
🥇 I.| Aventura em Ação: Personagem
Dizia-se que os Deuses, de tempos a tempos, enviavam os seus representantes para o mundo dos mortais. Aparentemente humanos, esses indivíduos eram portadores de inexplicáveis e surpreendentes habilidades sobrenaturais. Uns com poderes elementais, outros astronómicos, outros artísticos, outros mentais. As lendas há muito perdidas contavam as aventuras e as desventuras daqueles que abençoados eram por uma divindade que, por motivos tão complexos que não eram passíveis de interpretação à pequenez humana, decidia enviar um modelo da sua grandeza com uma façanha épica a ser cumprida.
Uma figura de estatura média, com os seus 171 centímetros, cobertura capilar ondulante da cor do chocolate que faz as delícias às crianças, galgava a passos largos as esquinas das ruas noturnas. Passadas firmes, olhar verde-água confiante, expressão carismática. Com um sorriso no rosto que brilhava com as luzes de tons néon da cidade de 2056, o recém-formado engenheiro de IA ambicionava alcançar a porta do seu acolhedor apartamento.
Não tardou a que o seu desejo se concretizasse. Assim que abriu a porta, uma bola de pelo verde de cauda a abanar veio receber o jovem de vinte e quatro anos.
- Abacate! - Cumprimentou o rapaz, acariciando o cachorrinho Golden Retriever.
Kasle Yguz podia se congratular de ter como companheiro um cãozinho com um pelo de uma coloração raríssima, quase marciana. Porém, explicava-lhe o veterinário que aquele tom típico de planta não era permanente. A condição justificava-se pelo contacto acidental do feto do pequeno Abacate com um pigmento de nome biliverdina ainda no ventre da mãe.
Estranhamente, a tonalidade verde anormal era algo que o jovem e o animal partilhavam. Fizesse Kasle um corte inadvertidamente e ver-se-ia um líquido de cor esverdeada a esvair-se das veias. Concentração anormal de enxofre no sangue, causada pela sulfemoglobinemia de que o engenheiro padecia.
O rapaz sentou-se no sofá, seguido do canídeo que suplicava por mais mimo. Olhou pensativo através da grande janela que dava acesso à varanda: àquela hora tardia, a cidade futuruniana brilhava como uma estrela pulsante. Cores de toda a espécie, lâmpadas por todo lado que substituíam o Sol diurno. Que contraste resplandecente com a ordem natural que se vivia nos campos rurais da nação de Futurus! Filho de mãe e pai humildes, proprietários de estufas automatizadas, Kasle, ao atingir a maioridade, mudara-se para o ambiente citadino imparável por motivos de estudo. Único descendente do casal, o rapaz recebeu instantaneamente o apoio dos seus progenitores. Ao princípio, a separação seria difícil. Mas era a vida de um homem que se fazia. O jovem manteria o contacto via online e visitaria os ascendentes rotineiramente.
Imerso em pensamentos nostálgicos motivados por lembranças com mais de cinco anos, o rapaz nem se apercebera do aproximar de uma tempestade que prometia ser ribombante. Se se ouviam trovões, também haveria relâmpagos. De facto, um flash de luz súbito sobrepôs-se ao cintilar da cidade. A pele branca ligeiramente bronzeada do jovem não tardou a cobrir-se com gotas de suor assustadas. O coração palpitava descompassado. O temor percorria-lhe a espinha. Tivesse um buraco onde se enfiar e o recém-formado de lá não sairia até que as nuvens se desvanecessem por completo e o astro-mestre voltasse a iluminar a Terra com o seu conforto.
Dizem que devemos enfrentar os nossos medos. No entanto, nem toda a coragem do Universo seria suficiente para apagar totalmente uma fobia. E Kasle sofria de ceraunofobia. Relâmpagos eram fenómenos stressantes para o jovem, desde a mais tenra infância. Talvez estivesse relacionado com o seu calcanhar de Aquiles. Desde pequeno, revelara habilidades um pouco fora do normal. Capaz de se comunicar com sistemas tecnológicos mesmo antes de saber falar, em adolescente um espetro divino invadira o seu quarto de miúdo estudioso decorado com livros de ciência complicada. A criatura desafiara o rapazeco para uma partida de xadrez, jogo de tabuleiro do qual Kasle se podia dizer um exímio jogador. O ser, que se apresentara como o Deus da Tecnologia, de quem as lendas nem uma breve menção faziam, ganhou a partida. Era um indivíduo inteligente, de raciocínio rápido. Informou o adolescente de que o tinha escolhido à nascença para ser a sua encarnação no mundo dos mortais.
Kasle ficara um pouco confuso. Lendas não eram reais. Desde então, estudava afincadamente as histórias antigas há muito esquecidas. Contavam façanhas de gente que adquirira poderes de todo o tipo, relacionados com os atributos do seu protetor sobrehumano. Costumavam enfrentar desafios banais que os conduziam a missões de soberba importância para o Destino do mundo. Mas nenhum alertado tinha sido para a perigosidade das suas habilidades. Para além de conseguir, em pensamento, controlar toda a espécie de sistemas informáticos, criar e destruir tudo quanto era tecnologia, transformar-se total ou parcialmente num holograma de cor azul, sintetizar uma cobertura metálica protetora e possuir uma inteligência e capacidade de raciocínio lógico totalmente fora dos padrões, Kasle tinha a capacidade de salvar ou dizimar toda a Vida e, em especial, a Humanidade. A divindade dissera-lhe que a sua virocinese era uma consequência da tecnocinese. O jovem podia escolher entre a cura das doenças mais complexas ou a arma biológica que ditaria o fim dos seres vivos. Não eram apenas as entidades tecnológicas que deviam temer o engenheiro de íris verde-água e pele com reflexos azulados que se intensificavam com a utilização dos seus poderes, mas também os seres biológicos.
Dilemas filosóficos à parte, Kasle procurava ser o herói e evitar o vilão que vivia dentro de si. Jovem afável que cumprimentava toda a gente (caso raro na sua época), amigo da família, rapaz divertido, prestável e bem-disposto, assim era Kasle Yguz. Preferia sempre a verdade à mentira e à omissão. Se havia coisa que detestava, era gente cínica.
Kasle olhou de novo para a janela. A noite já ia a meio e a Lua estava alta. Não havia nada mais belo do que a harmonia e o silêncio noturnos.
O jovem, noctífilo como era, sentiu inspiração para avançar mais um pouco nos projetos da empresa em que trabalhava. Ligou a música e preparou uma chávena de chá. Com Abacate ao lado, estava criado o ambiente perfeito.
(999 palavras)
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