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— Ó diwanti, então realmente eu estava certo de vir até aqui! — disse Imeral logo que avistou a deusa no meio da clareira do Bosque de Kēndapradiz, esplendentemente branca e soturna. A seguir, por decoro, fez-lhes uma longa e solene reverência, no quê foi acompanhado por seu confrei Edril. — Folgo em rever-te depois de tantos ciclos do tempo, deusa soberana!
Com o olhar perdido nos próprios pensamentos, a deusa apenas deu alguns passos aparentemente a esmo e, por fim, disse com dificuldade, como se tentasse se lembrar da língua dos homens:
— O que fazeis aqui, humanos? Por acaso, esquecestes-vos do pacto de inviolabilidade desse lugar? — Faltava-lhe a doçura de sempre no tom de voz, ainda que suas palavras soassem mais como um aviso do que como alguma repreensão. Era como se naquele momento não tivesse esperanças de ser compreendida.
— Não ousaríamos te desrespeitar, nem há hostilidade em nossas intenções, diwanti. O pacto a que te referes por certo não nos nega o acesso ao teu santuário em casos de força maior. Então aqui viemos averiguar a respeito de nosso aprendiz que se perdeu e não só por que requeríssimos teu auxílio, mas, sobretudo, porque fatos estranhos sucederam nesse mesmo local e gostaríamos de saber o que realmente aconteceu. — Explicou Imeral com palavras cuidadosas, pois Kanda não parecia em sua razão perfeita.
"O que será que aconteceu aqui, sBrat?", projetou Imeral seus pensamentos para seu companheiro. "Kanda parece fora de si. Sentes como o albedo emana dela de forma estranha".
"Sinto isso também, sBrat", concordou o maghi conhecido como o Visionário."E vê ali no meio dos lírios se não é o Cetro de Aythir? Será que Kanda...?"
— Vosso aprendiz, ó maghim! — Interrompeu a deusa subitamente o colóquio mental dos dois. — Vosso aprendiz está morto agora e nenhuma esperança há para ele... Aliás! Sua inconsequência foi tamanha que colocou esse mundo em xeque! — Kanda parecia desesperada. — No entanto, o que podem as criaturas diante das tremendas forças que governam o universo, senão renderem-se a elas...?
— Não entendo, diwanti... — protestou o maghi conhecido como Glorioso. — Mas como as ações de um simples ghmane poderiam acarretar em uma tragédia tão significativa para a existência de Aldamā? Qual o interesse dos deuses nele?
— Ó maghim, sábios e mestres entre as raças dos homens, ainda, porém, não tendes sabedoria para saber que as forças reais que subjazem às formas aparentes e até mesmo aos poderes mais sutis que governam esse mundo não são controladas por as mesmas leis que decretam. Pouco sei evidentemente, mas muito ponderei sobre e se tenho mais perguntas que certezas em relação a esse assunto, mesmo assim posso dizer que nenhum ser nesse mundo existe ao acaso. Ayth*, o que precede a tudo, é insondável e está em todas as coisas, de maneira que um verme regido pelo misterioso propósito do Grande Aythir pode mesmo destronar um deus. É assim que por causa de Erastos o sangue de inúmeras vidas será semeado em breve! — E o termo que ela usou para se referir ao sangue semeado foi edhsantir *, palavra que na língua dos antigos veio depois a denominar o próprio Erastos.
*
— É tarde agora! Se podíamos fazer qualquer coisa para corrigirmos o curso dessa Gesta, falhamos decerto. — Lastimou-se Kanda ao lembrar de tudo que havia feito para ascender à condição de soberana de Aldamā; e de como, naquela vez, encontrara sua irmã na mesma situação, totalmente desolada e humilhada, sem forças sequer para suster o Cetro e se opor a quem lho tomava das mãos.
— O propósito por trás dos eventos que conduzem esse mundo não está sob meu controle no fim das contas — a voz dela vinha em tom de lamúria. — Mas não é só meu Pai quem ronda a existência, devíeis saber. Assim, quando pela primeira vez vim a esse mundo, eu percebi que existia algo mais... Algo que se dispersava em todas as coisas e criaturas como que os impregnando. Era, entretanto, diferente do aythir, algo pesado, pegajoso, escuro. E eu era ingênua demais para entender o que era, mesmo quando tentava se insinuar em meus pensamentos com ideias perigosas e destrutivas. Por muito tempo, o ouvi sussurrando seu lamento, sua obsessão pelo poder, seu ciúme e avareza. Mas eu detestava essas coisas e sonhava um mundo de beleza para todos os seres de Aldamā. Então plantei esses lírios sagrados como um instrumento para contrapor o poder d'Ele e fiz com que cada uma dessas delicadas flores emanasse meu albedo, silenciando sua voz, anulando Seu apelo ao desprezo, ao ódio, sua incitação à violência... Aqui nesse Bosque, surgido nos tempos de minha irmã Aldamā, antes das eras dos homens, eu plantei meu jardim de lírios para que a partir desse lugar o mundo se curasse. Mas uma era toda é breve demais para o esforço que resolvi empreender e agora não resta mais tempo e minha obra ainda está incompleta... E Ele agora recebeu de Erastos uma nova chance de entronar-se sobre esse mundo e voltará com toda força para promover uma nova era de sangue e violência...
— Ó diwanti, diga-nos: Quem é Ele de quem falas? — ousou interrompê-la Imeral realmente comovido com a dor de Kanda.
— Sem nome ele é, maghi! — explicou a deusa. — Nascido sem nascimento, sombra em escuridão, está em tudo e nada é. Chamam-no Māt, chamam-no fim, abismo, o caos e o mal. Mil nomes para quem nega todos os nomes. Esquecido e não mencionado, avaro de todas as coisas, arrasta-as à destruição. Guerra e Doença são seus instrumentos, sorrateira e violenta são suas formas de agir... — E à medida que proferia essas palavras a deusa se tornava cada vez mais abatida e soturna como se atraísse para si o mal de que falava somente por trazer à tona seus atributos.
— Basta, diwanti! — interrompeu-a Edril, consternado. — Não te deixes abater por esses pensamentos terríveis! Precisaremos em breve da tua força! Por isso, peço-te que não abandones o Cetro nesse momento de tantos augúrios sinistros.
— É tarde, mestre dos homens! Muito tarde! Vê o que sucede acima de nossas cabeças, no manto azul do páramo? Como declina meu astro e o de minha irmã Alaya ascende à posição dominante? Nas mãos de Kron, senhor das joias está o poder de reger as formações astrais e essa nova configuração significa apenas uma coisa...!
Subitamente soou uma risada que parecia vir de todos os lados do bosque de Kēndapradiz, reverberando nas árvores e nas ervas rasteiras, constante e ritmada como um arranhar de rochas, como torrentes d'água se chocando contra o fundo de um precipício. Era um som que existia desde antes das eras dos homens, desde antes da era do primevos e vibrara nas profundezas do abismo do Caos, mas que agora soava mais jovial e feminino...
— Quanta presunção! — E logo depois ouviu-se uma voz vinda de fora da clareira que dissipou de vez o som daquela gargalhada tétrica. — Se eu estivesse em tua posição, irmã, certamente puniria a irreverência desse humano tolo.
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