O Froco: Parte II - A Tragédia
O dia voltou a ser como o anterior em Cormin e, isso, certamente não era um bom sinal, pois no dia anterior os murmúrios vinham do outro lado da praça. Leni, a esposa de Ék, estava do lado de dentro da padaria observando as pessoas aproximarem-se de sua porta.
— Ék? Você está bem? — indagava uma senhora de cabelos bem curtinhos e grisalhos; seu chale caía-lhe pelos ombros com alguns flocos de neve esvoaçando nos fiozinhos prateados.
— À noite nevou? — indagou-se Leni notando a rua com alguns montes brancos, depois, voltou-se para a indagante senhora, a face ainda permanecia confusa. — Ele está, Cremilha. Veio mais cedo hoje para os pães?
— Todo mundo veio cedo, mas receio que não por seus pães, companheiros — disse alarmado um homem rechonchudo, os bigodes bem cheios e engordurados. — Um novo desastre aconteceu, Leni. — transtornado, acrescentou sem nada esconder a voz. — Não ouviu nada?
Leni olhou novamente para o lado de fora, mas só o que via eram muitas pessoas, gente e mais gente e, aquilo por si só, já marcaria uma anormalidade ao dia a dia de Cormin. Ék não conversara em demasiado com Leni ontem. Discutiram por demais, isso sim, na outra noite, e Ék mencionara um misto de pouco e nada do que ocorrera na Apotecária. As pessoas ficaram indignadas com a indiferença do padeiro.
— É nessas ocasiões do não dito que deveria ser dito que o trágico torna a acontecer — disse outra senhora muito bonita, de pele negra retinta, os cabelos volumosos tentando deixar o branco tomar conta de seus cachos conhecida em Cormin pela vocação com os pergaminhos e compêndios da pequena biblioteca. — Nem para dizer à esposa sobre a morte de um amigo, foi-se agora outro.
Outro?
Seguiram-se os relatos do que ocorrera na Apotecária. A mente de Leni trabalhou trazendo-lhe recordações de Mirto e seus familiares. Precisou apoiar-se em algo, suas pernas pareciam ter sumido do corpo, o chão ficava mais próximo do coração do que dos pés. Por que Ék não me contou sobre essa tragédia? O pobre Mirto, a pequena Evelin... Mara... minha amiga, Mara? Leni, assustada e cheia de tristeza, indagava-se, com parte de seus pensamentos, o que teria ocorrido com a família de Mirto. Sua cabeça girava, havia tanto por assimilar: refletia sobre o aglomerado de pessoas lá fora; tentava associar o horror passado pela cidade duas noites seguidas, indagando-se acerca dessas duas noites, o que a levou para o outro ponto distinto da fala enigmática que ouvira: o amigo mencionado há pouco. Que outro amigo?
Quando Ék apareceu à porta esfregando as mãos cheias de farinha dentro dos bolsos do avental e as pessoas o viram, tornaram-se gritos o que eram antes murmúrios. Estava no início da manhã e Ék acostumara-se com a chegada de gente muito mais cedo do que o horário habitual em Cormin, pois o dia de ontem fora assim, e Cormin vivia sendo igual ao dia que já acontecera. Isso sempre foi assim.
Acenando devagar, desejou bom dia a todos e mostrou os pães na bancada presumindo ser isso o que buscavam. Quase isso, ele só esqueceu-se de que sua esposa estava em meio ao alvoroço ordenando às pessoas que entrassem uma por uma numa quantidade máxima de treze pessoas na padaria. Algumas sentaram-se nas mesas e, sem demora, receberam xícaras de café fumegante. A gaveta não tinha tempo para moedas. O aroma convidativo de café da manhã trouxe nova vida à padaria e nova vida aos rostos corados munidos de bocas sedentas para vomitar fofocas trágicas ao bom padeiro.
O discurso era sempre o mesmo, à exceção de uma expressão distinta, um respirar resfolegado, ou um olhar desorientado. Todos pediam que o bom padeiro fosse forte. Uns batiam as mãos em suas costas como quem diz: vai ficar tudo bem. Ék se perguntava o porquê de tudo isso. Sem respostas, tendo apenas vagos desejos, olhava com a mais confusa expressão de desconfiança.
— O que passa hoje, gente? — indagou Ék.
— Foi horrível, Ék — disse o homem do bigode e barriga volumosos com uma boca de lábios prontos a explanar o que quisesse e como quisesse. — Pior do que da última noite! Há restos de gente por toda parte. Até o cocô da criança deles tem espalhado pelas paredes, Ék. Imagine o desespero! E o sangue?! Imagine o horror! Como imaginar, homem?... Como?
— Restos... Cocô? Que merda é essa?! E "deles"? Deles, quem!? De quem estão falando?
Com pesar, foi a senhora Cremilha quem anunciou a trágica notícia:
— Barsy, amigo... Nosso amigo Barsy foi assassinado à sangue frio ontem à noite junto à família e a todos que ali estavam. Um banho de sangue, Ék... Um verdadeiro banho de sangue como nunca esta cidade o viu coisa parecida.
Agora era Ék quem não sentia as próprias pernas. Os braços cruzados abrigaram-se nos bolsos do avental. Não tinha equilíbrio para sustentar a surpresa. Pisoteou o ar a esmo, caiu em cima de alguém derrubando cadeiras e uma mesa; outro alguém tentou segurá-lo e à pessoa que amaciou a sua queda. Leni, apressada, trouxe-lhe uma compressa — um pano encharcado de água morna com loção de alfazema, presente do bom amigo Mirto — e colocou no rosto do esposo. Ék estava pálido, os olhos giravam mesmo que não parecesse a quem os via. Sua mente sussurrava a si: Barsy não... não o bom Barsy... Já foi o Mirto... O Barsy... O... merda, não pode ser!
Foi vez de Ék pensar nas várias coisas que ouvia. Sua mente preferiu o barulho distante de uma porta se fechando. O ontem pareceu distante demais, frio demais. A maçaneta girar, o toque na pintura com zelo. Dolorosos demais. Mas ateve-se apenas às reclamações de sua mulher. À voz dela. O medo da perda de alguém próximo avivou nele o medo da perda de uma alguém a qual via todos os dias em sua cama. Um lugar quentinho, abrigada em seus braços, no bolo dos cobertores. Um glacê enrolado em pelúcia.
Leni. Era a ela quem amava, era nela que pensava. Interrompeu-a delicadamente dando-lhe um beijo sôfrego tendo fim na ardência de uma mordida cúmplice, chorosa. Ela bateu com as mãos nos ombros de Ék e, juntos, trocaram algumas lágrimas sofridas. Sal e açúcar em sua dor. O quadro na parede continuava a observá-los.
Com uma pessoa que não mais raiaria o dia.
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