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A Vela Queimando ao Mar: Parte VII - O Fogo e o Mar


     O que estava se debatendo tinha beleza, raiva e desespero, e todos na mesma medida. O sangue que deixava na água enquanto apanhava das ondas e se debatia indicava que estava presa em algo mais do que uma rede. Os cabelos negros eram uma bagunça no meio da água, o corpo estava todo ensanguentado enquanto a barbatana tentava se desvencilhar do gancho que a prendia. O mar não ouvia dela nenhum canto e Aderio sabia que a sereia não sairia dali sozinha.

     Guardou boa distância observando ela agonizar enquanto Lahana, indignada com a decisão do dracus, se esforçava para ajudar a sereia.

     — Não vai ajudar? — indagou a capitã.

     Kings Aderio já tivera contato com outras sereias. Há muito uma delas, certa rainha dos mares dos arredores das Narvais, fora capturada por uma embarcação comerciante que viu seus tripulantes morrerem. Os corpos foram cortados rápida e furtivamente. A rainha fora colocada com muito custo dentro de um tanque usado para colocar os caranguejos coletados no mar. Ele ajudou a rainha a não matar mais ninguém. Mas as mortes continuaram envolvendo seus passos.

     No momento em que se aproximou o belíssimo e desesperado ser jogou um jato de água forte. Lahana foi alçada pela água e tombou ali mesmo. A ira da sereia ao ver Lahana era tal que se esqueceu por instantes de que estava presa. A sereia empunhou garras que estavam escondidas em suas mãos. O ar foi cortado pelas navalhas zunindo ferozes.

     Ao lado de Lahana o mesmo ar ficou quente. Eram as mãos de Aderio que ardiam em fogo. Era uma esfera de chamas atraentes, envolvendo o ar. A sereia se interessou por aquilo. Era bonita a esfera, uma bola queimante nas mãos de um homem. Seu interesse cessou quando percebeu que aquela coisa lhe dava medo, pois os olhos do dracus brilhavam.

     — Você vai matá-la? — questionou a capitã indignada levantando-se da pancada. — Ela precisa de nossa ajuda!

     Aderio novamente não se importou com as objeções de Lahana. Ouviu o fio de duas espadas tocarem o ar e mesmo assim continuou fitando a sereia. De repente, o barulho se vestiu de silêncio e a sereia não se debatia mais. Estava fraca demais. Parecia na verdade um ser vencido entregue à sorte da morte.

     Vinha o mar e suas ondas quebrando no litoral. E também vinham os passos cambaleantes de Lahana, pega completamente desprevenida pelo ataque da sereia. Aderio, por sua vez, não mirava a sereia. Em vez disso, lançou sua chama na rede. Esta se desfez em dois pontos em que a água batia levemente. A barbatana da cauda continuava presa. Exausta, a sereia não podia lutar contra o mar revolto; já tinha perdido muito sangue, seu corpo pedia por descanso e algum zelo da areia fofa. Prontamente, ao sentir um pouco de liberdade enfim, se arrastou até a areia. Ambos, Aderio e Lahana, se puseram a cortar a rede. Era feita de cordéis de prata, e quanto mais ela fizesse força, mais rápido perderia sua energia vital. Prata, estanho, bronze, eram materiais que as sereias e a maioria dos seres do mar odiavam. Isto segundo os compêndios de alquimia lidos por Aderio há muito tempo, quando Seta, sua cidade e reinado, nada mais era do que um povoado. E agora via com seus próprios olhos o quanto letal a prata poderia ser para aquela espécie.

     — Aderio — Lahana estava maravilhada e tentou tocar nos cabelos da sereia que chorava como uma criança, baixinho, de jeito pausado, ranhoso. — É uma mulher, Aderio. Como é possível, elas realmente existem.

     — Existem sim, e já adianto que trolls também. E outros monstros mais que você já ouviu também.

     — Que coisa horrível, como alguém poderia fazer algo contra ela?

     — Não viu o tamanho das garras? As presas retráteis? O quão afiadas são as escamas? Cuidado, Lahana, elas são assassinas.

     — Ela só quer ajuda, Aderio!

     À volta o mar se agitava um pouco. Tensionava contra as rochas. Tensão também vinha de um tremor de impacto numa poça logo atrás do dracus que enfim se decidiu:

     — Vamos ajudá-la — apressado lançou um chicote de chamas contra o restante das redes. As chamas subiram e caíram dentro do mar. Mesmo na água continuaram a queimar exalando vapor e odores. Nenhuma sereia seria pega novamente, tinham certeza disso.

     Talvez fosse o fim para a sereia, no entanto. Tremia demais, qualquer esforço era uma provação para seus músculos. E o olhar de fúria que antes encarava Lahana e Aderio deixou sua rigidez passando a ser um olhar de pedido, compaixão. Sozinha não aguentaria mais tempo.

     O dracus aproximou-se mostrando as mãos. Mas ela não confiava nele e preferiu se recolher em seu próprio abraço. Lahana disse para que confiasse no rapaz e a sereia depois de relutar um pouco deixou Aderio tocar-lhe na barbatana caudal. Um brilho incandescente fez com que chorasse ainda mais e mostrasse as garras. Os olhos de Aderio brilhavam fazendo com que ela desistisse de qualquer empreitada contra o dracus. Além disso Eberlen estava embainhada, e uma arma guardada é sinal de paz. Ela levou as mãos à boca mordendo com força e fazendo um tremendo estrago. Lahana e Aderio tiveram a mesma ideia, contudo a capitã fora mais rápida em tirar um pedaço de pano para que mordesse e não se machucasse. Ela retalhou o pano com três mordidas enquanto o dracus trabalhava. Por fim, Aderio abriu um de seus frascos com um líquido de cor transparente. Quando a gota caiu a sereia ralhou furiosa buscando refúgio desta vez para o mar. Aderio ficou irritado, mas deixou a sereia ir.

     — O que você colocou nela?

     — Um cicatrizador. Chama-se rabo de lagartixa e não é à toa, essa coisa pode recuperar um membro. É a última de meu estoque e ela vai e me faz isso.

     — Arrependido?

     — Um pouco, ela nem agradeceu — bufou contrariado.

     — Somos tão iguais. Um detalhe nos difere, apenas. E morre de medo de nós.

     — E eu dela — Aderio mostrou as costas para Lahana. Ela ficou inconformada com o ferimento ali.

     — Quando foi isso?

     — Agora, ela é muito rápida e é da natureza dela. Sereias devoram homens, mulheres, crianças, baleias, tubarões. Não se engane, elas não são princesas indefesas. Diria que são exemplo de mulheres e fêmeas fortes. Se fosse mulher e quisesse dizer sobre minha força, usaria a expressão "tão forte quanto uma sereia".

     Lahana adorou ouvir aquilo de Aderio. Uma vez ouvira o mesmo sobre ela. Uma vez que ambos tentam esquecer, páginas queimadas na memória, cujo fogo de quando em quando quer arder. Entre giros de uma dança nada combinada, as taças em cristal se tocaram, a noite seguia seu curso harmônica. E de um instante para outro a luz entre os dois acabou, pois Lahana agira de maneira brusca com Aderio e ele devolvera a cortesia no mesmo tom. Uma história de dois lados certos e sem consenso.

     Da sereia já não existia mais nenhum sinal, então seguiram o caminho de destroços ao longo da orla da praia. O ferimento nas costas de Aderio não melhorava nem piorava, mas sangrava e isso era um péssimo sinal. Quando ambos estavam próximos ao limite criado pelos pináculos rochosos avistaram novamente a sereia. Mas foi uma visão muito triste, pois ela chorava debruçada à metade anterior do corpo de outra sereia. Lahana levou as mãos à boca, estava furiosa, as espadas coçando para rasgar o responsável pela atrocidade. Ela se aproximou das duas levantando as mãos em sinal de calma. A bela sereia não fez nada quando Lahana se aproximou. Aderio percebeu que a barbatana dela se movia de maneira mais natural agora. Ao menos isso funcionara, constatou. Ficou enfurecido de ver tanto sangue no caminho e tantas partes de sereias por todos os cantos. Que fim horrível teriam levado estas sereias, era difícil mensurar.

     Por detrás de um choro, uma voz suplicou.

     — Ajude — pedia a sereia numa voz tão melodiosa quanto fosse impossível que rouxinóis conseguissem tal poesia. — Por favor... ajude-as — Lahana puxou a mão da sereia.

     — Nós ajudaremos, custe o que custar.

     Aderio fez a fumaça tomar forma da vela de coral.

     — Isso, foi você quem o fez?

     A sereia chorou baixinho apontando com o rosto desolado para a outra sereia morta.

     — Ela tentou  disse beijando o rosto da outra sereia.  Ela avisou as outras e veio lutar... Eu o vi erguê-la, bater com o corpo dela naquela pedra. Ele espremeu... Eu nunca vou esquecer o som. Eu tentei fugir, mas a armadilha dele é muito forte, nos atordoa. Nos dá tristeza ficarmos tão presas, sem nada podermos fazer.

     — A prata causa vibrações na água que só vocês podem sentir ou ouvir — disse Aderio. — Por isso é tão letal, vocês ficaram desorientadas e foram atraídas pela rede. O assassino é astuto.

     Lahana tentou reconfortar a sereia. Ela balançou a cabeça.

     — Mas agora não há mais nenhuma rede. Você está livre.

     — Ele está matando a todas nós. Ele não cessa, só esta semana foram nove, mas já perdi a conta de quantas terminaram devoradas. Tentamos impedi-lo, mas aquela coisa horrenda... Tem tanto ódio no olhar. Cortamos seu corpo, mas ela não sente dor. Nossos gritos não fazem sequer o atordoam. Não me matou porque era a isca da vez, mas logo viria.

­     Aderio pensava que só o fogo poderia fazer algo contra o corpo de Bohun.

     — Ele as odeia e não cessará enquanto não terminar com todas vocês — disse friamente Aderio.

     — Então matem ele, pela luz dos corais do oceano, matem-no e salvem minhas iguais.

     — Não sem antes você fazer algo por ele — disse Lahana para a sereia apontando em seguida para as costas de Aderio. Para seu espanto e o da sereia o ferimento fora embora deixando três rasgos grandes na vestimenta. — Você se curou?!

     — Isso não importa agora. Temos algo mais urgente — Aderio liberou Eberlen de seu sono, sacudiu-a de um lado a outro diante da entrada de uma caverna repleta de sangue e dor. Lá dentro algo urrava sem saber que um dracus vinha. — Ele acordou — disse Aderio para Lahana e a lamuriosa sereia enquanto descortinavam-se as rochas lá dentro da caverna.

     Era uma floração alta, mais de vinte metros de altura, de morcegos voando, com sangue nas paredes, excremento pelo chão e seres rastejantes em todo lugar. A escuridão era alta na caverna.

     Aderio levantou chamas em suas mãos revelando o sangue no chão e a sombra de Lahana nascendo e morrendo a cada curva. Estava muito nervosa, claro, devido ao sofrimento causado à sereia e tantas outras mortas por Bohun. A caverna descia levando consigo os sons de água caindo pelas rochas além do farfalhar das folhas por um vento forte proveniente do fundo, vindo de alguma fenda. Vem um lugar mais amplo com a possibilidade de estar próximo a um rio, disse Aderio. Lahana teve o mesmo pressentimento e ainda acrescentava um cheiro pútrido ao ar. Aderio odiou esse cheiro, se fosse um certo Bereor, seu companheiro, teria dito ser cheiro de humano e peixe podre. À frente, logo após a caverna se abrir em uma grande área completamente tomada por destroços, as paredes estavam pintadas. Mas não era algo lindo de se ver. Era grotesco! Um cenário de sangue, único insumo que o gigante teria em abundância nesta caverna horrenda; os sinais da carnificina podiam ser vistos por membros jogados, cabeças empaladas na pedra, barbatanas de diferentes tipos ficavam dependuradas em enormes ganchos. E o pior:

     — Elas ainda se debatem — Lahana sussurrou, e como lhe pesava as palavras.

     A área ao fundo guardava uma fenda grande com uma coisa brilhante triturada. Aderio odiou ver olhos esmagados na parede ao atravessá-la.

     Aproximando-se do extremo das paredes ouviram algo estranho. Sons de uma voz forte gemendo enquanto rasgava algo. Aderio sabia serem de mordidas em tenra pele. Lahana deixou uma lágrima cair, uma gota desaguando cuja causa Aderio não saberia dizer se ela o fazia por raiva ou tristeza. O tempo urgia, precisavam encontrar logo o paradeiro do gigante e dar fim nele. Mas antes necessitavam de um plano.

     — O que tem em mente? — indagou Lahana.

     — Pelo barulho lá embaixo a gente não pode demorar. Ele deve estar se alimentando das sereias.

     — Como sabe disso?

     — É ruim o que vou dizer, mas esse barulho que ouvimos, esse eco estranho, é o eco de alguém mastigando algo, e pelo ar à volta com bile, sal e sangue deve se tratar de outra sereia.

     — Sente isso só em respirar?

     — Não há tempo para falarmos disso, Lahana, mas, em resumo, os sentidos dos dracus são extremamente aguçados.

     — Isso me basta — disse Lahana empunhando as duas cimitarras. Movia-se feito um gato. A origem dos baforejos horrendos da caverna estava para ser revelada. O caminho abriu-se com luz, mais espaço, destroços espalhados pelo chão e as paredes, e um tremendo ser permanecia sentado de frente para quatro grandes sereias. Sim, a raiva queria agir mais do que a prudência. Queria despedaçar, queria rasgar, queria fazer o monstro sentado ali à frente sofrer. Mas ele chegava ao alto da caverna se levantasse. Se quisesse, seus braços largos tocariam na ponta dos dedos de uma extremidade a outra da caverna. As pernas moviam-se com alguma forma de couraça cobrindo-as como a barba o fazia agora, caindo numa cascata nojenta de pelos e sangue. 

A coisa gorgolejava. Grunhia de forma que o ar se enchia de cheiro de carne e sangue. Sim, era Bohun. O enorme gigante odiador das mulheres estava de costas para Ade e Lahana.

     Duas das sereias tinham os cabelos negros, uma outra tinha perdido parte dos cabelos louros e sangrava muito com um ferimento nos ombros, e a outra tinha o corpo negro de betume lustroso. Todas elas fascinariam qualquer pessoa que as visse. Sacodiam as barbatanas coralinas contra a rocha que cheirava a uma variedade de sangues. O dracus precisou arenques, espadartins, tubarões, narvais e sereias. Além da beleza em comum, os rostos exasperados das cativas contemplavam a dolorosa morte de outra sereia devorada na frente delas. O sangue voava e o coração de Aderio rugia. Não há tempo para planos.

   Kings Aderio observava aquele colosso de costas. Lahana estava em sua retaguarda, não a pedido dele. As sereias observaram os dois se aproximando em meio ao pranto. Nada o fizeram, e era óbvio que não se tratava de amigos do gigante. Mas Kings Aderio não se aguentava mais. Furtar-se de segurança enquanto algo inocente morria já morta na boca de um assassino era demais para ele. Ele que tinha um olhar diferente para a morte, e que buscava o sopro que a venceria. Foi aí que o gigante gargalhou. Ensejo para a espada ensaiar seu uivo sangrento.

     Uma chama envolveu a espada de Aderio e ele a sacodiu no ar. Fagulhas viajaram e o vento buscou atrair o gigante pelo som do fogo. Um monstro alto de coloração azul pétrea com um dos braços, o maior, e as duas pernas, cobertos por algum tipo de metal encrustado de espinhos e correntes. Havia muito sangue pelo corpo e o resto de uma barbatana rasgada pendia em seus ombros. Só o músculo do ombro do monstro daria um Kings Aderio de tamanho. E um bastante irritado.

     — HEY! — gritou o dracus. Sua espada rasgou o ar em chamas; Eberlen beberia o sangue de Bohun em poucos instantes. Era uma promessa! Ele segurava um pedaço de sereia nas mãos virando-se para Aderio. Lahana veio logo atrás do dracus brandindo as duas espadas para a loucura do monstro mostrando a cara do tamanho de um grande boi.

     As mãos do gigante vieram ao chão, uma fúria que fez a terra tremer.

     Bohun
era apenas ódio e imenso. Engano de quem pensasse que se moveria com dificuldades. Pelo contrário, era rápido e seus braços diminuíam ainda mais as distâncias entre os combatentes. Cada batida no chão um tremor de impacto colossal. Não só estemecia a terra como o ar socava em lufadas. Lahana nunca tivera tamanho inimigo em sua frente. Parecia um gato dividindo-se em desviar-se de investidas e arranhar o monstruoso ser com a ajuda de suas duas garras. Kings Aderio dividia com ela a atenção de Bohun. Ao se afastar, olhou para as espadas de Lahana que imediatamente ferveram. A capitã do Raspadora de Corais não vacilou com o toque mágico em suas espadas. Elas luziram cortes no monstro tirando dele sangue púrpura acre a cada investida bem sucedida; as gotas caídas no chão eram quentes como chama viva. Aderio por sua vez aproveitava-se do ódio do gigante com a capitã do Raspadora e lançava nos pés dele bolas incandescentes. Quando Bohun dançava, partes do teto vinham ao chão.

     Aderio lançou uma das chamas fazendo o gigante cambalear e receber duas investidas num salto mortal de Lahana enquanto girava o corpo e a espada; a segunda chama que veio em espiral fez o gigante cair de bunda no chão. O tento resultou numa fissura e lascas de pedras muito afiadas. Bohun foi inteligente nesse momento, balançou o corpo pegando muitas pedras em sua mão e jogou-as de uma vez. Vieram com força tremenda, não encontraram Lahana, mas a parede ganhou novos contornos de destruição onde há pouco ela estava. Bohun não se importava com Aderio, só pensava em Lahana, queria amassar Lahana, devorar a mulher que ousava erguer uma espada para aquele rosto medonho. Pior então com duas e carregando o fogo de um dracus.

     Atento às opções que só diminuíam, Kings Aderio tentou outra coisa enquanto o gigante buscava dar um soco em Lahana. A mão de Bohun passou por um triz de não esmagar o tronco da guerreira. Kings Aderio por sua vez rodopiou e se lançou contra as pernas de Bohun. O gigante olhou para aquela coisa pequena a seus pés pouco antes de uma lâmina de chamas decepar-lhe três dedos do pé esquerdo. Uma baita confusão se iniciou banhada em sangue púrpura escaldante com o gigante pulando de um lado a outro batendo o corpo onde encontrasse uma superfície dura. Bateu as costas, bateu o rosto, bateu os joelhos e trouxe pedras pontudas do teto da caverna a baixo. Lahana temeu pelas sereias sem conseguirem se mover do lugar. Furtavam-se a assistir a batalha que só ficava mais violenta.

     Contra maiores riscos, bateram as barbatanas o quanto puderam para fugir das paredes desmoronando. A luta estava intensa, e os dois combatentes tinham que estar atentos a tudo, como se Bohun com seu gigantismo estivesse em todo lugar. Numa demonstração do que pode um dracus, Aderio agiu lançando-se contra uma rocha sedenta por levar as sereias. Lahana não acreditava no que via, a rocha era grande de mais para um homem normal segurar com os próprios braços. Ele se ajoelhou para suportar o peso. Mesmo assim as sereias foram lançadas com a força do golpe de ar que a imensa pedra desferiu. Ade gritou tanto, sua garganta queimava, como que banhada em conhaque. Assim como suas pernas a formigarem de tanto peso que segurou com as mãos. As sereias estavam bem ali perto dele, poderiam arrancar-lhe a pele com suas garras, mas não o fizeram, preferiram admirar tanto a ele quanto Lahana. 

     Desta vez Bohun esqueceu-se de Lahana e foi atrás de Aderio. Talvez percebera que o dracus estava causando demais para um pequeno homem. A enorme pedra no chão, o dracus girou nos calcanhares, descreveu uma pirueta e parou nos ombros do gigante quando este derrubou um soco no chão. Ao cair nas costas de Bohun, fincou com força a espada. O corte deixou-o encharcado de sangue púrpura gosmento. Foi a vez de Lahana agir correndo até a cabeça do gigante caído. Desferiu-lhe um corte cruzado com as duas espadas; mas enquanto as espadas cortavam, as mãos de Bohun moviam-se velozmente tentando agarrar a capitã que passava por debaixo dele. Bohun urrou furioso. Cansado de bater no chão bateu no próprio peito fazendo com que som e ar socassem seus oponentes; Tambores violentos ecoando nas paredes da caverna. Aderio já tinha visto isso nos Gorilas darantalas, no leste da Ilha das Ravinas.  A história que Ladenio tratava por O devorador de cavalos.  Mas agora não era tempo de passados. Não era tempo para nada. Temia pelo que poderia vir a seguir. E veio.

     Maldito Iama, disse Aderio lembrando-se do mestre de Bohun.

     Bohun juntou as duas mãos como um martelo batendo-as com toda a sua força contra o chão. Aderio não pôde precisar exatamente o que veio antes, se o vento ao cair dos braços, ou o tremor em onda. Tal prece do gigante desceu uma área imensa de solo. Agora era a caverna que sofria por continuar em pé.

     Tudo veio ao chão e desta vez Aderio temeu pelas sereias, mas àquela distância não podia fazer muito, pois uma nova onda de pedras vinha rompendo as possibilidades de fuga. Aderio girou a espada duas vezes lançou um ataque a esmo para longe, o que o impeliu na direção de Lahana. Ela já estava saltando, mas se não fosse ele empurrar-se contra a capitã, os dois seriam rasgados pelo golpe. A cortina de poeira subia, pedras caíam, uma cascata lá fora rugia e Bohun não cansava de atropelar.

     Saíram Aderio e Lahana um para cada lado. Pela primeira vez o gigante ficou confuso sem saber a quem atacar. As cativas estavam mais ao lado. Kings Aderio já vira muitas coisas terríveis em sua vida, mas o que vinha era pior do que a prece ao chão do gigante. Para desespero dos dois Bohun pegou uma das sereias em suas mãos. Primeiro pelos cabelos louros, depois pela barbatana. Ele puxou. O esforço de fuga pela sereia foi inútil, inútil, inútil. As garras quase prenderam-se ao chão, não fosse o poder descomunal do gigante. Mal sabiam que o debater seria o limiar de algo terrível. O coração bateu muito forte, dava para ser ouvido pela caverna contrastando com o belo som da cascata. Aderio só teve um segundo para encontrar os olhos dela. Apenas um segundo que nunca em sua vida esqueceria. 

     Ele sabia, ela talvez não. 

     O tempo pareceu parar naquele momento. 

     Só um segundo. A mão de Bohun ao alto, seu sorriso era vil de tão largo levantando a sereia sem dificuldades. Como massa tenra de pão por ser sovada. Um segundo que durou horas na mente de quem não acredita. Pois no instante seguinte a mão desceu, veloz, violenta, queda brusca, e o que segurava era uma ser ainda vivo que explodiu numa nuvem de dor e lágrimas. 

     Talvez o pior foi o emudecer quando chegou ao chão.

     As sereias ao redor não acreditavam em tamanha violência. Seus cantos resumidos agora a berros. A nuvem de sangue era uma cortina de dor. O tempo de um segundo durou mais do que pudesse ser suportado. Lahana levou as mãos à boca. Tremia com o banho terrível que chegara até seu rosto. Via o sangue nas mãos. Aquilo era impossível, impossível, inconcebível! Bohun conseguira o que queria, deixando a gigante capitã do Raspadora de Corais, pela primeira vez em sua vida, de joelhos contra um inimigo. Lahana não suportou ver a sereia morrer de forma tão brutal. Por instantes entrou em choque. O gigante não contente continuou tentando acertar Lahana com o que sobrara da espinha dorsal da sereia e ela teve de se esquivar ou morreria. Ossos voaram, membros tornaram-se projéteis.

     E o dracus, enfim, acordou.

     — DESGRAÇAAAAAAADO!!! — O grito não tinha voz de Aderio, o homem estava envolto pelo fogo de três cores. O vermelho cobria suas vestes, o branco subia em espiral pelo seu corpo e o azul tomava conta de seus cabelos esvoaçando. Lahana pôde ver brilhar em seu rosto. Sim, lágrimas brilhavam mais que as chamas. Seus fogos buscavam chamar a atenção do miserável. - LARGA ELA! — Mesmo que em vão fosse largar o corpo inerte, Aderio rugia desafiando ao ar e a Bohun.

     Ele veio para cima de Aderio, um golpe certeiro com a sua clava de restos de sereia descia na mesma velocidade de ódio impressionante. Lahana gritou por Aderio, mas o dracus não saía do lugar. Ele ficou ali girando a espada. O braço do gigante despencou e Eberlen, assim como seu mestre, despertou.

EBERLEEEEEEEEEEEEEEEEEN!

     Aderio gritou levantando Eberlen na direção do gigante. As chamas que o envolviam ergueram-se violentamente causando uma tempestade de flamas poderosa, um turbilhão de três cores em infinitas nuances em ascensão.  A fumaça junto ao ar e às chamas se fez em raios. Lahana a certa distância pensou ver lobos girando ao redor de Aderio, avançando contra o monstro, atacando o gigante.

     O dracus em chamas atravessou o ar subiu pela mão do gigante rasgando-a com Eberlen até os ombros. Um briho branco surgia dos cortes onde Eberlen cravava suas presas. Com o movimento dos ombros de Bohun, Kings Aderio lançou-se para o ar descrevendo uma pirueta e caiu com Eberlen de frente para o braço de metal do monstro. Um monte de coisas voou: partes de metal, sangue, ossos, e o membro caiu depois do dracus chegar brilhando ao chão.

     Kings Aderio deixou o gigante entregue à sorte em suas costas.

     Lahana, atenta ao momento, passou pelo dracus e subiu no monstro cravando as duas espadas fundo nos olhos de Bohun. Elas não estavam brilhando mais. As espadas retorceram dentro do crânio do gigante rasgando de cima a baixo no rosto em dois cortes verticais. Lahana dividira o rosto de Bohun em duas partes horríveis.

     Tamanha era a sua raiva. Tamanha era a sua força. Ela, que já estava infestada de sangue, banhou-se dele. Mas não se importou com isso. Era-lhe bom aquele calor, aquele sangue percorrendo seus braços, lavando-lhe os seios. Um dos olhos de Bohun estava na ponta de uma das espadas. Aderio aguardou pelo momento em que visse a sua capitã mordendo o imenso globo branco azulado. Momento que não veio. Bohun, o odiador de fêmeas, depois de muito causar por tempos longínquos, jazia no chão sem vida.

     Ainda em chamas, Aderio parecia estar fora de controle. Lahana observou-o enquanto verdadeiros lobos de fogo giravam ao redor do dracus. Ela e as sereias ouviam o rugido de algo poderoso e Lahana jurava ter visto cinco homens com aparência de fantasmas, de tamanhos diferentes e de formas diferentes levantando o dracus. O piscar de olhos da capitã do Raspadora fez tudo aquilo sumir. O dracus ofegava e babava varrendo o campo de batalha atrás do adversário caído. Bohun movia seu corpo de maneira convulsiva.

     — Ainda não acabou — lamentou o dracus.

     — Ele já está morto, Aderio — tentou Lahana. O dracus foi frio.

     — Morre quando restar apenas pedaços. É um constructo, não é vivo, não tem vida, só uma odienta determinação! Continuará movendo os membros enquanto restar mecanismos nessa coisa. E não é ele que me preocupa. É o mestre dele que pode vir. Eu realmente adoraria estraçalhar ele eu mesmo, apesar das minhas condições. Guardarei o nome, mas não direi ele aqui. Pode até mesmo ser um encantamento que o reconstrua e traga de volta ainda mais perigoso.

     — Pensa em tudo mesmo, dracus. Como minha prima me dizia.

     Pela primeira vez, Lahana mencionava sua prima, a princesa Bellara. Era doloroso para os dois lembrarem da princesa. Um assunto que para os outros dracus também não era simples de ser cantado. Faz parte de outra história a um dia ser recontada.

     Chamas formaram-se nas mãos de Aderio novamente. Pediu para que Lahana se afastasse e jogou junto ao fogo um frasco aberto com líquido cor de prata no gigante.

     — Eu já lhe disse o quanto odeio esses feiticeiros? — a combinação tocou no chão explodindo o gigante numa nuvem de sangue e projéteis metálicos. Bohun e o que restara dele estava longe das sereias para sempre. Olhavam com júbilo o fim daquele ser desgraçado.

     Lahana e Aderio voltaram-se para as cativas.

     — Estão salvas — disse Lahana aproximando-se. Elas agiram com tranquilidade e submissão. Restava uma de cabelos negros, a de pele belissimamente negra e a de cabelos louros, quase escalpelada. Olhavam desoladas, as três, para a mancha abominável no chão onde o gigante batera a outra sereia.

     — Sinto por ela — disse Aderio simplesmente. — Sinto de verdade. Um erro não termos vencido ele antes.

     Mesmo com o tento as sereias ainda duvidavam de Aderio e Lahana. O dracus mencionou a sereia do lado de fora da caverna. Foi aí que elas assentiram querendo saber da companheira. Viam as novas com alegria, pois esperavam que a sereia já estivesse morta há muito.

     — Ela está bem — confortou Lahana. — Agora é a vez de vocês. E como vamos levá-las até lá fora?

     Aderio olhou para a cascata. Pensou no vento que ela trazia lá de fora afastando o cheiro podre de morte. Não havia muito o que fazer. Eram três sereias e cada uma delas mediria dois metros e meio só de corpo. Hm, dos destroços poderíamos usar tábuas e barris, mas isso demoraria muito tempo, não temos pregos, nem cordas, nem nada. Não posso ir até a Fenda, nenhuma delas suportaria o enxofre e a carbonização. Hmm, saltar da cascata também não é possível, estão fracas, eu estou fraco, o impacto iria matá-las, me deixar aleijado e as pedras afiadas moeriam a mim e Lahana até os ossos. Às vezes o fogo não é a resposta. É, não tem outro jeito.

     — Lahana! Teremos de carregá-las para fora da caverna.

     — Daqui até lá em cima?

     — Poderíamos fazer algo com os destroços para levá-las, um tipo de transporte com barris, mas nada pode ser usado, só madeira podre tem aqui; saltar da cascata não é uma opção. — ponderou o dracus. Lahana aproximou-se das sereias perguntando se aceitariam dessa maneira. Aderio foi frio novamente. — Ou aceitam ou ficam aqui nesse lugar desprezível, não há outra opção.

     Elas se entreolharam assentindo com a cabeça e cantaram as três juntas.

     — Assim como quiser, será.

     O canto lhes causava sensações boas. Aderio disse para duas sereias subirem em suas costas. Ele era mais forte que qualquer homem normal, isso já tinha ficado muito evidente. Lahana, por sua vez, não era uma dracus, mas não era alguém que se deixaria levar pelas dificuldades. Sobrou-lhe a maior sereia entre elas, a outra de cabelos louros, as sobrancelhas de corais púrpuras assim como seus lábios. Quando no colo de Lahana, a sereia tomou-lhe a boca num beijo longo.

     Lahana à frente, Aderio atrás e aquele lugar maldito aos poucos residiria apenas entre as lembranças mais cruéis que Aderio tivera. Eu vou encontrá-lo pensava Aderio, um dia eu ainda irei encontrá-lo, e quando o fizer, não guardarei lugar para pena. Uma das sereias tocou no peito de Aderio e imediatamente ele sentiu algo acontecer ali.

     — O que está fazendo? 

     — Temos todas nós muita dor, humano. Mas não deixe isso fazer parte de ti. Fez muito e não há culpa sobre o seu ser.

     — Culpa... não sabe o quanto está errada.

     — Trouxe-nos salvação, humano. Por isso faremos com que nosso povo nunca se esqueça de você. Sua graça que lhe foi dada?

     — Hm, Aderio... Kings Aderio.

     — Tens majestade, Kings Aderio. Meu nome é Alissa, esta outra que carrega é Filian e a que sua amiga carrega é Bruma. Chegamos a este lugar com a promessa de esperança para nosso povo. E muitas de nós... como Miri, apenas sofreram.

     Miri, a sereia que morrera por último. Aderio se lembraria desse nome.

     — Ela foi vingada — disse a sereia de nome Bruma no colo de Lahana. A mulher não esmorecia, carregava mais do que um peso, carregava a esperança, e Lahana era mesmo forte assim para carregar às duas — É isso que importa, e todas nós também.

     As sereias insistiram e quiseram conhecer mais sobre o dracus.

     — Sei que tem algo dentro de si   disse Filian a seu ouvido.— Algo quente envolve seu peito.

     — E algo frio envolve seus pensamentos  disse Alissa para o outro ouvido de Ade.

     — Você foi tocado por três fogos, e sobrevive  disse Filian.

     — Mas se culpa por ter sobrevivido  voltou Alissa.

     — Estão me hipnotizando?

     — Não temos tal intenção  respondeu Alissa.  Só queremos conhecer ao nosso salvador e dar-lhe um pouco de paz.

     — Buscas necessitam de paz, o caminho muitas vezes é a paz  disse Filian.

     — E como sabem que busco algo? Vocês leem pensamentos? Essa é nova.

     — Seu coração dispara, Kings Aderio  respondeu Filian.  Um coração que não tem paz dispara assim quando algo lhe impede de sua busca.

     — Não há nada me impedindo.

     — Mas pensas que sim — disseram as três juntas. Por alguns instantes eles pararam. Lahana quis dar este momento a Ade.

— Pensas que nosso encontro o impedira — disse a loura Bruma encostando forte nos ombros da capitã.

     Como Aderio desconfiava das sereias, e de todas as ilusões, pensou se tratar de mais uma. Lahana estava em sua frente, carregando a sereia que agora descansava em seu colo. Não se trataria de mais uma ilusão de Selise, não. Talvez as sereias tivessem notado isso:

     — Conhecemos as coisas, Kings Aderio.  disse Alissa. — Somos um tempo muito antigo. Não buscamos esse lugar a esmo. Buscamos resolução para outros problemas de nossos reinos. E não, não iremos compartilhá-los com você. Tens suas buscas, temos nós as nossas.

     — Já fizeram o bastante, os dois — disse Filian.

     — Nossa vela queimando ao mar obteve seu propósito  disse Alissa.

     — Mas não lhe daremos enigmas  disse de novo Filian.  Saiba apenas que tem as bênçãos de nosso povo.

     — Não busque sobre  disse, por fim, Alissa. — Pois você será buscado.

     Aderio não ouviria a mais nada. Elas se aquietaram em seus ombros.

     Está ouvindo, Bedaya? Nada disso faz sentido, gritava para si em pensamento. Lembrava-se de outro companheiro, o valente dracus Bedaya de Beon, o urso defensor e rei do Escudo. O homem capaz de ver além do seu próprio tempo. Tanta claridade cegou a ele e a seus amigos durante a grande busca feita por Bellara, princesa de Luniestra, e razão de existirem dracus nesse momento que passa o mundo. Mas novamente essa é outra história.

     Só pensava em deixar aquele toque frio, profundo, dentro de um lugar mais profundo ainda. Enigmas não tinham lugar em seu coração ou em seus pensamentos. Deviam estar em bibliotecas, ou nas mãos do rei e amigo de Mangrensis. Já lhe bastava o seu próprio enigma.

     Nada de oferenda de sal, nada de cortes submersas. Chega.

     O sol finalmente foi contemplado pelas sereias. Ele se punha, e a caverna também. Aderio e Lahana deixaram-nas próximas do mar onde se juntaram à outra sereia que cantou boas vindas. Lahana despediu-se emocionada recebendo mais uma vez um beijo nos lábios da sereia Bruma. O beijo demorou-se para compensar o tempo de nunca mais se verem.

     Nesse ínterim, ao olhar o sol que aos poucos se punha, Kings Aderio foi tomado pela visão de um caminho que percorria rios, mata e escadas até atingir uma construção branca na ponta de uma rocha pendurada contra o mar. Seria o mesmo farol? Ele levantava-se em chamas alimentadas por um ser belíssimo. Um dragão? Fumaça. Que ao se juntar ao fogo criou asas voando nas ondas e no horizonte.

     O estranhamento quanto ao salvador tomou as sereias. Chamaram por ele, mas Aderio não quis mais aquela enseada. Andou pelo banco de areia sem aguardar por Lahana. Percebeu não respirar, não andar. Não havia chão para seus pés. Ele caiu na areia fofa, sua mente, porém, caía em abissais. A sereia Alissa veio até ele.

     — Ele morre  disse.

     Tinha algo errado com o dracus. Suas mãos não lhe respondiam. Os fogos do dragão em seu corpo apagavam-se. Enquanto desacordado, a sereia tocou-lhe o peito. Não houve brilho de nenhuma sorte. Subia a tensão na mente de Lahana que só ouvia: ele morre, ele morre, ele morre.

     Alissa o trouxe para o mar. Gaivotas cantavam em algum lugar, algumas até observavam penduradas em mastros de navios naufragados. As outras três sereias vieram e o tocaram deixando uma luz em arco-íris irromper em seu corpo. Havia fogo novamente tomando conta dos cabelos e da ponta dos dedos.

     Diante do arco-íris que subiu alto no firmamento o dracus se contorceu. Ade babava e seus olhos tornaram-se opacos e leitosos. Lahana achou ser tarde demais. E foi quando as chamas largaram seu corpo que Kings Aderio serenou nos braços de Alissa. Ele acordou observando quatro seres de beleza inigualável com os rostos colados no dele. Não vira mulheres tão belas em toda a sua vida. Talvez em um lugar. Um susto que para Ade foi o intervalo de um piscar.

     Deixaram-no sentado ali na praia e, respeitando a sua atitude anterior, não se despediram dele preferindo sumir nas ondas do mar. Lahana que já tinha carregado a sereia mostrava ser ainda mais forte ajudando Aderio a ficar em pé.

     Os dois se ajudaram e ambos retornaram pelo caminho sem dizer uma palavra. Foi um caminho duro, as pernas demoraram-se para levá-los, mas ambos os dois guerreiros conseguiram chegar até a ponte. Selise os observava incrédula com uma esfera de magia a seu lado. Ela veio até eles e o breve toque de suas mãos deu nova vida aos dois valentes guerreiros.

     Lahana apertou as mãos sentindo os dedos fortes, não formigavam mais como há pouco o faziam.

     — Está feito — disse Lahana.

     Esperando algo de Aderio, nada veio. Ele andava na direção da estátua, observando atentamente.

     — Nem tudo — disse ele. — Há uma última coisa a ser feita.

     Aderio não esperou por Lahana ou Selise. Aproximou-se do espelho dentro do farol e num gesto de submissão algo se fez presente. A vegetação à volta moveu-se fazendo tudo estremecer. A poeira e as pedras tomaram conta do lugar que já estava quase sendo brindado com o luar. Ao redor do pedestal do espelho uma escada se revelou descendo em espiral cercando a coluna que formava agora o espelho numa descida funda.

     — Você é digno — disse Selise apoiando-se em seu cetro. A luz não soltou-se da pedra antes apagada.

     — Digno? — indagou Lahana.

     — Toda estrutura que foi erguida por magia tem um lugar que só a pessoa anfitriã do lugar pode acessar. Ninguém o pode fazer sem ser convidado ou sem ser digno da morada.

     — E como ele sabia disso? Aderio, como?

     A resposta morreu com os passos que Aderio deu ao descer as escadas. 

     Aonde você vai? Ade? Ade? Não me deixe falando sozinha. Não nos deixe, Ade. Ade? Ade!

     Sussurros que encontraram as paredes. Era escuro e estranhamente agradável a descida. Quando chegou à parte inferior havia um túnel feito por uma caverna subterrânea e ao fundo uma raiz gigantesca guardava uma tocha recém apagada. Em outro canto havia uma pira com um cadáver deitado nela. Aparentava ofertar algo em sua mão ou mesmo a própria vida. Ao seu lado, descansavam inúmeros candeeiros de toda sorte e forma, empoeirados, os vidros estilhaçados. A casa cansou de suas tentativas, pensou Kings Aderio. Não o tocou e nem no cadáver. Uma peça lhe faltava. Candeeiro e fogo. Claro, era o fogo, mas esse larápio que buscava um tesouro dentro desse farol teria findado sua busca quando a morada notou não ser a pessoa responsável pelo farol. Mas quem era você capaz de enganar magia tão poderosa? Aderio ficou com a impressão de algo o observando. Algo que veio de cima de sua cabeça. Bastou um facho de luz para ver uma série de dentes numa boca colossal. O teto alto da caverna nada mais era do que a boca de um enorme dragão. A coisa engoliria toda a câmara se quisesse. Aderio nem conseguia mensurar o tamanho daquilo que deixava tudo óbvio demais para ser verdade.

      Dentro dos olhos do dragão adormeciam duas enormes piras. E por que seria tão difícil acender a pira? A resposta veio com a maré que jogou ondas para dentro da câmara. Elas levavam candeeiros consigo. Deixavam também o recado dos mares para molhar aquela pira ao centro. Simples e fascinante, pensou. Ele se encheu de chamas pelo corpo que alçaram em direção das tochas. Após algum tempo elas acordaram e assim o fez a boca do dragão exalando uma explosão de chamas verdes. Não pode ser, pensava Kings Aderio. Percorriam as roupas do dracus como uma capa. Infestada pelas chamas, levou pouco tempo e a pira finalmente se acendeu. Junto a ela o túnel todo se iluminou esmeralda. Uma a uma as tochas escondidas dentro da parede revelaram-se, esbanjando seu foco túnel afora e escada acima. Havia uma escada subindo escondida atrás de uma das mandíbulas do dragão.

    Lá em cima outra chama se formou próxima à estrutura espelhada, outra de cor esverdeada como as chamas que envolveram uma vez alguém que o trouxe lágrimas aos olhos só de lembrar.

     Feregard, pensou enquanto levantava suas mãos. Eberlen uivou mais uma vez e erguida levou a chama verde até lá em cima. O farol acendeu-se instantaneamente como uma vela que acabara de ser alimentada. E sua luz iluminou algo além lá dentro do mar que pôde ser visto através de uma janela ali perto.

     Um palácio era revelado de quando em quando, apenas se as chamas do farol escolhessem tomar conta de suas paredes. Havia agitação na água, como se tudo à sua volta convergisse para a construção brilhante lá dentro do oceano. Nem Aderio, nem Lahana e muito menos Selise compreenderam o que estava acontecendo. Apenas que estava feito.

     Ao voltar para a sala principal do farol pôde ouvir o barulho das chamas. Em sua mente era como uma canção intermitente.

     — O farol está aceso, Selise — disse Aderio. — Deve ter passado no teste.

     — Eu e você, Kings Aderio — disse ela. Aderio entendeu bem isso.

     — As sereias foram vingadas, sua amiga e tantas mulheres também; a ilha conseguiu sua paz e lá no mar se revelou um palácio debaixo d'água.

     — Agora é preciso estudar este farol, algo que farei com muito afinco daqui para a frente.

     — Sugiro que não faça mais nenhuma ilusão conosco, Selise — disse Aderio por trás de um sorriso cansado. — Essa já foi o bastante.

     — Eu serei sempre grata a você, Kings Aderio. A ambos os dois. Capitã, dracus - disse ela distribuindo mesuras aos dois. — E minha ordem estará com olhos atentos sobre você.

    Ade tinha o olhar para a lua muito distante se levantando da altura do mar, e nada disse.

     — Nos entendemos — disse Lahana. — Seguirá viagem conosco?

     — Na verdade, você seguirá viagem, querida capitã. Ainda ficarei no farol pesquisando sobre a ilha. Comuniquei-me com o chefe de minha ordem e logo ele estará aqui através de um portal.

     — Então precisamos ir. A tripulação nos espera e você vai me explicar sobre essas chamas verdes. — Lahana olhou para Aderio.

     Mas o dracus não estava ali.

     — Aderio? Ele já foi lá para fora.

     Selise sorriu.

     — Ele já está muito longe daqui, querida capitã — disse ela, Lahana ficou estupefata. Ele estava ali há um segundo.

     — Muito longe?! Como?! — Lahana não queria acreditar que ele não estava ali. — Ele estava aqui agora! Ele veio comigo até aqui.  Eu o carreguei! Ele... Ele passou... Ele fez... Onde ele está?

     Selise avaliou com ternura a pedra cintilando azul no alto de seu rosto e de seu cetro.

     — Querida capitã. Um dracus não rege as vontades de ninguém se não de si mesmo e do equilíbrio. E eu não deixaria nenhum dos dois ir embora sem suas recompensas. Descanse, e volte ao navio. Estarei ansiosa pelo nosso próximo encontro. Saiba que histórias de uma capitã incrível serão contadas. Longe do tempo dos homens. No reino de Markarhz.

...

     Um estalo de dedos cansados, um rosto muito velho. Foi tudo o que Lahana lembrava-se dentro do Raspadora de Corais. Ladenio e os outros estranhamente tinham se esquecido de Aderio. Para todos ele tinha ficado numa ilha lá atrás para ir fazer das dele.

     — Coisas desses dracus — disse Ladenio aproximando-se da capitã. — Deixam a gente em cada enrascada. Deixou-me aqui junto de você para uma bofetada provavelmente. Ade nem me levou com ele. Terei de encontrá-lo nas Narvais.

     — Não... Ele só leva uma pessoa com ele — disse Lahana girando um anel em seu dedo.

      Olhava o horizonte de mar aberto e tempo firme aguardando pelo Raspadora. Queria ao menos ter se despedido dele propriamente. Queria falar mais do que um dia teve a chance de dizer. Se teria outra chance não saberia dizer. A dor dos dois era a mesma. Ela mesma deveria buscar por sopros. É para lá que você foi, pensava Lahana. Não fora uma cusparada, mas um olhar que ambos não mereciam ter trocado um com o outro. Um olhar vil, que dois, oh, esses dois, nunca deveriam ter trocado.

     Não demorou muito até a tripulação ficar em polvorosa por algo que acontecia ali no mar. Todos vieram para observar um círculo que se formava no oceano. Completamente formado por corais levantando fumaças límpidas através de suas chamas. O círculo de velas queimando ao mar guardava o júbilo da tripulação, a gratidão de uma capitã, e o encanto de Ladenio vendo um tesouro se formar na superfície da água. Vivas foram entoados. Haveria muita bebida. Mas alguém faltava na embarcação. E não estaria lá.

      Lahana riu. Lahana olhou para uma chama queimando no mar. Lahana se perdeu em memórias. Lahana chorou.

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