Capítulo 5 - Aberração
A cabeça do jovem Yoannis ainda latejava quando acordou. Demorou um pouco para conseguir focalizar onde estava, e sua primeira reação foi achar que tinha voltado para casa. Estava deitado em uma cama macia; o teto era de madeira, assim como as paredes e móveis. Tudo era de madeira bem trabalhada, e a costura da colcha que o cobria formava belíssimos desenhos. O sol adentrava a janela tocando seu rosto com dedos mornos.
Não estava em casa. O quarto tinha pelo menos o dobro do tamanho do quarto de sua mãe. Sua mãe! Os terríveis eventos do dia anterior golpearam-no com força total e o menino entregou-se ao choro. Onde estaria seu pai? Por que sua mãe teve de... de...
Yoannis ouviu passos. Alguém se aproximava. Instintivamente ele cobriu a cabeça, com medo de quem encontraria. Mãos leves e carinhosas tocaram seu ombro. Yoannis descobriu o rosto e seus olhos encontraram um rosto sorridente. A senhora que o olhava esbanjava alegria, como se nada pudesse ser tão valioso como o menino em sua cama.
- Como você está, criança?
- Onde estou?
- Em minha casa. Meu marido achou você em em nosso vinhedo hoje cedo, caído no chão. O que aconteceu?
Yoannis voltou a chorar. Não conseguia se controlar, não conseguia parar. Seu peito parecia que estava sendo esmagado, como uvas pisadas por centenas de pés. Sentiu que estava sendo abraçado. Um abraço apertado e demorado. O aperto carinhoso daquele abraço pareceu diminuir aos poucos o aperto em seu pequeno coração.
- Minha mãe morreu, e eu estava procurando meu pai. Ele se chama Yoannis, como eu. A senhora o viu?
- Não havia ninguém quando meu marido lhe encontrou. Mas ele pode te ajudar a voltar pra casa. Onde mora?
- Na Acrópole, pertinho do templo da deusa.
- O Pártenon? Menino, você está bem longe de casa! Fica há mais de 3 dias de caminhada. Como chegou tão longe?
Yoannis não entendia. 3 dias? Ele havia corrido bastante, mas definitivamente não correu nem por um dia. Ainda estava de noite quando ele tropeçou. Mesmo assim, pensando agora nisso, ele nunca tinha corrido por tanto tempo sem se cansar. Ele não sabia explicar isso, e o medo da incerteza começou a se apoderar dele de modo que começou a tremer e suar frio. A senhora percebeu e voltou a abraça-lo.
- A propósito, meu nome é Anna.
Yoannis devolveu o abraço. Abraçou a senhora como se abraçasse a sua mãe. Voltou a chorar, mas o sentimento agora era outro. Não podia ser só coincidência. Ele tinha certeza que sua própria mãe dera um jeito de o guiar até ali direto do Elísio.
Ele não falou mais nos pais, e os dois senhores não fizeram mais perguntas. Como eles nunca tiveram um filho, Heitor e Anna cuidaram do jovem Yoannis como se fosse seu. Com o tempo a dor foi diminuindo. Yoannis passava bastante tempo ajudando o Sr. Heitor no vinhedo. Não era um trabalho fácil, mas o menino aprendeu rápido. Aprendeu também os afazeres de casa, para auxiliar a Sra. Anna. O trabalho parecia ajudar a controlar aquele mundo de sentimentos que o invadiam com constância, e por isso ele trabalhava com afinco em tudo o que podia. Os dias passaram, e o senhor e a senhora logo se tornaram papa e mama. Os meses substituíram os dias, e estes por sua vez foram substituídos por anos.
Foi doloroso para Yoannis perder seu papa, mas foi ainda mais doloroso para a mama do que para ele. Ela faleceu dois dias depois. Uma nova onda de sentimentos invadiu seu peito, fazendo Yoannis, agora de 16 anos, se sentir novamente como aquele menino assustado de 8. Lembrou-se da dor que foi perder sua mãe e pai no mesmo dia. Lembrou-se do que causara a morte de um e o desaparecimento do outro. Ele não podia mais ficar ali. Em pouco tempo arranjou pessoas interessadas em comprar a casa dos senhores que o haviam acolhido e, juntando alguns pertences e provisões em uma bolsa, partiu de volta para sua casa.
Mama tinha razão. Foram 3 dias de caminhada. Como suas perninhas de 8 anos conseguiram fazer aquele trajeto em poucas horas ele não fazia ideia. Porém, ao avistar a cidade em que nasceu, todas as preocupações foram varridas da mente de Yoannis e substituídas por um misto de sensações: primeiro nostalgia, daí incerteza do que encontraria, seguida do medo de não reconhecer ninguém e não ser reconhecido, substituída pela esperança de que seu pai pudesse estar lá e, então, desespero. Se seu pai estivesse lá, significaria que foi um grande erro ter ido atrás dele na perseguição. Mas daí ele não teria conhecido a mama e o papa. E não era verdade que ele havia sido um conforto para aquele casal em seus últimos anos de vida? Mesmo assim...
Tudo permanecia como Yoannis se lembrava: as casas, muitas das quais feitas de pedra que se confundiam com a rua, o ambiente hospitaleiro, as pessoas sorridentes. Mas nenhum daqueles sorrisos era de conhecidos. Nem tampouco alguém parecia saber quem seu pai era, nem sequer ouviram falar dele.
- Yoannis? Ele mora naquela casa ao final da ladeira.
A decepção, contudo, foi dolorosa ao ver que se tratava de outro Yoannis. Ele encontrou mais 2 além deste, e nenhum era seu pai. O jovem já estava quase desistindo quando ouviu o barulho de uma discussão acalorada . Curioso, foi ver de que se tratava. Um homem forte, de quase 2 metros de altura, ameaçava um senhor magro e amedrontado. O forte estava agarrando o senhor pelas vestes. Parece que o senhor lhe devia algum dinheiro. Yoannis arregalou os olhos, espantado. Aquele senhor prestes a apanhar era seu antigo vizinho, aquele que chamara por seu pai para avisar sobre os ataques iminentes e com quem seu pai o deixara antes de correr atrás dos invasores.
Quando o grandalhão ergueu o punho para socar o vizinho de Yoannis, o moleque não pensou duas vezes. Aquele homem era um braço mais alto que Yoannis, mesmo assim ele agarrou o pulso do brutamontes, impedindo o golpe no meio do caminho. Yoannis torceu o braço do homem e o afastou do senhor, que parecia assustado.
- Quem você pensa que é, moleque?
O homenzarrão não esperou a resposta. Em fúria, partiu pra cima de Yoannis, que desviou do golpe com facilidade, girando nos calcanhares e, agarrando o homem, lançou-o contra a parede. O homem de quase 2 metros não pareceu pesar mais do que as sacas de uvas que Yoannis carregava em época de colheita na casa dos seus pais adotivos. O homem caiu no chão e não se levantou mais. Ele se virou então para seu vizinho, para lhe perguntar sobre seu pai, mas nada o preparou para o olhar de repulsa deste.
- Fique longe de mim, sua aberração!
Aberração? Yoannis olhou em volta. As pessoas o olhavam com medo ou desprezo, alguns com raiva, como se Yoannis fosse o agressor. Ele não entendia. Havia acabado de proteger seu vizinho, então por que as pessoas lhe olhavam daquele jeito?
- Sou Yoannis, não se lembra de mim? Eu...
Mas o homem não prestou atenção. Se afastou assustado e saiu correndo, com medo dele. O medo daquele homem pareceu contagiar o rapaz. Um medo como ele nunca sentira antes. A sensação era semelhante de quando a gente está descendo as escadas e acha que os degraus acabaram, mas ainda resta um. Só que pior, muito pior. Aqueles olhares pareciam oprimi-lo e esmaga-lo. Yoannis pegou sua bolsa e saiu correndo. Não fazia sentido permanecer ali, afinal de contas até mesmo sua casa havia sido demolida e substituída por um comercio.
Ele parou junto a um lago. Lavou o rosto e bebeu água. Estava tremulo, mas não entendia porque, assim como não conseguia entender a reação das pessoas. Olhou seu reflexo na água. O moleque que olhou de volta era magro, de cabelos rebeldes e olhos verdes. Não era nenhuma aberração. Mas então lhe ocorreu o quão estranho era um adolescente mirrado render um homem forte e alto sem nenhum dificuldade. Olhou para as mãos, como se pudesse encontrar alguma resposta nelas. Aberração. Ele era uma aberração.
===== // =====
Já era quase noite quando Yoannis acordou. Adormecera junto ao lago, e agora seu estômago roncava. O céu avermelhado estava sombrio, como se refletisse a dor em seu peito. Olhou em direção ao vilarejo. Era o último lugar que ele gostaria de visitar nesse momento, mas não tinha escolha. Precisava achar alguma pista do paradeiro de seu pai, qualquer uma. Mas dessa vez ele seria mais cauteloso. Começaria perto de onde antes estava sua casa.
- Ei, você! Aberração!
Yoannis se virou a procura da voz sussurrada que ouvira. Um rapaz se escondia na esquina escura próximo de onde antes fora seu lar.
- Eu sei quem você é. Você é o filho de Yoannis, o tenente, não é?
- Sim sou, e quem é você?
- Sou Heitor, seu vizinho. Não se lembra de mim?
- Lembro, claro....
Mas ele não se lembrava. Quando morava ali ele não costumava brincar com as outras crianças, pois essas costumavam caçoar dele por ser tão magro e pequeno.
- Eu vi o que você fez com o cara que ia bater no meu pai. Queria te agradecer.
Um balão de esperança começou a crescer no peito de Yoannis.
- Você deu um baita susto na gente. Meu pai achou que você ia bater nele também. Mas eu achei o máximo o que você fez! Como ficou tão forte? Você não parece forte...
- Tem alguma notícia do meu pai?
- Ninguém mais soube de vocês desde aquele dia. A gente foi embora daqui no dia seguinte ao ataque. Quase todo mundo foi. Depois meu pai achou que não fazia sentido morar de favor sendo que a gente tinha nossa casa aqui, e voltamos. Mas quase ninguém voltou.
O balão estourou.
- Preciso encontrar meu pai. Não sabe de algo que possa me ajudar?
- Desculpe. Tudo o que restou da sua família aqui foi o túmulo da sua mãe. Meu pai não achou certo fugirmos sem antes enterrá-la.
Um rio de lágrimas começou a brotar do peito de Yoannis com a força de um gêiser, mas ele se segurou e não deixou vazar pelos olhos.
- Me mostre... por favor.
Ele achava que seria levado ao cemitério, mas ao invés disso Heitor o levou para uma frondosa árvore que ficava atrás da casa dele. Aos pés da árvore havia uma pedra lavrada onde havia sido entalhada a frase: "Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos".
- Seu pai vivia repetindo essa frase ao meu quando serviram junto no exercito, e ele achou apropriado. Estávamos sem esperança naquele dia e ele imaginou que se você ou seu pai voltasse, seria apenas seus corpos para serem enterrados com ela.
O pai de Yoannis contava histórias de viagens que havia feito antes de conhecer sua mãe. Segundo ele, o lugar que mais lhe marcou foi a capela dos ossos em Évora, cidade portuguesa. Aquela frase ficava na entrada do local. Realmente apropriado. Não conseguiu mais segurar as lágrimas. Recusava-se a acreditar que seu pai também estivesse morto. Preferia pensar que partiu em busca do filho perdido. Era sua culpa seu pai não estar ali.
A pedra rachou como se fosse feita de areia quando Yoannis a socou, a raiva de si mesmo substituindo a tristeza. Ao fazer isso, um leve brilho chamou sua atenção. Havia um colar embaixo da pedra. Yoannis conhecia bem aquele colar, afinal seu pai nunca tirava aquele camafeu do pescoço. Quando o abriu, deixou cair um mapa dobrado, mas seus olhos se fixaram na pequena escultura lavrada dentro do colar. Era sua mãe. Mas a beleza daquela arte não fazia jus à beleza de sua mãe. Pegou então o papel que caíra e, ao abrir, uma mistura de alegria, esperança e dor se apoderou dele, pois no verso do mapa estava escrito:
"Meu querido filho, espero que não se zangue comigo por levar-lhe aos idosos que têm cuidado de você durante esses anos. Espero que nunca precise voltar para casa e que esse bilhete pereça no esquecimento. Mas se tudo der errado, e você estiver lendo esse bilhete, no mapa está indicado o local para onde parto em busca dos assassinos de sua mãe. Por favor, apenas me siga se não tiver encontrado a felicidade e se não lhe restar alternativa. Do pai que nunca deixou de lhe amar, Yoannis."
Com as mãos trêmulas, virou o mapa. Nele estava marcado o monte Etna, na Itália.
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