A Vela Queimando ao Mar: Parte III - Lahana
Kings Aderio levantou-se coberto de murmúrios do ar marinho e uma salva de palmas morosa vindo da direção do leme.
— Sempre exibido, dracus — gritou Lahana de lá de cima. Ade se aproximou envolto por olhares de espanto. — Vai longe sua arrogância, sabia?
— Quis sentir o vento do mar — disse desinteressado.
— Sentirá o sal dele — ameaçou a capitã com uma sobrancelha bem arqueada. — Quero ver se você nada tão bem quanto gosta de mergulhar do impossível.
— O mar é belo, bravio e não me convém desafiar tanto quanto ao fogo.
— Vá falar essas coisas de druidas das praias em sua cidade, Kings Aderio. Não são bons dizeres durante o melhor da maré.
— Não é coisa de druida — Aderio notou Ladenio encostado ao molhe. Apoiava-se ali escrevendo algo num pequeno caderno de couro. Diferente dos outros, este já estava acostumado com o dracus e seus feitos. — Bateu nele de novo? — questionou meneando na direção de Ladenio.
— E você tem um dedo de razão nisso para indagar? — disse Lahana.
— Bom ele está aqui por minha causa, também — comentou Ade.
— Ah, é? — disse ela surpresa encostando lânguida o peito ao leme. Ade poderia jurar que o Raspadora teve ainda mais vontade de seguir em frente. — Não foi bem o que ele me disse.
— Ele ou lhe disse a verdade ou nada, Lahana.
— A segunda opção.
— Pois bem, então contente-se com a minha palavra. Lad veio aqui por minha causa — Aderio repetiu e isso despertou uma veia irada no rosto da capitã.
— Insinua o quê?
— Tempo não é de certezas, Lahana. Não gosto de falar dentro das incertezas. Não sou uma certa pessoa em Nianda — disse Kings Aderio batendo um dedo na acima das têmporas como quem quer dizer inteligência.
Lahana largou bruscamente o leme e o deixou com o imediato. Os punhos estavam cerrados e um deles tocava a espiga da cimitarra. Entretanto, a indiferença de Aderio desta vez surtiu efeito. Viu Lahana aproximar-se do tombadilho, se encostando despretensiosa, a capitã esfregava-se como um gato nas pernas de seu dono.
— Você ainda gosta destas frescuras com a Universidade? — indagou afinal mencionando a Universidade de Nianda, na qual um grande amigo de Aderio vivia desafiando a mentalidade dos homens.
— Mais de algumas do que de outras.
— Compreendo — desdenhou Lahana. — E qual a certeza que tem agora, já que é necessário alguma para vir a este barco? Foi Tistein quem deu-lhe esta? Bedaya e seu olhar que se comporta como se pudesse ver o que o céu enxerga?
— Em verdade os dois conseguem olhar muito mesmo, mas...
O horizonte se alargava sobre os olhos do dracus. Kings Aderio sentia o vento que o levara ao mar viajando ainda mais distante. A superfície do da água palpitava a luz ondulante trazendo calma à sua alma. Então, ao observar o olhar do dracus, aquele que ela se acostumou a ver tão profundamente, Lahana baixou levemente a guarda, sabia o que Ade guardava naquele momento e muito mais coisas dele em tempos antigos. Tempos estes de ameias e corredores opulentos; de cortejos e galanterias; da queda de reis.
Companheiros se conhecem, pelos mais breves gestos, por mais escondidos sejam, se conhece.
— O que se passa? — ela perguntou. Aderio mexia em seu anel de prata com dois adornos, uma pequena folha de um lado e uma adaga de outro.
— Há uma esperança ínfima e isso eu sinto dentro de mim. Não consigo explicar.
Lahana apoiou-se de costas contra o tombadilho. Ficou perfeitamente equilibrada com a cintura na quina do deque, dali seus cabelos estavam mais à menção de cerejeiras abrindo voo sobre o mar.
— Daqui, tudo é um mundo de incertezas. Não dá pra saber o que está do lado certo ou não. Vejo uma, duas, três janelas; uma boca de canhão; espumas, corais e um navio a descobrir o mesmo horizonte, ou um novo por quilômetro navegado. O que não vejo é o que você vê, dracus. A esperança que buscou desde sua dissolvida comitiva e que continua buscando. Talvez fosse melhor buscar o mar, as montanhas, as cavernas... ou um estofado de couro carmim. Segundo a última carta de Neiva, a decoração em Seta mudou em demasiado.
— O estofado ainda pode esperar — respondeu contrariado o dracus, sabendo do que se tratava. Neiva era a rainha de Seta Ambel, assim como Ravenz e Kings Aderio por benção do rei mais poderoso do Grande Mundo entre os homens: Lorde e Rei Ecanda de Luniestra. Um trono no qual Kings Aderio pouco sentou em companhia dos grandes amigos.
— Não sou eu quem devia dizer isso. Mesmo assim o digo: seu lugar não é apenas desbravando o horizonte. É também dar asas e novos horizontes a outros. Vocês três são os exemplos que os reis devem se basear.
— Fácil falar isso, não é, senhorita Pérola de Indigum? — as palavras de Aderio tocaram Lahana e contrariaram-na em demasiado. Aderio tratava da cidade de Indigum, a oeste da Grande Cidadela de Berílios. Lahana morara em corredores forrados em bronze os quais tinham as estátuas feitas em tijolo perolado, muitos deles das Adornas, as pérolas mais belas do mundo. A capitã do Raspadora de Corais etestava seu passado por ter de detestar seu genitor.
— Se temos algo em comum, Kings Aderio, é que ambos fizemos escolhas reais.
— Para vencer distâncias, Lahana.
— Distâncias dos homens no meu caso. Em contrapartida, meu objetivo é palpável, um caminho traçado e possível de ser conquistado — Lahana disse de maneira contundente lançando um olhar intimidador para Aderio. —Bedaya odiaria que você não conseguisse.
— Bedaya, Bereor, Mangura, Rapey, e até mesmo Feregard não gostariam do que eu faço — à menção dos outros companheiros dracus, uma onda pareceu soerguer um pouco mais o navio. Aquilo assustou a tripulação de certa maneira. Aderio continuou. — Mas é necessário. Eu preciso de respostas e não será nenhum deles, nem você, quem me trarão! — por incrível que possa parecer, Lahana não devolveu-lhe o mesmo tom rude.
— O caminho que você segue é lindo, Aderio. Não digo com venenos na fala, sou sincera, me conhece. É um sentimento profundo e verdadeiro, mas não pode ir tão longe por alguém. Ninguém consegue vencer essa distância. Há horizontes e horizontes, e, este em que caminha, guarda profundezas que só o levarão à perdição — Lahana bateu as botas na madeira do deque, espreguiçou-se e jogou os cabelos em Aderio com violência. — Supere a dor.
Superar, Ade já estava cansado de ouvir isso. Ou qualquer coisa que lembrava-lhe superar. Superar era não se lembrar. Superar também era esquecer. E aela Kings Aderio nunca poderia esquecer.
— Superar? Devia saber tão bem quanto eu que não é nada fácil largar algo trágico ao passado.
— Não é, Aderio! Mas não adianta viver por algo que o impede de viver!
— Olhe... muito cuidado — Aderio ficou em pé de modo que pareceu mais alto e forte do que seu corpo magro e baixo sugeriam. — O caminho que suas palavras tomam...
— São da dura verdade, Kings Aderio — cortou Lahana e, para delírio da tripulação e de Ladenio, capitã apontou a espada para o dracus. — Da mesma verdade que sua lâmina traz quando atinge a garganta de um mercenário ou um bandido, monstro, demônio, o que for! A dura verdade do que a lâmina não impõe volta. Não há razão para ir tão longe neste horizonte, Aderio. Contente-se e respeite a vontade natural das coisas! Não é porque foi beijado pelo fogo que você se tornou um deus! Não pode interromper esse curso.
— Como uma divindade - lembrou ainda Lahana. — Não uma.
Aderio tremia, não queria mais ouvir aquela mulher, não queria abaixar a cabeça para a capitã por algo que ela não compreendia por completo. Esquecendo-se de que estava no mar, também esqueceu de como pisar. E pisar, naquela embarcação, significava acima de tudo cuidar com a língua.
— Você busca a liberdade, Pérola de Indigum! Pois eu também. Você quem contente-se com isso — Ade despejou um olhar intimidante em Lahana. Mesmo Ladenio ali ao lado não achava isso honesto do dracus. Os sentimentos que conviviam entre Kings Aderio e Lahana eram parte de muitas das canções de Ladenio, e ele não queria suas autorias passando por uma mentira ou um exagero. Isso, aliás, elas não eram. Ladenio recitava com muita fidelidade o que ocorrera entre os dois que, para muitos que lhe ouviam, era a dupla preferencial, a princesa e o rei que o mundo precisava verem juntos. Mas esta é uma outra história.
Mesmo vendo que os olhos literalmente faiscavam na íris de Aderio, Lahana não demonstrou menor nervosismo. Virou-se para o leme, deixando a embarcação com as velas em sotavento, na direção oposta ao vento. De súbito, o navio diminuiu a velocidade navegando para dentro do horizonte há certa distância de onde a lua subiria logo, logo.
A discussão tomou a atenção de todo o convés. Todos respeitavam a capitã. Algo diferente de respeito e ordem na hierarquia traria o descontentamento geral da tripulação a um estranho no ninho.
Era Aderio ali o tal estranho, e os olhares de espanto e admiração de anteriormente dissolveram-se dando lugar à desconfiança com aquela discussão que se avolumara entre capitã e dracus. Era sutil, mas via-se em cada semblante um sentimento de desconfiança, quando este não fosse de apreensão.
Ainda assim, Aderio andou de um lado a outro do convés, mas não ficou parado olhando o horizonte. Onde precisassem de um braço forte para os canhões e suas bolas de metal ele estava; um braço não tão forte para um esfregão numa mancha mais densa, ele estaria esfregando; um martelador para pregar algumas tábuas no casco da proa do navio sem que o medo de despencar no mar se atrevesse a açoitá-lo, ele ali estaria. Aderio ajudava a tripulação sem pedir algo em troca ou respeito. Já Ladenio, o pavão, tentava fazer diferente.
Pouco depois das nove da noite segundo as estrelas e a lua indicavam, os tripulantes do navio descansavam em redes na parte de dentro do convés comendo alguns pedaços de queijo embebidos em rum e sopa. Ladenio aproveitou o momento em que estavam todos menos Lahana ali, e subiu em um barril para entoar o que Aderio pensou que não deveria ser dito.
— Excelentíssimos marujos e marujas do Raspadora de Corais! Ouçam-me! A mim! O menestrel dos rouxinóis. A gloriosa voz do deleite das musas de hoje e outrora. Eu, Ladenio brasDieler das fecundas orgias de Nostermira, venho dizer a vocês, plateia linda de distinta — ele ergueu a mão, mas nem precisaria disso, tinha o dom de trazer atenção das pessoas fazendo pouco. — Aqui neste navio vocês estão diante de algo digno de lendas.
Essa não, pensou Aderio mexendo com a colher na sopa infestada de pedaços grandes de queijo, mas nada pôde fazer aconchegado na penumbra.
— Este abriu caminhos nunca dantes caminhados e agora resolveu rumar a mares nunca dantes navegados.
Acho que já vi isso em outro cancioneiro, falou bem baixinho Aderio, só as estrelas assinaladas no céu o ouviram. Seu amigo pavoneante continuou.
— Este não é nenhum outro senão um dos marcos da Guerra contra Verygar e seus lunáticos da maghika, o herói Kings Aderio, da impossível comitiva de Bellara, formada por seis distintos cavalheiros e guerreiros da mais alta perícia, os verdadeiros campeões julgados pela pedra mais polida, a vida das delas mais viva, cuja responsabilidade herdada por berço esplêndido impediu estourar a guerra na planície de Amiran contra os Povos Belos! Os seis e Bellara foram beijados pelas chamas do incrível, do inigualável ser ancião de mais metros de altura do que uma montanha! Um deus de nome Adverus Aramor. São seres acima de mim e de você — apontou para um homem que o olhava sem o menor entusiasmo, mas a ponta de seu dedo causou grande contrariedade ao sujeito. — Você, ui! — em seguida a uma moça que o olhava aguçando intenções exacerbadas. — A todos nós. Um homem que está além da compreensão do possível de ser imaginado. Em nenhuma história do mundo, tal périplo de homem foi ordenado!
Nem me fale, Ladenio! A voz de Aderio gritava entre a superfície de seus pensamentos. Não dá pra compreender tal papel. Nem que coração lhe deu a ordem para soltar tanta baboseira para esse povo. Aderio contemplava sua sombra nas paredes entre a pouca luz e a janela do porão. A lua deixava riscos ondulantes leitosos pela água lá fora.
— Não viram o que eu vi, senhoras e senhores!
Ainda bem que não ou borrariam nas calças de tanto rir de sua cara, Ladenio...
— Não tiveram os ferimentos que tive eu, a voz de rouxinol, aquela que para o seio coralino das sereias é o anzol.
O que não disse é que elas olham para o anzol e cantam... debaixo de risadas.
— Um homem ímpar que busca a glória de um mistério impossível!
Essa não, Ladenio, não me vá alongar num romance. Kings Aderio sabia bem que as pessoas tinham uma curiosidade ainda maior com romances, afeiçoavam-se a eles. E isso era perigosíssimo em se tratando de sua história.
— O sentimento em sua mais pura forma; a forma na mais pura verdade, a verdade no mais puro alento. O alento guardando-lhe todas as glórias.
Eis aqui como fazer marujos do sal vomitarem, seu miserável...
— Lahana, a própria Pérola de Indigum, nossa magnífica capitã, nunca o terá com bons olhos se não tiverem por ele melhor tato, queridas e queridos. E é por isso que estou aqui lhes pedindo...
Um homem o interrompeu, tinha os cabelos ruivos desgrenhados, gibão empesteado de gordura e com os pés balançando para fora da rede. Ele virou a cara feia para Ladenio e socou uma cusparada aos pés de Ladenio.
— Olha, Ladenio, é muita merda junto até para você! Se eu quiser tato é nuns seios bem cheios, duros como frutas maduras para o duro, do contrário...
Amulheres no convés tinham opiniões diferentes sobre o homem. Umas o odiavam, outras preferiam diminuir a distância. Mas os homens, todos, tinham por aquele certo respeito. Kings Aderio pensava que isso estava por terminar.
— Não é deste tato que estou falando — insistiu Ladenio. — Sentido figurado. Ora, essa, vocês não leem meus contos? Neles eu distingo com muita qualidade o que é tato e o que é... tato — Ladenio apertou algo imaginário na frente de todos com as mãos cheias. — É do respeito, meus caros! Do gosto adocicado da confidência, da crédula admiração!
— Andou dizendo segredinhos de cu-frouxo para o tal do homem, foi? — indagou outro homem, este tinha um rosto gordo, membros fortes e boca cheia de cação nadando entre a saliva e os dentes.
— Devo acrescentar que foi ele quem pagou pelos cações, meu caro. Igual a este que está viajando nessa sua garganta entupida de garoupas. Que, aliá, foram pagas por ele também. E pelos quei...
— E por isso tenho de ficar de quatro para ele? — interrompeu-lhe o gordo. — Não tem homem nesse barco aqui que seja putinha assim para dar ouvidos a um metido a boa-pinta como você que não sabe fazer um nó de escota simples!
Para Aderio e sua penumbra já bastava daquela apresentação. Saiu da escuridão a fim de dizer que tinham ido longe demais. Mas a voz no alto do convés veio tão forte quanto uma tormenta.
— O homem que conseguir brandir a espada neste momento e conseguir passar por mim terá o direito de dizer putinha outra vez neste navio.
Só se ouvia o balanço da madeira se apertando com o movimento sôfrego do mar. Era como se flutuasse do alto do convés uma aparição aterrorizante. Alguns marinheiros esconderam o rosto. Outros olharam para o alto estarrecidos. Lahana intimidava e encantava ao mesmo tempo. Deixara a roupa de capitã em sua cabine e estava com uma saia curta na altura dos joelhos, as caneleiras rasgadas, os pés estavam nus, molhados do mar do convés; trajava um corpete branco sem nenhum detalhe aparente senão os laços nas costas e duas espadas girando ameaçadoramente junto à veneta do meneio de seus pulsos. Seus cabelos estavam soltos e elegantes. Misturavam ali naquele momento o ouro e o betume à escuridão. Das cerejeiras, apenas o luar saberia ao certo.
A capitã desceu lentamente até o porão do navio, olhou para Ladenio furiosa e para a direção de Aderio no fundo escuso. Para este mostrou-se mais curiosa e desafiador. O homem na rede arregalou os olhos e os outros tripulantes todos se ergueram.
— E então, Delmo — disse Lahana friamente. — Ouvi dizer que você é muito bom com uma espada. Não quer mostrar à sua capitã?
Delmo tremia como um mastro atormentado pelo açoite das ondas.
— Não, senhora, minha capitã. Não... sou tão bom... bom assim... Sabe, como a senhora, jamais como a senhora — ele balbuciava e as duas espadas giravam reluzindo ameaça e a pouca luz das lamparinas do porão balançando com as ondas de um mar deveras calmo.
— Ah, homem, se tem uma língua boa para entoar putinhas aqui no meu navio, acredito também que tenha uma mão bem leve para segurar firme uma espada — Lahana o provocava, Aderio sabia muito bem aonde isso ia acabar: Numa humilhação violenta.
Pensou se o tal homem não conhecia a mulher por detrás daquela roupa que provocaria a imaginação fantasiosa de homens e mulheres. Uma donzela. Talvez a tivesse como a uma menina que resolveu ser capitã à revelia da posição de mulher. Talvez ainda o tal do Delmo achasse que fora do campo de visão de Lahana ele pudesse até desejar a capitã, em segredo, como menina, como mulher fácil de se dominar. Talvez ele só esperasse uma chance com ela, apenas uma donzela. Sim, apenas uma donzela à luz da lua e às curvas das ondas do mar. Abaixe a cabeça, homem. Cale-se e abaixe a cabeça.
— Não, senhora! Eu sei bem de remos, de amarrar, fazer nó, sabe? — mentiu Delmo.
Lahana divertia-se com o respirar sofrido do homem.
—Nós, não é? Vamos fazer assim, então.
Virando-se para um canto escuro do porão, ao lado das cabines abertas, ela chamou:
— Kings Aderio! Apresente-se à sua capitã.
Hm, por falar na minha merda.
Aderio saiu das sombras aproximando-se e da capitã guardou respeitosa distância. — Você também é ótimo com nós, já me amarrou algumas vezes, conheço bem a verdade do movimento de seus dedos.
— Oba, oba — disse Ladenio bem baixinho esfregando as mãos uma nas outras.
Aderio não deixou transparecer, mas ficara desnorteado com a insinuação de Lahana. O passado condenava aos dois. Ladenio não se aguentava em risos contidos.
— Aqui, Delmo, pegue-as! — Delmo hesitou por um momento, mas obedeceu pegando as duas cimitarras ofertadas pela capitã. Perto de Delmo, Lahana era mesmo uma menina, o gordo era alto, a esguia capitã era pequena à sua frente. Tão fácl, ah, tão fácil! Todos no porão olhavam para Lahana. — Agora, Kings Aderio, faça o melhor nó que você puder. Aperte sem nenhum dó - Aderio rasgou dois pedaços de pano de suas vestes. Lahana veio de costas para ele com as mãos para trás bem apertas na altura da cintura do dracus. Aderio sentiu-se vivo e desconfortável por um breve instante, as mãos ali não se moveram e Aderio não fez objeção ao toque de Lahana. Ainda assim, ela sentia, ele sentia e Ladenio se engasgava em risos contidos ali atrás lembrando tantas histórias. Os dizeres de amarras ainda flutuavam nos pensamentos de Ade.
Com velocidade Kings Aderio juntou os dois panos fazendo um círculo, passou um por dentro do outro, desenhou um círculo feito com as extremidades, curvou uma das pontas deixando a outra solta e passou as duas pontas por dentro do círculo quantas vezes pôde com as extremidades dos trapos. Sentiu cheiro de azaleia, cravo, óleo de peixe, hormônios muitos e sangue dos cabelos brilhando cada vez mais roseados ali na nuca de Lahana.
Ao soltá-la, Lahana voltou-se para Delmo.
— Veja, Delmo. Estou presa. Uma presa fácil para você, não acha? — Delmo nada disse estarrecido com o busto febril de Lahana. — Se conseguir um único corte em mim, ou em minhas roupas, por menor que seja — silêncio prescreveu, todos esperando o que Lahana tinha a dizer, os dois ouvidos por cabeça eram pouco. — O Raspadora e meu corpo, são seus.
A tripulação não acreditava no que ouvira. Ladenio batia no balde a seus pés freneticamente enunciando latidos e uivos. Outros se aliaram a ele. Vai ver até o navio sorriria pela carranca lá em cima em direção à lua e o horizonte. Uma mulher assassinava suas unhas nos dentes. Outras olhavam tudo aquilo com as mãos na boca.
Aderio afastou-se balançando a cabeça quando passou por Delmo. O bufão detestou o desdém e avançou em direção de Lahana.
Tudo ocorreu sob os passos do dracus degrau por degrau para fora do porão. Delmo desferiu uma única investida com a espada, o bastante para Lahana desviar-se com um simples passo de dança belíssimo em tanta simplicidade. Bastou-lhe o trabalho de erguer uma perna com força para bater na nuca de Delmo, descrever uma meia pirueta saltando até ele e esperar o ímpeto do movimento do adversário, um golpe de espadas de cima para baixo que veio a esmo. A capitã aproveitou-se disso para completar a pirueta e mostrar as mãos atadas num momento, logo cortadas por uma das espadas nas mãos de Delmo no momento seguinte. Conseguira cortar algo, mas era parte das vestes de Kings Aderio, aquilo não contava.
Lahana se viu livre por suas próprias armas nas mãos de seu adversário, subiu no pescoço do homem usando uma escada invisível, fechando-o entre as pernas. Ele ficou vermelho e o cheiro de algo mais azedo pungiu pelo convés. Delmo desesperou-se, batia nas pernas de Lahana depois das espadas tilintarem lâminas caídas no chão. Impetuosa, ela segurava seus braços para que ele não a alcançasse. Delmo sentia a força de uma cobra lhe apertando quando pensava em respirar. O homem parcamente conseguia mover-se da cintura parra cima. Ele babou, sangrou até que então seu corpo não aguentava mais e dormiu completamente manchado no rosto e nas calças.
Os murmúrios da morte do homem começaram, mas Lahana tranquilizou a tripulação de que ele dormiria e esqueceria de muito, mas não da vergonha de perder para ela. De ser levado a perder para a capitã do Raspadora de Corais. Aquilo serviu de lição e o respeito que tinham pela bela e jovem capitã só aumentou. Ao fundo um Ladenio brasDieler arrogante de suas calças batia palmas com uma piscadela para Lahana que subia, ovacionada, pela escadaria.
Aderio não assistiu ao espetáculo nem lá de cima. O oceano era para ele muito mais belo do que ver Delmo borrar-se nas calças. Já estava no convés, observando estrelas, lembrando-se de amarras escondidas há muito no tempo. Tais amarras tentaram segurá-lo por algum tempo. E por algum tempo elas realmente conseguiram. Mas, para um estranhamento no destino dos dois, as amarras se desataram. Assim se faz com os sentimentos quando são dados aos signos do vento. Olhando para a lua tremeluzindo na água, o dracus sabia o que viria a seguir.
Com efeito, Lahana aproximou-se lenta e sorrateiramente em meio aos gritos lá de baixo. Aderio ouviu seus passos. Sentiu o calor do hálito da mulher esvoaçando junto à maresia, viu ondas em sua frente e uma onda mais intensa arrepiar-lhe nas costas. Sem avisar, Lahana o atacou com uma espada e depois com a outra. Movimentos rápidos, nem os albatrozes levantaram voo com o chiado da arma. O dracus girou nos calcanhares, levou a mão direita para cima do deque, subiu na madeira, ficou na ponta dos pés sobre a quina pegando impulso. As duas estocadas da capitã só viram o ar. Kings Aderio passou por cima da cabeça de Lahana num lindo salto levando a espada descansada já em suas costas. Ao girar a arma, joelho direito no chão, os lobos ferozes encontraram metal. Uma espada da capitã foi parar aos pés de seu castelo, a outra descansava débil em seus dedos, enquanto Lahana era beijada por Eberlen que já bebia um filete de sangue.
— Um dia, novamente, senhora e minha capitã. Triunfante será. Não hoje — disse friamente o dracus Kings Aderio. Eberlen já estava em sua bainha voltando para o porão. Não olhou para trás, não viu o descontentamento de Lahana ou sua reação colérica. Foi apenas algo que já havia acontecido em outro tempo e praticamente da mesma maneira, a diferença é que na ocasião Lahana havia caído na fonte dos jardins do castelo, amarrada e triunfante.
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