- II -
Na fronteira mais ao norte de Maghidom, começavam as terras dos srafim, kelons e grusim, todas raças meio-humanas que a um tempo serviram Thalindari, mas que na segunda era haviam rompido suas alianças com os maghim, estabelecendo o Reino Triétnico de Nofanhil.
Não se tratavam de inimigos, embora a traição à Aythila houvesse despertado a cautela dos três-povos e seu afastamento respeitoso, mas ainda assim assertivo. Por isso mesmo, é verdade que não seriam tolerantes a qualquer atividade estranha em suas fronteiras e, desta forma, pode-se assegurar que nada sabiam do que se passava naquela noite tétrica nas cabeceiras nortistas do Rio Izi'avon.
Ali, no lado ocidental do caudaloso rio, erguia-se numa linha de leste para oeste uma dezena de picos em onda crescente na direção da noite eterna, como o gigantesco espinhaço de um dragão, chamados Kvarkala. Sempre sinistros e povoado por sombras hirsutas e ululantes.
Nesse lugar, percorrendo o labirinto de desfiladeiros, chegava-se a uma velha caverna, semifortificada não se sabe quando nem por quem, mas que ora servia de esconderijo para um milhar de pequenos seres, se é que se podia chamá-los de seres, cuja forma lembrava vagamente a figura de um homem, mas com toscos rostos feitos de argila, em que três furos faziam vezes de olhos e boca.
Não demorou para que os homúnculos começassem a correr de lá para cá e a emitirem sons cavernosos de suas improvisadas bocas, quando avistaram o maghi a quem serviam chegar.
Por uma centena de anos e em absoluto segredo, trabalhara Isoutur naquelas cavernas, aguardando com prudência o momento certo de agir, estudando e analisando cuidadosamente um jeito de vencer a previsível guerra a ser trazida pelo ser mais cruel que já vivera em Aldamā, sua própria criadora e de seus irmãos: Aythila a Rubra.
Não é à toa que fora um dos primeiros a sustentar a necessidade de destroná-la, ainda que temesse a volta dos primevos, a reboque disso.
Para o mago metalúrgico, a verdade era que Jamasur sempre fora o fiel da balança, o único poder capaz de conter os abusos de lado a lado e pôr um fim à guerra.
Todavia quem teria condições de lhe propor um acordo? — Perguntava-se o maghi, por retórica, mas no fim das contas resignado. E ademais o dragão, conquanto não houvesse intervindo na grande guerra de humanos e primevos ainda na Primeira Era, no fim das contas era um deles, o mais poderoso deles...
Depois de longos minutos envolvido nesses pensamentos, o maghi balançou a cabeça afastando rapidamente aquelas dúvidas inúteis. Há muito, convencera-se de seu sagrado dever e de que não havia mal no mundo que sobrepujasse a crueldade de Aythila. Por isso, não havia motivo algum, nem qualquer culpa que se autoimpusesse, impedindo-o de fazer o que devia fazer.
E pouco mais cedo, os próprios deuses como um sinal e uma dádiva o haviam presenteado com algo raro! Algo cujo potencial, mesmo com todo seu conhecimento, não podia sequer alcançar.
No entanto, como vinha se preparando por todos aqueles anos, tudo então parecia conduzi-lo para a descoberta de algo realmente grandioso. E embora temesse a própria ideia do que estava prestes a fazer e o preço a pagar pelo poder que tomaria nas mãos, nenhum temor ou arrependimento seria tão grande a ponto de impedi-lo.
*
Poucas horas depois da chegada do longevo maghi à Kvarkala, os diligentes homúnculos levaram ao centro da galeria principal de seu esconderijo um enorme molde de madeira, muito similar àqueles em que eles mesmos haviam sido moldados por Isoutur o Forjador.
Nesse momento, o mago, que trabalhava em uma bancada, voltou-se com ares de satisfação a uma das criaturas.
— Vamos, Adhamastor! Traga-o! — ordenou em tom de rara excitação.
A pequena criatura, que parecia mais inteligente que seus limitados irmãos, obedeceu o mais depressa que pode, colocando o grande cesto de palha trançada ao lado do molde de madeira.
A seguir, o velho maghi introduziu uma longa haste de vidro no meio do conteúdo macabro do cesto, retirando uma mostra generosa do sangue espesso de um pedaço irreconhecível do corpo de Erastos.
Voltando à bancada, Isoutur misturou o sangue coletado ao conteúdo de um tubo de ensaio, tratava-se de uma versão modificada da chamada seiva proibida*, em que viera trabalhando desde que estabelecera seu laboratório secreto em Kvarkala.
Por um longo tempo, observou curioso qual seria o resultado da mistura da substância com o sangue contaminado de seu aprendiz, cujo corpo fora completamente retalhado.
E depois de ter se tornado perfeitamente homogênea e luminosa, a solução entrou em ebulição espontaneamente, até que pode constatar com satisfação, transcorridos alguns minutos, que se tornara estável. O sucesso quase imediato de seu primeiro experimento com as duas substâncias deu-lhe esperanças de que pudesse concluir essa etapa fundamental de seu plano ainda àquela noite.
Antes, todavia, precisava realizar mais um rápido teste que sinalizaria ou não a possibilidade de levar a cabo o mais ambicioso projeto desde que se tornara um maghi, renunciando sua própria humanidade.
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