne humana.
— Foi um esquartejamento horrível, e tinham muitas crianças lá também. — disse o bigodudo, seu bigode engordurado balançava à medida que a barriga roncava.
— Oh, não — suspirou Ék, as mãos lhe guardavam a indignação no rosto. — Josy e o filho também?
— Também... Os restos deles foram encontrados no quarto mestre — assentiu pesaroso o bigodudo.
— Não é possível... Estávamos conversando ontem sobre o que aconteceu ao Mirto. — disse Ék.
— Foi muito pior, Ék — disse a senhora Cremilha. — Havia muita gente na estalagem. O horror pelos cantos... faltam-me palavras.
— E ninguém ouviu nada? É uma estalagem, pelas Fendas! A barulheira que fez tamanha atrocidade e vão dizer que ninguém ouviu nada?
As pessoas se entreolharam procurando uma dentre elas que tivesse ouvido qualquer coisa. Um grito. Uma menção de surto lá dentro. Nada. Os olhares desolados davam o significado. Nada fora ouvido, um sinal ainda pior para Ék.
— Estamos falando de uma taverna! Não passou pela cabeça de ninguém que o silêncio numa taverna poderia significar algo no mínimo estranho? Ela não fecha até o canto do galo!
— Naquela altura da noite, todos nós é quem estávamos dormindo e, muitas vezes, a taverna fica bem quieta pela madrugada sim — respondeu outro homem, magro, de cabelos desgrenhados e feição bela na tez morena e nos lábios envoltos por barba.
Do meio das pessoas, uma criança gritou:
— Eu ouvi luzes!
Em resposta, os olhares voltaram-se para a criança que surgira em meio aos adultos conversando sobre silêncios e sons de uma taverna coberta pelo mais terrível acontecimento na na Cormin que conheciam. Parecia mesmo um sonho ter existido aquela cidade de três dias atrás.
— Não sabe falar, menina? Isso não é hora para brincar! Luz não se ouve! — Era a senhorita Lain quem perguntava, uma mulher bastante difícil de se desafiar, mas que adorava um convite para conversas alheias. Ela tinha os cabelos avermelhados despejados em tranças sobre os ombros.
— Ouvi, sim! — a menina de olhos negros, cabelos de carvão e roupinha surrada continuou teimando. — Porque além delas deixarem tudo claro, tudo parecendo suco de uva, elas também cantavam.
— Cantavam, menina? — sibilou como uma víbora Lain. Franzia o cenho, analisava a menina e sua conduta desaprovando-a pela petulância de falar a plenos pulmões com os adultos — Ah, pronto! Que história é essa? E o que fazia acordada tão tarde na noite? Cadê os seus pais?
Com um sorriso estranho no rosto, a menina apontou para a praça infestada de pessoas.
— Ah, meus pais estão lá na frente da estalagem. Quanto a mim, eu fico acordada quase a noite toda, buscando uma estrela no céu que atenda aos meus pedidos e, de resto mesmo, a história é a mesma que vocês contam e a que eu vi também. Um monte de sangue, sabem? Assim: braço pendurado, perna pendendo na...
Leni saiu do colo de Ék e levou a mocinha para fora com todo o jeito do Grande Mundo dizendo para que ela fosse brincar com as outras crianças ou que fosse encontrar com seus pais. Ék questionava se a história podia ser confirmada, se tinham visto a dita luz durante a noite. Nada importava se a luz também cantava, que tivessem visto a porcaria da luz, pensava o padeiro. Mas ninguém ali viu ou confirmou algo do que a criança disse. Esta juntou-se a outras crianças e começaram a brincar entre o agrupamento de adultos da praça.
Ék, cansado de conjecturas e nada com sentido, disse que veria por si mesmo o local da tragédia. Precisava ver, tinha de saber o que acontecera naquela estalagem, a casa, o lar, as tantas lembranças boas vividas com aquela família guardada agora em seu coração.
Dois guardas de rosto pálido embaixo de chapéu tricórnio de couro e armadura tosca de metal estavam à porta da estalagem tentando impedir que uma multidão entrasse no prédio. Muitos queriam ver o que tinha acontecido lá dentro. Bem da verdade, não precisavam, bastava olhar para uma das janelas, o resto dos corpos pendiam dela bem na entrada. A morte causa uma estranha curiosidade nas pessoas e, pior ainda, o número de mortos, um jubilo inerente ao próprio ser por mais que desmintam que sintam-se assim, enojados, quando presenciam uma cena trágica, na verdade, se vestem de ainda mais curiosidade. Vá entender. Curiosos e larápios. Não à toa dois guardas estavam ali de mãos na cintura e semblante de poucos amigos. Se já não bastassem os corpos e a loucura acontecida naquela estalagem, ainda haveria gente capaz de atos levianos como saques.
— Ninguém entra, Ék — disse um dos guardas mostrando as palmas, um homem muito magro, o manto cravejado de argolas finas de aço, mas sua força estava mesmo na ponta da lâmina de sua espada.
— Preciso ver, Boris! Todo mundo falando tanta coisa sem o maior pingo de noção. Falta eu ver para acreditar! Eu preciso entrar aí!
— Não resta nada, Ék! A estalagem acabou. Acabou, está me ouvindo? O que aconteceu aqui foi uma catástrofe enorme, é esse o nome e nada mais.
E naquele momento, outra pessoa com um capuz no rosto, sentada num banco, a mão segurando a navalha que cortava uma maçã bastante passada, rompeu todos os murmúrios existentes pronunciando-se como o arrepio que sobe pela espinha quando o terror vem a acontecer.
— Não foi uma catástrofe enorme, senhoras e senhores. Foi, no mínimo, premeditado — disse o desconhecido, a voz era penetrante e, o rosto encoberto pelo capuz, transmitia um ar perigoso.
— Nunca te vi por essas bandas. Sabe de algo, forasteiro? — Boris perguntou, o homem, no entanto, continuou cortando a maçã fazendo a veemência na voz de Boris apenas arquear. — Eu lhe fiz uma pergunta, forasteiro. Você sabe de algo? — do sujeito nada veio novamente levando consigo a paciência de Boris. — Olhe aqui, não gostamos de desconhecidos, insinuantes e metidos a inteligentes que aparecem sem apresentarem-se e que não sabem seus lugares frente à uma autoridade!
Autoridade? murmurou sorrindo o rosto por trás do capuz.
O rosto escondido na escuridão do capuz então se pronunciou:
—Gostam é de importunar um desconhecido enquanto algo lá dentro precisa ser investigado... Hm... Algo assim fácil de ser realizado deste lado da porta. Preferível. Muito mais cômodo se comparado a desiludir-se daquilo que amedronta até aos ossos por debaixo da pele.
O desconhecido levantou-se e jogou o capuz que lentamente encontrou refúgio na parte detrás da capa. Seus cabelos negros caíram até os ombros guardados por nada no direito e uma ombreira cintilante no esquerdo à forma de uma concha. Trajava um gibão de cor bege com uma silhueta de lobo bordada no peito; por cima guardava-lhe parte do tronco direito uma malha de aço estranho, muito fino, trançado em auréolas reluzentes embebida da neve suja. Nos pés, botas pesadas de longa caminhada coçavam o chão naquele momento e luvas com malhas de aço mexiam na superfície da maçã por ser comida. O rosto revelou uma barba por fazer da mesma cor dos cabelos escuros agitando-se pelas gotas finas do sereno da manhã e que desciam-lhe esparramados pelo nariz delgado. Não aparentava ser forte, de estatura média, mas também não denotava ser alguém pouco menos do que letal. Os olhos bramiam penetrantes, de uma escuridão medonha, via-se o mesmo no brilho de uma das espadas em sua cintura. Daquele punho, duas cabeças de lobo enfurecidas guardavam os redores. Do outro lado da cintura, uma bainha surrada também ocupada, onde a mão cansada de maçã descansava fazendo questão de segurar o pomo da espada que ali dormia. Pronunciava-se com voz cortante da qual o medo lhe dava razão.
— Querem que repita? Que assim seja: preferem ficar aqui me importunando ou investigar o que aconteceu lá dentro do prédio?
— Prefiro saber quem é você, rapaz, não gostamos de desconhecido metido à besta nenhum!
A voz de Boris anunciou a desconfiança da população, dando-lhes incentivo para desafiar o estranho no ninho.
— Ele é suspeito, Boris! — gritou alguém de algum lugar, sabe-se lá de onde no meio de tanta gente. — Na mesma semana que todo esse abismo de horrores acontece! Não pode ser coincidência!
Logo o coro — regido pelos mais assustados do plantel — entoou por todos os cantos como um grito de guerra:
Foi ele!
O forasteiro esboçou um sorriso cansado e bateu a neve do couro da bota.
— Não me vanglorio da morte de inocentes — respondeu ao oficial, a voz paciente e fria.
— Mas está aqui no exato acontecido de várias! — arguiu o capitão Boris. — Coincidência? Também acho que não!
— Eu diria que um pouco de inteligência e sorte — respondeu o estranho para uivos de perplexidade avultarem mais que a neve bramia.
— Sorte? — irou-se Boris, de pronto apontou a lâmina para o forasteiro. — Não conhece nossos costumes nem nossa gente, rapaz! A morte de ninguém daqui é motivo para felicidade, muito menos de boa fortuna.
— E desde quando sorte tem exclusivo interesse na felicidade? — ninguém soube responder à provocante indagação do rapaz. — Para que parem de me chamar de desconhecido eu me apresento.
Tão de repente, suas palavras pareceram ser seguidas pelo silêncio. Apenas a neve era ouvida e, de um momento para outro, aquela pessoa cresceu diante dos olhos da Cormin que o assistia não como um homem, mas como algo por demais de estranho. Do tipo que não se fala em cidades pequenas. Que se ouve numa taverna como a do bom Barsy. Que só os viajantes entoam pela estrada. Nenhuma voz foi ouvida. Somente a dele e a do céu.
— Chamo-me Kings Aderio. Não me conhecem, nem ninguém nunca me conheceu nestas terras. Minhas origens não dizem respeito a ninguém, apenas minha espada, que continua embainhada, caso não tenham notado. Viajo muito e venho no rastro de algo que assassinou outra pessoa quatro dias atrás na cidade de Venova. Vocês devem conhecê-la bem. Tem gado gordo, pasto rico em trigo num quarto de terra e café em outro; descansa num planalto um pouco mais alto que este, por sob um sereno menos agradável também, devo acrescentar, além de ser uma cidade que não está fazendo comércio com esta. Por que será, me indago.
— Um investigador — Boris riu. — E quem foi o idiota que o pediu para fazer isso lá em Venova? — o questionamento traduziu-se em cuspe e desdém.
— Ninguém — respondeu seca e autoritariamente Kings Aderio, as pessoas sentiam arrepio quando ele se pronunciava.
Boris franziu o cenho, desconhecer algo nunca foi de seu agrado.
— Está fazendo isso por livre e espontânea vontade? — inquiriu Boris balançando a cabeça.
— Não diria por vontade, já que é muito mais complicado... Mas se assim quiser pensar... — Kings Aderio deu de ombros.
— Então por que o faz?
— Entre na casa, oficial. E conversaremos debaixo dos indícios do horror. Ou os ventos da dor lá de dentro o espantariam?
Ao dizer isso um sopro muito forte de vento saiu de dentro da estalagem abrindo a porta ainda mais. Ela voltou ao lugar chorando desesperadamente. Apenas uma pessoa não se assustou com tudo isso.
— Isso é bruxaria! — gritou uma mulher na multidão.
— É da pior espécie! E ele é o bruxo que a atiça em nós! — gritou o homem ao lado dela.
— Ele quer nos possuir! Enforquem-no! — desta vez quem gritou foi alguém lá de trás da praça. Os gritos voaram e colidiram uns nos outros criando uma malha intransponível de sons sem distinção.
O homem não saía de seu tom controlado.
— Se é bruxaria, eu não sei — respondeu o misterioso Kings Aderio. — Mas tenho a convicção a partir das provas ali naquela parede — disse apontando para o sangue tingindo a parede de fora da estalagem. — Que, seja lá o que for, não deve ser tido como uma coisinha qualquer.
— E o que vai fazer? — continuou Boris, a arrogância compensava os quilos a menos. — Um olhar não me assusta quanto menos o que foi que fez isso aí. Vai agir brandindo esta espada fina na sua cintura? E só por que tem caras de lobo pensa que vai dizer autoridades aqui? De jeito nenhum! Não passa de um borra-botas de lugar nenhum. Kings Aderio de onde mesmo? De algum rio morto?
— Seta — respondeu o rapaz contrariando o guarda. A mão esquerda tocou gentilmente na bainha esquerda em sua cintura.
— Seta não é aquela cidade que nasceu há não muito tempo lá pelos estranhos de Beon? Um lugar maltrapilho, nem existe nos mapas ainda, pelo que ouvi falar. E só ouvi foi na cagada de alguém nesta mesma estalagem, nem parece cidade, nem parece sociedade, dizem. O quê o traria para tão longe ao sul de lugar nenhum, Kings Aderio de Seta?
Dava para comer o desdém vagando no ar.
— Trabalho... — respondeu secamente Kings Aderio cuspindo uma semente de maçã no chão. Ela caiu perto de Boris. O homem à frente da porta não gostou nada do insulto.
— De investigar assassinatos em massa com essa coisa fina aí? — disse Boris apontando para a espada na cintura de Kings Aderio. — Você é bom para falar, rapaz, mas com certeza para usar isso não deve ser melhor que um cuteleiro. Agora, dê licença aos profissionais, ou terei de arrancá-lo daqui amarrado. Embora... Nem seja preciso eu me esforçar para tanto — Boris amassou os dedos como Leni amassava o traseiro de Ék, sedutores, querendo beijar algo. No caso de Boris, o querer era o focinho do sujeito. — Ninguém aqui quer você por perto, forasteiro! E se eu descobrir que foi você quem fez isso...
O misterioso Kings Aderio deixou Boris discursando para a nevasca.
A estalagem atrás, uma multidão na frente. Deu alguns passos, o bastante para abrir espaço entre Boris e a multidão. Novamente, ali o silêncio desceu sobre os gritos de bruxaria. Somente o roçar da capa na neve. Nada mais era ouvido, nem seus passos curtos. Quando parou, ergueu sua espada, entretanto, não de maneira qualquer. Na verdade, só a costura da luva do chefe da guarda, Boris, sentira o toque frio da lâmina volitando pelo ar enquanto Kings Aderio fazia uma mesura. Era o que todos viam, não obstante a velocidade com que desembainhara sua arma. A luva caiu no mesmo instante que a ponta da espada encontrou o fundo da bainha sem que ninguém percebesse, um raio invisível em meio à neve. Talvez um gato conseguisse vê-lo. Talvez.
Sorrindo, o rapaz voltou a entoar o frio em sua garganta:
— Digo que irá se arrepender, tão digno e capacitado chefe da guarda de Cormin.
Não esperando pela voz do chefe da guarda, Kings Aderio passou por um cinturão de pessoas até perder-se da vista em uma curva na estrada. Boris continuava absorto com o que ocorrera.
Sobre a luva, aquilo achara ser alguma sorte de falha na costura, culpando o costureiro Ferbo pelo ótimo trabalho. Sim, Ferbo o fizera bem, a culpa era de outro. Todavia, as palavras frias na ousadia do estranho o inquietavam. Deixando suas reflexões sobre o homem preferiu voltar-se para Ék quem estava tão impressionado quanto as outras pessoas.
— Acabou a farra, gente! Agora cada um para seu canto, enquanto os profissionais continuam o trabalho! Todos têm filhos para sustentar, não é, coisas para fazer, vidas para resolverem? Então, apressem essas bundas daqui! Aos seus trabalhos! E você, Ék! Volte para Leni, tenho certeza que ela lhe fará muito melhor que esse sereno. Não se preocupe com mais nada, estaremos aqui investigando.
Ék lembrou-se das palavras do forasteiro Kings Aderio.
— Do lado de fora? — indagou batendo o pé irritado. — A coisa aconteceu aí dentro, me deixe ajudar! É de Barsy e sua família que estamos falando! E de mais tantos...
Bóris interrompeu-o:
— Não, Ék! Seus pães quentinhos nos esperam mais tarde. Hoje é um dia que certamente pede por broa. E você tem broa, não tem? — a insinuação do bolo cremoso apertava o punho da espada à sua cintura. Entendendo a ameaça, Ék apenas assentiu.
— Tem sim, Boris. Tem sim. — Ék guardou os dedos nos bolsos. Os mesmos dedos apertavam a cara fina de Bóris até que murmurasse de dor e fizesse direito seu trabalho.
A senhora Cremilha apareceu naquele momento.
— Deve haver um registro das pessoas que estavam aí dentro. Se encontrarem, ficarei a cargo das elegias e homenagens aos que estavam na estalagem.
— Procuraremos, Sra. Milha... Procuraremos — respondeu Bóris com um sorriso amistoso, baixando também o chapéu tricórnio em respeito à Cremilha.
E se havia algo bom naquela cidade era que todos se voluntariavam pelos seus. Cremilha foi ovacionada enquanto dizia a Ék para voltar à padaria e passar o tempo com Leni enquanto ela mesma procuraria dar notícias para o bom padeiro. Ék agradeceu à amiga de todo o coração e disse que ajudaria com o banquete para as homenagens. Seu amigo Barsy mereceria todo o afinco do mestre padeiro escondido num manto de um excelente cozinheiro.
Enquanto voltava à padaria, percebeu que algo o passara batido lá atrás: ele viu sim o braço de alguém pendurado na janela na parte de baixo da estalagem, mas, diante de Boris, o choque não tinha chegado às suas percepções. Não o braço de "alguém"...
Desnorteado, Ék cambaleou através das pessoas, bateu numa parede, voltou-se contra uma árvore, levantou-se nauseado e finalmente conseguiu chegar à porta da padaria. Antes de virar a maçaneta ele caiu. Seu queixo encharcou-se na água de uma poça de neve derretida que há muito o próprio padeiro queria consertar e, enquanto não o fazia, as moscas faziam seu banquete, refestelando-se das migalhas de pão que ali tornavam todos os dias.
Sentiu-se como uma daquelas migalhas boiando na água. Não sabia como saíra de lá, pois, em instantes, as moscas sumiram e os cheiros de café e roupa molhada de neve pungiram a seu redor. Estava sentado numa cadeira de madeira de carvalho dentro da padaria. Nas próprias mãos tremia um caneco de café coberto pelas mãos de um distinto homem de barba por fazer e cabelos castigados pelo sereno e a neve. Os olhos eram de um negro tão penetrante que ardiam de se ver.
— Você? — indagou estupefato Ék.
— Vi o senhor cambaleando e ninguém atento para perceber o quanto estava nauseado. O café ajudará a revigorá-lo — disse o misterioso Kings Aderio.
— Obrigado, rapaz — Ék pousou o nariz dentro do café para esquentá-lo e também para queimá-lo um pouquinho. Quando era jovem ele e Barsano forçavam o ar com o nariz para fazer borbulhas e, vez ou outra, tomavam o café mesmo que nojento o fosse. Agora ele só queria um pouco de calor descendo pela sua garganta e que o dia fosse obra de um pesadelo.
— Agora que está bem eu tenho algumas perguntas, se não se importar? Garanto que o café será um bom apaziguador para os nervos, com certeza.
— Você parece ser o único que se importa — Ék divagava. Deu uma golada no café olhando para o estranho em seguida. — Mas é jovem, rapaz... a coisa que teria feito aquilo com Barsy e Mirto... não pode ter sido um orc.
Kings Aderio meneou a cabeça em desaprovação.
— Não, meu caro padeiro. Esta não é uma história para orcs.
— Se tem tanta certeza disso, rapaz, então o que acha ser? — o café tinha o poder quase mágico de despertar muitas coisas em qualquer pessoa e, aqui, providenciou o conforto contra os nervos e o tato de ter um desconhecido em quem confiar.
— Eu não tenho tanta certeza até responder-me a três perguntas, insisto, se não se importar?
O café nas mãos gerava a confiança que poderia ter no desconhecido Kings Aderio.
— Pois faça suas perguntas, rapaz.
— Os donos ou donas dos estabelecimentos atacados eram conhecidos uns dos outros e seus?
Ék desenhou no olhar que não entendia a razão da pergunta. Achando prudente, continuou a responder como pôde.
— Eram muito amigos. De fato, nós três éramos. Mirto, Barsy e eu sempre fomos amigos. Desde moleques, quando roubávamos ovos de faisão ou nadávamos no rio.
— E ambos cresceram nos negócios aqui na cidade?
Ék achou que mais essa pergunta não fazia o menor sentido. Desta vez, posicionou-se intrigado, borbulhando no café com os lábios.
— Para quê pergunta isso? O que teria a ver o crescimento dos negócios com suas mortes? Eles não tinham inimigos, isso eu garanto.
— Mas vocês três cresceram — continuou Kings Aderio ignorando a indagação do padeiro. — Os três foram muito bem sucedidos — a insistência pareceu contrariar Ék, entretanto, o padeiro preferiu ceder.
— Crescemos, sim. Tivemos amigos e recursos suficientes para tanto. Colhemos tudo o que plantamos e não passamos por cima de ninguém, absolutamente ninguém, para termos nosso sustento.
— A cidade é um pouco grande, havia outras pessoas aqui com negócios semelhantes?
Mas o que esse rapaz pretende com essas indagações sem sentido, indagava-se Ék.
— Eu sempre fui o padeiro desta cidade; Mirto, o apotecário, herbalista, dono da apotecária local; e Barsy o estalajadeiro. Apenas Barsy quem teve outro concorrente, o dono de uma pousada lá no fundo — indicou uma curva próxima à entrada da estalagem entre a apotecária e uma construção de tijolos vermelhos mais baixa que descia a rua pelo lado esquerdo da estalagem. — Só que não vingou. O dono não gostava da maneira como o povo tocava as coisas aqui.
— Entendo...
Entendo... entendo... Eu é que não entendo nada.
— Agora... isso lhe ajudou em algo?
— Toda informação, por mais insossa que possa parecer, ajuda quando se sabe o quê e onde procurar.
— E qual a sua suspeita?
Kings Aderio levantou-se observando toda a padaria. Olhou dos pães à vidraça; dos panos às luminárias no teto e nas paredes para, por fim, empacar na frente do quadro que Barsy tocara no dia anterior.
— Um lugo.
— Lugo? — Ék achou o nome até engraçado e pigarreou. — Nunca ouvi nome tão besta.
— Fico feliz que não. E... é bem besta. Trata-se de um demônio — disse Kings Aderio calmo como uma lagoa. — Um tipo de demônio, de fato. Nasce de uma emoção muito forte entre duas pessoas, podendo ser por um rompimento, o ódio por outro alguém. A explicação é longa e, infelizmente, meu amigo padeiro, não tenho tempo para as minúcias que ela pede. Quem sabe noutro momento, quando trocarmos um café. Mas agora não. A hora se adianta.
— E o que vai fazer?
Kings Aderio retirou algo de seu bolso deixando o conteúdo cair às suas costas; o pequeno saquinho ficou pousado do lado de um armário perto da porta do lado de dentro da padaria. Ék não percebeu a coisa cair nem o movimento sutil do rapaz enquanto ele saía pela porta.
— Tenho coisas a investigar. Aconselho a ficar em casa, padeiro Ék. E, por favor, esqueça-se de varrer a padaria hoje. Deixe as migalhas cobrirem o chão por um dia e diga à sua mulher para não o fazê-lo também. Este é o conselho honesto de um amigo. E, você, infelizmente perdeu alguns nessas noites. Até breve. E, mais uma coisa... Cuidado com os sons que as luzes fazem na noite.
Dito isso, Kings Aderio saiu deixando novamente um Ék, só e seus pães, junto ao peso da inquietude constante. Antes não tinha, mas, agora, a apreensão o tinha tomado, assim como as mãos fofas lhe dando conforto ao rosto.
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