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Prelúdio ao Segundo Ato

"Grandes descobertas são sempre precedidas por pequenos passos na direção certa. O pequeno precede o grande. É menor em magnitude; ainda assim, indispensável."

- Postulados, de Nbami onoi-Wakon


Annk de Badd, Erdávia ocidental.

Quatro anos antes.

Era um tanto desconcertante o modo como esse boi orvoff estava há cinco minutos olhando para Tobbi. Observando, mastigando, bufando ar quente pelas narinas. Voltando a mastigar o feno. Ou talvez não estivesse olhando para ele. Talvez aquelas duas órbitas, grandes como o punho de sua mão fechada e iluminadas pela claridade lunar, estivessem apenas fixas por conveniência.

Talvez o boi estivesse apenas curioso pelo visitante incomum em seu estábulo.

Tobbi inclinou a cabeça para trás, suspirando. Seu corpo afundou ainda mais no fardo de palha em que estava deitado. Fazia frio. As mãos gélidas de Kallyeva estavam cravadas no ar estagnado do estábulo, que tinha cheiro de palha seca e fezes de orvoff, na luz da lua que entrava pelas aberturas na parede, e no lampião de gordura que ardia no alto, e que não trazia calor algum. Fazia frio, e ainda assim não era nada em comparação ao lado de fora. Onde, inadvertidamente, ocorria uma leve nevasca.

Dali a pouco, seus ouvidos captaram o ruído de passos sobre a neve. Nem sequer se moveu. Fosse um dos trabalhadores do seu pai que vinham renovar a palha dos estábulos, fosse uma das mulheres que trazia mais gordura para o lampião e comida para os bois, nada era motivo para ficar alarmado. Apenas continuaria deitado...

A porta do estábulo se abriu com um rangido prolongado. Os passos ficaram mais próximos. Em nenhum momento cessou o ruído do animal mastigando. Claramente, não era nenhum estranho.

- Tobbi? - perguntou uma voz conhecida.

Tobbi, ainda deitado, inclinou ligeiramente a cabeça na direção de Werlk. O outro rapaz, de cabelo marrom-avermelhado e uma pequena trança na sliva na nuca, respondeu com um meneio de sobrancelhas.

- O que você está fazendo aí deitado?

- Nada demais. Estava apenas pensando que o boi está me olhando demais - disse Tobbi num tom relaxado, e bocejou.

- Claro que está! Ele está pensando "por que merdas esse humano não me deixa dormir?". Consigo ver isso nos pobres olhos dele.

- Isso não é verdade - replicou o rapaz. - Ele já estava acordado quando cheguei aqui.

Viu que Werlk lhe extendia uma mão. Aceitou a contragosto, ficando de pé. Arrumou a camisa de lã e o gibão, que haviam ficado numa posição estranha quando deitara.

- Dobka está nos esperando - disse Werlk, num tom neutro. - Com as garotas.

Tobbi torceu o nariz, receoso.

- O que foi? Agora vai dizer que não quer ir mais? Sabe que elas só aceitaram porque dissemos que você estaria lá, não sabe?

- Ah... mas essa nevasca. Não sei...

Werlk fez uma expressão irônica. - E desde quando uma nevezinha já nos impediu de encontrar com algumas garotas?

- Até hoje, nunca.

Mas não era sobre isso. Não era sobre nada disso. Droga, Werlk e Dobka eram seus amigos, mas por que nenhum deles conseguia entender o que ele queria dizer? Não, não eram apenas eles. Seus irmãos e irmãs, as pessoas do annk, seus pais, o velho sábio-bruxo... ninguém parecia compreender o que ele queria dizer ao afirmar que precisava dar um tempo de tudo. Que estava sufocado pela vida no annk, e pelo que seria o futuro.

Talvez... fosse algo realmente difícil de entender. Como era para explicar.

- Está cansado do treino? - Viu que Werlk olhava para o seu braço, onde o corte de dois dias atrás ainda não fechara completamente.

- Não.

- Cansou dos encontros, então? Seria estranho, mas...

- Não é isso - resmungou Tobbi, cruzando os braços. - Pare de tentar adivinhar.

- Tudo bem, eu paro - O outro rapaz pareceu ceder. - Mas só se você parar de tentar inventar desculpas e vir logo comigo.

Tobbi suspirou. Não havia realmente um modo de distrair seu amigo quando havia algo ocupando toda a mente dele. Sem que precisasse se esforçar muito, sabia no que o outro estava pensando. Embora a noite não fosse das melhores...

Alcançaram a porta do estábulo sob o olhar distraído do orvoff, que ruminava sentado. O resto dos enormes e peludos animais dormitava tranquilamente, ignorando o vento e a neve que assolavam o lado de fora. Vento e neve que teriam que enfrentar, como dois filhos legítimos de Kallyeva. Era preocupante pensar no que se acostumara a enfrentar por uma mera noite de diversão; por isso, evitava pensar.

Na planície nevada, o vento uivava sem impedimentos, noite adentro. Não estava tão forte a ponto de ofuscar a lua, que espalhava sua luz prateada em todas as direções. Viam-se as casas dos agricultores, inertes e apagadas, árvores escuras desfolhadas e nada mais. O branco glacial estava em toda parte. Mais do que uma ideia, Tobbi sentia-o concreto no rosto e nas orelhas.

- É isso que eu não entendo em você - retomou Werlk, como se a conversa nunca tivesse se interrompido. Falava mais alto, para fazer-se ouvir por cima da nevasca.

- O quê?

- Você é um ksi sliva - disse o outro, fazendo gestos de grandiosidade enquanto caminhava. - O filho do landzkaar Letko Kalkiala. O herdeiro - Fez uma pausa, antes de acrescentar: - Todo esse annk vai ser seu, sem erro, quando o seu pai decidir que não é mais hora dele continuar. Todo Badd. Vai ser você quem vai ter que nos manter unidos, e protegidos.

Tobbi sorriu, desanimado. - Agora me fale algo novo.

- O que eu quero dizer, é que não entendo como pode ficar desanimado com a sua própria vida. Com o seu próprio futuro. Eu, se estivesse no seu lugar...

- Se você estivesse no meu lugar...

- Ah... - Werlk pareceu perceber o labirinto para o qual se encaminhava sozinho. - Para falar a verdade, para mim, poder treinar à vontade com a espada já seria o suficiente.

- Você pode.

- Não, não posso - O outro rapaz negou com a cabeça. Os dedos dele apontaram para a única trança que pendia, pequena, da própria nuca. - Sou um lavrador. E sempre serei. A função dos lavradores não é essa.

Tobbi limitou-se a assentir, sem que na verdade concordasse com aquilo. Não havia nada o que pudesse fazer. Tinha a impressão de ter tido mil vezes essa conversa, e com muitas pessoas diferentes; em nenhuma delas, o outro lado compreendera ou esforçara-se em compreender o que ele queria dizer. Se não havia compreensão... bem, o que ganhava em continuar falando?

Pouco depois, surgiu mais adiante algo que parecia um casebre abandonado. Madeira escura, teto baixo e suportando uma fina camada de neve, janelas cobertas por tábuas tranversais. À exceção do fato de que não havia nenhuma outra casa em volta, não havia nada que o diferenciasse do punhado de casas dos agricultores que haviam passado pelo caminho e que, a estas horas, estariam repousando tranquilamente sob o calor de uma lareira ou três camadas de um cobertor de pele velho.

E, à diferença dos anteriores, desse escapavam sons de conversa baixa, sussurros e interjeições.

- Estamos ouvindo vocês - anunciou Werlk, batendo na porta do casebre com as costas da mão enluvada. - Enfim, chegamos.

Ouviu-se uma movimentação do lado de dentro. Após o lamúrio queixoso de um ferrolho mal-cuidado, a porta foi aberta. Dobka foi quem apareceu à soleira, de costas para uma fraca, porém convidativa, fonte de luz.

- Já não era sem tempo - murmurou Dobka, franzindo suas sobrancelhas loiras em desagrado. Olhou para Werlk: - Trouxe o que faltava?

- Apenas uma. Mais, e o meu pai começaria a suspeitar que estão roubando a adega dele. Seria um problema.

Tobbi meneou as sobrancelhas, curioso.

- Vinho de alga - explicou Werlk, enquanto deixavam para trás a nevasca e entravam no casebre. Apontou para o volume incomum, sob a própria camisa, sorrindo. - Temos várias garrafas na nossa casa. Não que o meu pai tenha tanto como para gastar em uma garrafa desse vinho a cada Minguado. Mas, às vezes, ele esquece o que tem, então eu me aproveito.

- Tenho a impressão de que isso vai terminar mal para você, algum dia - ponderou Tobbi.

- Não duvido.

O interior era apenas um recinto, um espaço único parcialmente banhado pelo pequeno lampião bruxuleante. Estantes junto às paredes e ganchos caídos faziam supor que aquela devia ter sido uma casa de armas há algum tempo. Ou talvez o posto onde um mensageiro repassava as mensagens que chegavam pelos ratos-voadores. De qualquer forma, percebia-se que não era utilizado mais.

O cheiro rançoso da gordura do lampião assombrava o recinto.

Ajoelhadas junto à única fonte de luz e calor, três garotas sorriram ao vê-los. Eram bonitas, pensou Tobbi. As três de cabelo preso em tranças que não eram sliva, levavam colocados os vestidos vermelhos ou azuis de mangas volumosas, por baixo do colete escuro que se cingia às formas da sua cintura. Mas havia alguma similaridade estranha entre elas. Apesar da diferença de altura, e alguma variação na cor do cabelo, as formas do rosto tinham pontos em comum. Talvez... fossem parentes.

- Igna, Isvena e Ikveta - disse Dobka, apontando para cada uma delas. Depois, voltou-se para elas: - Esses dois são Werlk e Tobbi. Bem, já estamos apresentados.

- São irmãs? - perguntou Werlk.

- Sim! - respondeu a mais jovem, que devia ser Isvena.

- Bem que achei que se pareciam.

Tobbi tirou o seu casaco de pele de lobo que a neve umedecera, jogando-o de lado. Ali dentro, não fazia tanto frio para que precisasse dele. O gibão e a camisa de lã eram suficientes...

- Você que é o Kalkiala? - perguntou uma das garotas, que se aproximara dele e o observava de um jeito pouco avergonhado. - Você é bem alto!

Aquela era, sem dúvidas, Isvena.

- Tobbi Kalkiala, sim - disse Werlk, tirando a garrafa de vinho de alga e pondo-a no chão, à vista de todos. - Nosso futuro landzkaar.

- De um futuro não tão próximo, esperamos - completou Dobka. - Que a Mãe guarde landzkaar Letko por muitos anos!

- Isso é uma reunião de amigos, ou um comício de apoio ao meu pai?

As três garotas riram, enquanto os dois rapazes lançavam a Tobbi um olhar que dizia "não roube a cena, por favor". Sorriu, complacente. Em seguida, ainda sentados Dobka e Werlk começaram a disputar para ver quem conseguiria tirar a rolha daquela garrafa de vidro esbranquiçado. Nenhum conseguiu.

- Eu consigo - sugeriu Igna, estendendo a mão para que lhe dessem o vinho. Os dois rapazes entreolharam-se, receosos, mas terminaram cedendo. Com os dedos, primeiro, e depois com os dentes, a garota que parecia a mais velha das irmãs conseguiu sacar a rolha.

O pedaço de cortiça desprendeu-se com um estalido molhado. Isvena e Ikveta bateram palmas para a irmã.

- Uma habilidade admirável - observou Tobbi, fazendo Igna corar. - Mas... hmm, me digam que essa garrafinha não é tudo o que temos.

- Claro que não, gênio - disse Werlk. - Dob trouxe um barril inteiro de vinho. Cerveja também, mas acho que nenhum de nós têm muita vontade de tocá-la, por enquanto.

Dobka apontou para o barril oculto nas sombras, sob uma das mesas junto à parede.

- E tem algo mais especial e raro. Mas isso é para mais tarde.

Assim que distribuíram os copos de madeira, o sexteto começou a beber o vinho de alga. Apesar de não ser a primeira vez, aquele continuava sendo um sabor estranho para Tobbi: uma bizarra mistura de madeira, água do mar e álcool. O aroma também remetia a mar, longas costas de praias pedregosas e tomadas pelos recifes. E pelas algas. Era estranho que estivesse pensando nisso? Vinho de alga não era uma bebida leve. E pensar que tinha cruzado o mar, desde Iryeo, terminando na adega de um lavrador em Badd...

Sentado, não percebera o momento em que Isvena e Ikveta haviam ficado de pé, rodeando-o. Mexendo... no seu cabelo? O que havia ali para ver? Piolhos? Dobka, perto do lampião tinha o olhar perdido e um sorriso bobalhão nos lábios.

- É verdade! - ouviu Ikveta dizer, com entusiasmo. - São chifres mesmo! Pequenininhos, mas ainda assim...

- Eu não disse? - respondeu Werlk, parecendo se gabar. - Eles estão aí. Ainda que ele, nem ninguém, saiba do que são.

- Serão os corníferos?

A consciência de Tobbi retornou à superfície, com a menção daquela palavra. Afastou as duas de perto de si.

- Não toquem aí! - reclamou, irritado.

As duas garotas deram um passo para trás, relutantes. Mas, provavelmente pelo efeito do vinho, que já se manifestava nos rostos avermelhados de todos, não se criou nenhuma tensão a partir disso.

- Eu acho legal que você tenha chifres - comentou Igna -, mesmo que sejam pequenos. Não é todo dia que encontramos alguém que os tenha. Eu tinha um bezerrinho...

Tobbi assentiu, ouvindo-a falar de um bezerro orvoff de nome Osna que ela tinha ganhado do pai, e sabe-se lá mais o quê. Não conseguia se concentrar. O vento ululava do lado de fora do casebre, e no interior dele as cinco vozes distintas, que não cessavam, pareciam não carregar qualquer sentido por si mesmas. A chama do lampião ondulava diante dos seus olhos.

Ouviu seus lábios perguntarem onde elas moravam. Embora não quisesse realmente saber disso.

- Ah, nosso grupo costuma ficar ao sul do rio Koubola - respondeu uma delas. - Em anos ruins, às vezes chegamos mais para o norte. O capim daviano cresce melhor por aqui.

Tobbi sabia que, interior de um annk, os assentamentos não eram grandes ou permanentes o suficiente para que se pudesse chamá-los de cidades. Não era estúpido a ponto de não saber disso. Ainda assim, rio Koubola dizia muita coisa... não lembrava de ter ido tantas vezes ao sul.

De repente, fechou os olhos. Por um instante, a escuridão pareceu engolfar tudo.

O rapaz não soube dizer quanto tempo havia passado quando, ao abrir os olhos, deparou-se com um silêncio e uma quietude incomuns. E um pouco de frio. Estavam todos dormindo? À luz amarela, distinguiu quatro deles, deitados no chão e de olhos fechados. Pouco depois ficou consciente dos toques da quinta, cujos dedos deslizavam pelo seu peito descoberto.

Igna estava... quase montada em cima dele. Com a parte superior do vestido removida. Sentia os dedos dela deixando um rastro de calor pelo seu corpo.

- Parece que temos alguém bem resistente à bebida - disse ela, sorrindo maliciosamente. - Como eu.

- Bem, sim...

Tobbi deixou Igna brincar um pouco mais com os dedos, enquanto tirava ainda mais roupa. Depois puxou a garota para perto de si, beijando-a suavemente no pescoço. Sentindo-a estremecer. Procurou os lábios dela para tentar abafar os gemidos, que não tardaram em vir quando começaram a se mover. Deslizando um sobre o outro com avidez, dando vazão à ardência que se manifestava dentro de ambos. Compartilhando o calor que era o único refúgio contra a gelidez do recinto.

Algum tempo depois, tudo terminou numa sensação explosiva. E reconfortante.


- Não disse que valia a pena vir? - Ouviu a voz de Werlk cutucar as profundezas da sua consciência. - Você se deu bem na noite passada.

Tobbi abriu os olhos pesadamente, ainda sem entender o que esse infeliz estava querendo dizer com isso. Inalou o ar frio. O que é que havia acontecido mesmo, para sentir o corpo tão destruído? Estava deitado sobre as ásperas tábuas do piso, sentindo-se mais pesado que um tronco de pinheiro gigante caído sobre a neve. Era... tão difícil se mover. E não era só o corpo. Seus pensamentos pareciam as águas turvas de um lago parado. Dor de cabeça. Ah, tudo isso era apenas maldita ressaca.

De repente, espirrou. Coçou a ponta do nariz com as unhas, fungando. Piscou, abrindo grandemente os olhos. A luz que infiltrava-se por pequenas frestas nas janelas lacradas era branca. Suave. Manhã... Era de manhã!

Pensamentos começaram a brotar, como bolhas em água fervente. Agora lembrava tudo o que acontecera na noite passada. Lembrava... de tudo. Mas isso não tinha importância nenhuma, perto do fato de que já era de manhã. Não uma qualquer. O retorno do séquito do seu pai, que tinha ido resolver uma questão na capital, Sokobalmi. Dois dias de viagem; cinco de duração. Droga, não era como se tivesse verdadeira disposição de levantar cedo para estar presente na cerimônia de recepção do landzkaar, mas era questão de respeito. E obrigação. A estas horas, sua mãe e as criadas estariam procurando-o como loucas para "torná-lo apresentável". Era o mais provável. Isso, ou já perdera a cerimônia de recepção... e isso sim seria um problema.

Ao erguer-se, contra todas as reclamações do seu corpo, Tobbi percebeu que Werlk ainda tinha o sorriso jocoso no rosto. E ainda olhava em sua direção, deitado de lado.

- O que foi? - perguntou.

- Nada - disse o outro num tom fingidamente evasivo, coçando a virilha. - É só que, sabe, vocês realmente fizeram barulho ontem.

Tobbi piscou duas vezes. Dessa vez, entendeu o que o outro queria dizer.

- Ah. Fizemos? - murmurou, enquanto desviava de Ikveta, ainda adormecida. Agachou-se ao lado de Dobka, que parecia estar imerso num sonho agradável. Balançou-o pelo ombro: - Acorde, infeliz. Temos que sair.

- Não, mãe, não... - resmungou Dobka, virando-se para o outro lado.

Aquilo o fez franzir o cenho. Balançou-o ainda mais forte, dando um peteleco na orelha dele com os dedos.

- Para onde vocês tem que sair? - perguntou Werlk.

- Hmhmm... - soou o murmúrio de uma das garotas, sonolenta.

Tobbi suspirou. - Esse idiota, em teoria, é um olja de alta hierarquia. Eu sou um ksi. Não houve nenhuma nevasca muito forte, então imagino que a carruagem do meu pai vá chegar hoje de manhã. Se já não chegou. Dob e eu temos que estar lá para recebê-lo.

- A recepção do landzkaar? Ah, nesses momentos é que eu tenho orgulho de ser um na. Não precisar participar dela é uma bênção da Mãe para nós.

- Não precisava me humilhar falando disso, também.

Foi necessário mais algum esforço da parte de Tobbi para acordar Dobka. Ainda mais para obrigá-lo a ficar de pé. No fim, estavam os dois junto ao lampião apagado, de algum modo parados, mas com expressões que iam do preocupado ao consideravelmente incomodado e sonolento. No chão, de alguma forma, as três garotas ainda não haviam acordado.

- Acompanhe elas para casa, quando acordarem - indicou Tobbi a Werlk, desviando o olhar para as três.

- São dois dias daqui até o rio Koubola...

- Ha ha, que engraçado. Eu sei que você não estava tão bêbado quando elas disseram que tinham vindo visitar um parente, aqui no assentamento.

Werlk assentiu preguiçosamente, bocejando. Dando as costas para ele, Tobbi e Dobka saíram para o exterior. Para a branca e atenuada manhã que se desenhava nas planícies congeladas. Branco das nuvens leitosas que se espalhavam pelo céu, da luz fraquejante do sol matinal, e da neve que caíra sobre todo o terreno - o chão que pisavam, os telhados das casas, os galhos das árvores desfolhadas -, que dava a tudo um aspecto homogêneo e macio.

Tobbi separou-se do amigo quando os grupos de casas comunais começaram a ficar menos raras, mais próximas. Quando já viam-se grupos de lenhadores que espreguiçavam-se, bocejando, e os cumprimentavam ao passar. Desviou em direção ao centro do assentamento, fazendo seu caminho por cima da neve, que engolia as suas botas a cada passo seu.

Encontrou a sua mãe à frente da casa comunal do landzkaar. A sua casa. A mulher de feições duras, cujos fios de cabelo loiro-avermelhado escapavam do gorro felpudo que levava na cabeça, apertou os lábios ao vê-lo. Examinando-o por alguns segundos, em silêncio.

- Outra festinha, não é mesmo? - perguntou Heelmi, num tom de quase reprovação.

- Foi ideia daqueles dois. Eu... eles me levaram à força.

Ouviu-a suspirar.

- Sabe, garoto... fazer-se de vítima não é o melhor modo de se isentar da responsabilidade, sabe? Mas, pelo menos teve a decência de chegar aqui antes que o seu pai. Pelo menos, isso.

Entraram na casa. Ali dentro, a lareira engasgava-se com a lenha e cuspia calor a todo momento, mantendo afastado o frio do mundo exterior. Envolvendo tudo com o aroma da madeira de cipreste daviano, amargo e fumacento. Confortável. Tobbi ouvia o farfalhar apressado das saias das criadas e o tinir dos metais, enquanto posicionava-se ao lado da lareira de ferro forjado. Apoiados no espaldar de cadeiras mais afastadas, Lafinn, Vilki, e a pequena Ledya - seus três irmãos menores - tinham os olhos semicerrados pelo sono.

Tobbi levantou, resignado, os braços ao lado do corpo, enquanto sua mãe e uma das criadas tiravam as camadas mais exteriores das suas vestes. Era um tanto vergonhoso que ainda tivesse que ser vestido por outras pessoas que, apesar da idade consideravelmente maior, eram bem mais baixas do que ele. Apesar de saber que era pela tradição da cerimônia (o asseio do seu corpo, obviamente, só era relegado aos outros durante esses eventos específicos), ainda assim sentia-se como se fosse um inválido ao qual era necessário cuidar.

Era muito mais que incômodo. E ficava ainda pior quando tocavam nessas duas protuberâncias que quase se poderia chamar de chifres, que o próprio volume do seu cabelo sempre ocultava.

- Hmmm, mãe - murmurou, enquanto sentia dedos roçando o seu couro cabeludo. Espalhando pó de hibinshou para matar quaisquer pulgas ou piolhos, se houvesse algum. - É mesmo necessário isso tudo? Ninguém vai conferir o meu cabelo, quando eu estiver lá para receber o pai.

- Não tenha vergonha do que você esconde aí no cabelo - respondeu Heelmi, agora alisando os fios com um pente de madeira. - Eu já os vi muitas vezes. Mais importante do que isso, não se pode pular uma etapa importante apenas porque você quer. Precisa estar pronto para receber a delegação.

O pano úmido que a criada agora passava pelos seus braços e peito expostos não era mais do que um suave e tolerável roçar. Felizmente, ela parecia perceber os hematomas do treino, e evitá-los.

- Que delegação? - instigou Tobbi. - Agora uma pequena carruagem-trenó de paljas é uma delegação?

Heelmi o olhou como se não entendesse.

- Uma... carruagem-trenó? Do que você está falando, garoto? Sua Majestade está vindo com o seu pai. O rei e toda a delegação dele!

- O rei? Mas por que ele viria para aqui?

- Eu não sei - admitiu a mãe. - Chegou uma mensagem de rato-voador, ontem à noite. O seu pai disse que o rei retornaria com ele, para nos fazer uma visita. Não sei mais do que isso.

Tobbi assentiu, um pouco curioso. O que o rei Yerzo poderia querer em Badd? Negociar algum tipo de acordo? Não, se houvesse qualquer intenção nesse sentido, provavelmente já teria sido resolvido na capital. Receber a sua parte numa negociação (se é que alguma fora feita) também não faria muito sentido, já que mandar algum funcionário dele seria muito mais prático. Mas... visitar, talvez?

Desistiu de tentar formular qualquer hipótese ao primeiro sinal de dor de cabeça. Nunca havia se considerado especialmente bom nesse tipo de raciocínio lógico, algo pelo qual seu professor sempre se queixava, mas tudo ficava pior quando estava bêbado. Ou de ressaca. De modo que se manteve apenas com o que era realmente importante. O rei Yerzo estava chegando. O rei, obviamente, era alguém importante. Um herói em grande parte do território dos filhos de Kallyeva, e amigo de longa data do seu pai. Não devia ser nada grave.

Deixou que sua mãe e a criada terminassem de vesti-lo. O casaco de pele de lobo, o gibão de couro e a camisa de lã de antes, sujos, deram lugar a uma camisa de algodão comprida com bordados vermelhos, e um casaco mais leve e justo por cima. Um gorro felpudo haak, calças de tecido fino e botas de couro. Se chegasse a se olhar no espelho, se sentiria um idiota; fato que não se concretizou.

Então, em dado momento, sua mãe e a criada se afastaram. Balançando a cabeça com aprovação.

- Está pronto, Tobbi - disse Heelmi, com uma expressão satisfeita. - Quer que eu traga um espelho?

- Não. Quero ir logo para essa cerimônia, e então tirar essa droga de roupa.

- Hmpf - Ela suspirou. - Esse meu filho tem mesmo o sangue tribal puro nas veias. É uma pena.

Tobbi estava para dar meia-volta e sair, quando percebeu as mãozinhas da irmã levantadas em sua direção. E uma expressão de pedinte no rostinho.

- Posso levar a Ledya? - perguntou à mãe.

- Bem... imagino que sim - disse Heelmi. Pareceu se lembrar de algo. - Ah, mas não se esqueça de trazê-la de volta. Duvido que ela consiga achar o caminho para casa.

- Mãe, agora está me tratando como um idiota...

O rapaz foi até a criança, que o esperava sentada numa cadeira, e a ergueu com os dois braços. Colocou-a apoiada nos ombros e saiu.

Do lado de fora, a manhã estava tomada pelas pessoas do annk - lavradores, artesãos, soldados, caçadores - que o cumprimentavam ao passar. Cumprimentava-os de volta. Janelas abriam-se aqui e ali com baques, revelando rostos que fechavam os olhos ante o sol da manhã. O assentamento enfim despertava para mais um dia, percebeu. Talvez um pouco mais tarde do que usual, mas ainda assim despertava.

Enquanto caminhava para a ponta norte do assentamento, em direção à trilha da floresta que unia Badd e Sokobalmi, Tobbi viu aquele sentimento surgindo mais uma vez. Aquela inevitabilidade. Seria o próximo landzkaar de Badd. Após o seu pai, seria ele quem imporia o respeito e a ordem no annk, resolveria os problemas e o defenderia de ameaças dos vizinhos. As pessoas de todos os assentamentos dali confiariam a vida a ele, e para isso devia se mostrar digno delas. E, depois de muitos anos, morreria em Badd. Seu corpo seria dado aos ursos da floresta, e ele terminaria a vida sem saber nada. Sem saber o que havia com esses malditos chifres, e se qualquer uma dessas pessoas não teria feito melhor em seu lugar...

Será que não havia forma de mudar o que já fora determinado? De imprimir uma marca naquilo que considerava a sua vida? Será que tudo apenas era como parecia, óbvio e insosso, sem nenhum grande motivo por trás?

Meneou a cabeça, pensativo. Desanimado. Dali a pouco, divisou o grupo dos mais renomados guerreiros do annk, que haviam se reunido ao pé da torre de vigia na saída da floresta de pinheiros. Todos, conhecidos seus. Tendo o treinamento de guerra a importância que tinha, para um filho de Kallyeva, grande parte deles eram ou haviam sido parceiros seus nos treinos a céu aberto. Quase todos haviam tido a chance de deixar a sua pele roxa. Fato que, obviamente, ele retribuíra; embora não gostasse muito das brigas e da guerra.

Entre os homens do grupo, estavam Dobka e o pai dele, Karkka. O senhor, de expressão dura, era um dos Presas Brancas do landzkaar. Algo como um general em Naedh Taraj ou Shen Zi, lembrava do seu professor explicar. De todos modos, não era um mistério vê-los esperando pela delegação do rei.

- Jovem mestre - cumprimentou-o o homem, fazendo uma curta reverência.

- Olá, senhor Karkka. E Dob.

Dobka grunhiu qualquer coisa, sentado de má vontade na neve.

- Talvez queira saber que as preparações já foram todas feitas - avisou o homem. - Os tambores e a água fervente, como o seu pai baniu a Chuva de Sangue - Karkka ficou calado, por um instante. - Não estou me queixando.

- Eu sei - disse Tobbi, assentindo. Aquele homem referia-se ao ritual mais antigo que as pessoas usavam para honrar o retorno do líder após a viagem, e que datava de milênios: jogar o sangue quente de um caribu recém-abatido ao ar, e que, em contato com o ar frio, às vezes tornava-se algo próximo de uma névoa vermelha. Durava alguns segundos no ar, e então se precipitava na neve como uma chuva. - Sei que não está.

Tobbi suspirou, sentindo a respiração de sua irmã bem próxima dos ouvidos. Até que não estava tão diferente dela, pensou. Aquele vinho de alga, e depois o de uva comum... o haviam estragado por dentro. Não sabia como arranjara disposição de estar ali, a essas horas, esperando a chegada do seu pai e do rei. Se demorassem muito mais...

Mas felizmente, não demoraram. Começaram a chegar aos seus ouvidos os assobios estridentes de uma multidão de paljas, bichos estranhos que pareciam se comunicar enquanto puxavam as carruagens-trenó. Se conseguia ouvi-los, não estavam mais tão longe.

À medida que os ruídos se intensificavam, Tobbi percebeu que se sentia estranhamente nervoso. Não pelo seu pai, cujo tamanho intimidava as pessoas que não o conheciam, mas ao qual já estava acostumado. Pelo rei. Na Erdávia, dizia-se que era um herói. Muitas pessoas diziam que era um herói. Yerzo, o Sábio, era aquele que, depois de milênios, unificara todos aqueles annks distintos e indomáveis, que não raro enfrentavam-se em disputas fronteiriças, em um território parcialmente coeso. E, mais do que pela guerra, pela diplomacia. Como seria a aparência de alguém que consegue uma proeza assim? Não alimentava ilusões a esse -respeito. O rei, provavelmente, era alguém velho. Mas devia ter algo de heróico; se não tivesse, como teria mantido o consentimento e submissão dos landzkaari por tantos anos?

Seu pai dissera que o rei conhecera Tobbi quando era apenas um recém-nascido. Mas, desde então, não lembrava de ter encontrado ele nenhuma vez. Como realmente seria o rei?

- A delegação chegou - disse Karkka, enquanto mandava seus homens trazerem os caldeirões de água fervente. Um tambor começou a soar, do alto da torre de vigia.

Tobbi engoliu seco. Estivera devaneando. Como não havia visto aquelas três carruagens-trenó chegarem? Agora havia uma multidão de paljas parados à frente na neve, movendo sua cabeça coroada pelo chifre único, grasnando e grunhindo baixinho. Como se aproveitando do seu tempo de descanso.

O rapaz avançou até a primeira carruagem, precedido pela água fervente que, arremessada ao ar, tornava-se uma nuvem de vapor branco em queda. Precedido pelos vários tambores que haviam se juntado ao primeiro. Pelos murmúrios infantis e animados de Ledya, ainda sobre os seus ombros.

A porta da carruagem-trenó se abriu. O rei desceu.

- Sua Majestade, rei Yerzo Bargan - saudou Tobbi, curvando-se, sem ainda olhar para ele. - Seja bem-vindo a Badd. Como um Kalkiala, eu lhe dou as boas vindas. Que a Sua visita ao nosso annk possa ser das mais frutíferas.

Parou. Esperava ter feito tudo certo. Muitas vezes aquele sábio-bruxo, o seu professor, insistira em fazê-lo repetir essas palavras que acabava de pronunciar. Cerimônias... e mais cerimônias. Ao menos, esperava não ter errado.

O silêncio prolongado causou um estranhamento no rapaz. Ao erguer o olhar, encontrou a expressão sorridente e paternalista no rosto do rei. Um rosto bem mais envelhecido do que esperava, para aquele que carregava o sliva quádruplo. Mechas finas de cabelo branco, uma postura um tanto encurvada, e roupas não muito distintas das suas. E um rosto... sorridente. Havia feito algo errado?

De uma outra carruagem, desceu o seu pai. Letko Kalkiala. De um porte que, à distância, não seria incomum fazê-lo parecer um urso.

- Filha sua ou dele? - perguntou o rei num tom brincalhão, voltando-se para Letko, que vinha em direção a eles.

- Ledya é filha minha, é claro - respondeu o landzkaar. A voz era grave, mas serena. - Até onde sei, o meu filho ainda não me deu netos. Ou, ao menos, não os conheço.

Tobbi corou.

- Cresceu bastante, garoto - disse o rei, pousando amigavelmente uma mão no ombro do rapaz. O olhar do velho tinha um brilho incomum. - Cresceu bastante.

Tobbi acompanhou-os para o centro do assentamento, sentindo a irmã balançar-se animada na sua cabeça. O herói, o rei... não era nada como havia pensado. Não era... e ainda assim, de certa forma, era. Ele parecia saber de coisas que os demais não sabiam.

Talvez ele tivesse a resposta, a chave, daquilo que o rapaz procurava.


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*Baseei os paljas na arte conceitual desses bichos aí. Na falta de imagens... hehe

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