- III -
Um grande rumor de convivas preenchia os salões de mármore branco do Arquimago Albion, o Decano, na noite terrível de Edhisendil. Em meio às risadas da corte aslabadiana, enquanto saboreavam o generoso banquete que os maghim lhes concediam, alguns dos notáveis de Thalindari os assistiam com seu comedimento habitual.
Como não careciam de comida, eles apenas observavam os comensais, curiosos em entender as reações às especiarias e guloseimas demonstradas pela raça nova dos hýbrikim; tão similares, no fim das contas, às que um dia eles mesmo tiveram, antes de se tornarem os poderosos magos que dominaram todo o mundo.
Isso, no entanto, fora há tanto tempo que não restavam em suas mentes meticulosas e impassíveis sequer lembranças de suas próprias sensações, mas, por ocasião, tinham um mero interesse técnico e analítico em relação ao comportamento deles, típico de seu estilo de vida totalmente dedicado à busca do conhecimento.
O Arquimago, por sua vez, em seu tradicional manto branco, exibia sua longa barba tão alva quanto suas vestes e, um pouco distante dos outros, parecia-se com uma estátua ebúrnea, ocupando uma das extremidades da mesa principal.
Tinha ao seu lado direito o general Zolath e à esquerda a princesa Alaya, que ainda que tivesse recebido os cuidados de suas aias, que lhe vestiram de seda dourada e prata de seu país, exibia uma aparência cansada e circunspecta.
— Ó majestoso Albion, fico honrado de mais uma vez estar em vossa presença com tão grandes honrarias que não cabem a mim, homem de armas, mas são dignas de um rei. — Foi a fala do general, como para romper o silêncio do impassível mago que lhe parecia desagradável e estranho.
— A hospitalidade é um dever, caro Zolath. E fico satisfeito de que algo na tua visita à eterna Thalindari o tenha, por fim, agradado. Espero mesmo que o espírito cordial de nosso encontro inspire tua consciência e que o leves também a tua amada terra.
— Oh! Certamente, honorável! — Concordou, no fundo desgostoso do que significavam essas palavras em relação às intenções de sua visita à Cidade Lótus.
E logo disfarçando o que passava por seus pensamentos, tentou mudar de assunto:
— E quanto ao honorável Isoutur, não teremos a honra de sua presença? — Usava um tom mais frívolo, para disfarçar alguma intenção que possuía.
— Creio que meu confrei esteja indisposto. Não devemos tê-lo conosco esta noite. — Respondeu desinteressado o nobre Decano, escondendo que a ausência de Isoutur também o preocupava.
— Oh! Que lástima! — tentou Zolath disfarçar sua enorme frustração e logo mudou o assunto. — Gostaria por ocasião de pedir desculpas pelas preocupações causadas em decorrência do passeio de sua alteza Alaya... Refiro-me ao suposto rapto do jovem incumbido de guiá-la. Repreenderei meus homens pela negligência e apurarei os fatos a fim de saber por que somente o guarda real Luhir estava em seu posto.
— Cala-te, Zolath! — interrompeu-o subitamente a jovem filha do rei Shwali. — Não importunes mais o honorável Arquimago com assuntos pertinentes a nossa embaixada! – O tom dela era seguro, embora cansado.
— Mas é c-claro, Vossa Alteza! — Disse o general engolindo a seco a afronta.
— Se me permites, yunē — emendou o maghi, aliviado com a interrupção oportuna da jovem princesa, pois não suportava mais a fatuidade de Zolath, — gostaria de saber algo mais sobre os fatos ocorridos em Kēndapradiz...
— Estai à vontade, honorável.
— Bom! Teu relato mais cedo foi um tanto confuso, com toda razão, mesmo porque viera no calor dos acontecimentos. Ademais, não julguei conveniente te importunar naquele momento... Mas peço desculpas se estiver sendo indelicado diante de uma situação no mínimo preocupante...
— Não há necessidade de desculpar-vos... Perguntai-me o que quiserdes! — E por um instante ela esteve como os olhos baixos como se ruminasse alguma coisa. — Por oportuno, honorável, devo admitir que temia muito vos conhecer de princípio... e só agora entendo o quão estapafúrdia fora a missão desta embaixada. Todavia quero confessar que, a partir de nossa estadia em Thalindari, tenho-vos realmente por um amigo, meu e de Aslabad. — E delicadamente a princesa repousou sua mão sobre a do longevo Decano dos maghim.
— Alteza! – reagiu de imediato Zolath. – Os protocolos! — E se voltando a Albion: – Mil desculpas, honorável! Peço-vos que perdoeis a impertinência de sua alteza Alaya.
— Não cuides disso, general! Muito me agrada o entusiasmo juvenil e puro da filha de Shwali. — Embora não houvesse nenhuma expressão no rosto pálido e inumano do poderoso maghi, dir-se-ia que tinha um ar bonachão. — E mais te digo: Esta Gesta se acabará em breve e com ela meus dias e da utopia de paz de Thalinadari... Virão guerras sobre o mundo, a guerra que vós, homens de espada, tanto esperais. Mas folgo em saber que uma jovem como esta terá a coroa sobre a sua cabeça e que não permitirá que a barbárie dure novamente toda uma era. Ela me é uma grata surpresa, caríssimo!
— Evidentemente... — balbuciou Zolath, retraindo-se diante da fala comedida, mas direta, do anfitrião.
— Não nos interrompas mais, senhor general. Tiveste já tua audiência com o honorável Decano. Deixa, pois, que eu tenha um breve colóquio com ele. — E a seguir dirigiu-se novamente ao Arquimago, dando tapinhas na mão do ancião e sorrindo-lhe gentilmente. — Mas diga-me o que queres que eu esclareça.
— Falaste mais cedo em teu relato de um espelho. Segundo entendi, foi através dele que pudeste ver a face da Rubra...
— Exato. Até então imaginava que ela fosse tão só uma ninfa protegendo o sagrado bosque, como sói acontecer nos cantos de herois. De modo algum, passava-me pela cabeça que pudesse ser a soberana Kanda, embora o nome daquele lugar lhe fizesse referência. Todavia ao refletir-se no espelho que o mestre metalúrgico lhe dera, vi um outro rosto... ou o mesmo, que seja! Sei que aquela pessoa que se refletia no espelho tinha, ao invés do que eu via, os cabelos ruivos como sangue e malícia e cólera nos olhos. Disso presumi imediatamente que fosse não uma ninfa, nem mesmo Kanda, mas aquela chamada de a Destronada : Aythila.
— Tens razão de o pensar assim, yunē. Mas me fale sobre o espelho...
— Era esplêndido, uma obra de perícia invejável. Não resta dúvidas que fora feito do mais puro e precioso aço dracônico e certamente entalhado e polido por refinada arte mágica, embora parecesse, devido a certas assimetrias, que alguns detalhes não estavam totalmente acabados.
— Interessante! Muito interessante, visto que não temos minas de dragonita há muitos milênios... E nem mesmo temos produzido artefatos mágicos tão complexos... E não me recordo de que tenhamos inventariado nada semelhante a um espelho desde a fundação de Thalindari. A não ser que... — Esboçou uma conclusão o honorável Arquimago, mas que não ousou concluir naquele momento.
— Posso-vos garantir, honorável, que tal objeto também não veio com nossa embaixada. — Disse Alaya, silenciando provisoriamente o que supunha ser a suspeita do ancião. — Mesmo porque, ainda que tenhamos dragonita abundante em Aslabad, falta-nos a tecnologia para produzir esse tipo de artefato. E os poucos que temos em nosso território foram adquiridos através de comércio com Thalindari.
— Então Isoutur nos enganou... — Resmungou subitamente Zolath consigo mesmo. Compreendendo o que acontecera de fato e que tipo de imbrólio ele e o rei Shwali haviam sido enredados. E ao erguer os olhos novamente, reparou que tanto a princesa quanto o Arquimago o observavam com semblante grave e inquiridor.
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