Interlúdio | A gema da vida
– Tio – ouviu a voz do seu sobrinho murmurar –, a sua mão está suando. O senhor está nervoso?
Renton voltou-se para o menino. Jinseng. Que nome totalmente estrangeiro haviam colocado nesse pirralho, sempre pensava. Mas era um tanto engraçado. Que Beyo tivesse concordado com essa exigência da esposa, não era algo a se estranhar. Como sempre, seu irmão provavelmente estaria bêbado no momento da escolha do nome.
Balançou a cabeça em negativa.
– Não estou nervoso, moleque – disse Renton, com franqueza. – Simplesmente é o que é. Foi a sua tia que me pediu, então não havia outro jeito. Apenas fique aqui, ao meu lado, enquanto esperamos elas tirarem as tortillas do forno.
– Mas eu quero brincar!
– Não. É exatamente isso o que estou tentando evitar.
Jinseng era o filho menor do seu irmão Beyo; um garoto franzino, moreno, que sempre arranjava uma forma de quebrar ou derrubar as coisas. Talvez fosse por isso que Eyna tivesse pedido a ele que tomasse conta do menino, não deixando-o entrar na casa enquanto terminavam de assar as tortillas para amanhã. Não era algo que fosse satisfatório admitir, mas o pai da criança dificilmente seria alguém que pudesse tomar conta dele. Então o fardo recaíra sobre Renton.
O camponês suspirou, sem soltar a mão de Jinseng. Apesar dos acontecimentos de quatro dias atrás, nada parecia ter mudado. O seu pai e os seus irmãos continuavam vadiando e bebendo, enquanto a gema fora guardada num cesto de vime na sala, sempre à vista de Eyna ou de sua mãe. Não mais se falava na pedra, e a vida retornara ao que sempre fora. Duvidava se esse era mesmo o melhor rumo para as coisas.
Ao seu redor, o fim da tarde de Crescente desenrolava-se enérgico, na cor intensa que pintava o céu e no canto dos pássaros que vertia da floresta ao fundo. Haviam odores de ervas e raízes no ar, típicos de Pandora.
Renton continuava a observar a frente da casa, ouvindo o ecoar das conversas e queixumes das suas cunhadas do lado de dentro, quando sentiu a aproximação de alguém pelos lados da visão. Virou-se. O sacerdote-chefe respondeu com um aceno, vindo em sua direção.
– Vossa Senhoria, senhor sacerdote-chefe – cumprimentou Renton, numa reverência desengonçada. Ao mesmo tempo, inclinou a cabeça de Jinseng para baixo com a mão livre.
– Quanta cerimônia, Renton. É mais velho do que eu, sabia? – respondeu Nórgal, com um sorriso. Sinceridade e parcimônia. Essas talvez eram as duas palavras que melhor definissem o sacerdote-chefe de Ponta Quebrada, um homem alto que mantinha sempre bem-aparados o cabelo e a barba. Quase rente ao rosto quadrado. O longo hábito vermelho e branco cobria-lhe o corpo como um grande lençol. – Desculpe não ter vindo antes. Estive velando pelos Naec. É uma pena o que aconteceu.
– O filho mais velho morreu, não é? – disse o camponês, e como se desculpando-se, acrescentou: – Bem, foi algo que ouvi a minha mulher dizer.
– É isso mesmo. De fato. Uma gripe sazonal. Foi mais intensa do que o esperado.
Renton assentiu. Ficaram um tempo assim, em silêncio. Nórgal que olhava para Renton, que encarava Jinseng, e o menino que olhava para os dois.
Finalmente veio a pergunta.
– Aliás, por que estão aqui fora?
– Ah, bem... – O camponês coçou a ponta do nariz, envergonhado. – Estou cuidando dele. Ano passado, o menino corria na cozinha enquanto tiravam um javali do forno para o Solar, e terminou se queimando. Desde então, não deixam ele livre nessas ocasiões.
– Bem... faz sentido – murmurou o sacerdote, enquanto sentava-se ao lado dos dois, no chão. Renton viu que ele trazia um saco às costas. Não havia percebido antes. – Então, só nos resta esperar, não é mesmo?
Renton assentiu mais uma vez, o que fez o rosto de Jinseng se torcer de desagrado.
– Por que não o trouxe para dentro, Ren? – Viu Eyna menear as sobrancelhas em descrença. – Deixou um sacerdote esperando!
– Desculpe...
Nórgal, que acabava de deixar o saco sobre a mesa, voltou-se para eles.
– Não é nenhum problema, minha senhora – assegurou, sorrindo. Balançou a mão, cujo mindinho estava cortado. – O tempo da Terra é o tempo do homem. Não há porque se preocupar pelo que não se pode fazer.
– Está sendo muito leniente com o meu marido, senhor sacerdote. Às vezes, é bom dar um puxãozinho na orelha dele – Renton gemeu.
– Talvez. Mas não creio que seja necessário tanto, minha senhora. Seu marido é um bom homem.
Nas fronteiras da sala onde estavam, toda a família ajuntara-se às paredes para ver o sacerdote trabalhar. Fosse lá o que ele fosse fazer. As mulheres, os homens, e até as crianças, tinham o olhar voltado para a mesa central com ar de crescente expectativa. Como se ele fosse tirar um junco shenziano do saco.
Renton coçou a cabeça de cabelos espetados, pensativo. Ainda que não estivesse à vista, lá estava a gema. Num canto, dentro do cesto de vime ao lado de uma urna. Invisível, mas cuja existência nunca seria algo a passar desapercebido. E, a dois passos de si, estava Nórgal. Um sacerdote da Igreja de Nossa Sagrada Igreja de Siach. Um representante do Deus da Terra. O homem mais indicado a lidar com aquela coisa. Se ainda quisesse se livrar dela, era a melhor chance que teria em muito tempo. Mas, para isso, teria que passar por cima de tudo o que haviam acordado, como família.
De repente, Nórgal tirou algo de dentro do saco. Um saquinho ainda menor, amarrado com uma fita branca. Renton viu-o ir até a sua mãe, sentada numa cadeira junto à parede.
– Sementes de ayyizim – revelou o sacerdote, depositando o saquinho nas mãos dela. – Como a senhora me pediu. Direto das florestas do norte de Naedh Taraj.
– Oh, muito obrigada, senhor Nórgal – disse Reni, apertando-lhe as mãos com fervor. – Que Siach o guarde!
– Não há de quê, senhora. Nós, como membros da Sagrada Igreja, temos mais facilidade para obter tais bens. Não há porque não usar esse benefício a favor de todos.
Nórgal retornou para a mesa. Tirou do saco uma garrafa escura, alçando-a diante de todos.
– Vinho de alga de Iryeo – anunciou. – Venha para cá aquele me pediu por ele – Renton viu Delin, um dos seus irmãos, dar um passo à frente, receoso.
– Não acredito que pediu por bebida, desgraçado! – a voz de Zaly ecoou, de uma outra direção.
– Me erra, mulher – disse Delin, sem tirar os olhos da garrafa. – Só se vive uma vez!
– Ainda assim, aconselho que tenha moderação, senhor – disse o sacerdote, antes de entregar a garrafa para ele. – Seu corpo é uma dádiva de Siach. Antes de retornar para ele, não o estrague tanto.
– Oh, eu... sim, Vossa Senhoria!
Nos instantes seguintes, o sacerdote Nórgal foi tirando, uma a uma, o restante das coisas que trouxera dentro do saco. Era impressionante o quanto cabia ali. Tirou, além das sementes e do vinho de algas, um rolo de algodão naedi que uma das mulheres pedira; tirou um pergaminho que Eyna e as outras acompanharam com olhares ávidos; tirou, enfim, um par de brinquedos para as crianças, que os receberam com entusiasmo. Não houve mais cerveja ou vinho.
Renton assistiu a tudo aquilo, enquanto lançava olhares furtivos para o cesto de vime, do outro lado da sala. Não pedira nada para o diligente sacerdote. Apesar da insistência dos outros, não achava satisfação em conseguir coisas que não fossem obtidas com o próprio trabalho. A gema estava incluída nesse pensamento.
– Bem, feito isso – disse Nórgal, ao terminar de entregar-lhes os presentes –, por que não sentam aí, onde for mais confortável? – Tirou um livro de dentro hábito vermelho e branco. – Como representante de Nossa Sagrada Igreja, há alguns ensinamentos que devo transmitir-lhes.
Ouvira dizer que haviam santuários nas cidades maiores. Grandes templos, onde cabiam milhares e milhares de pessoas. Isso, com certeza, não era em Ponta Quebrada. Ali, na ilha, haviam duas pequenas vilas; e apenas um humilde santuário, numa delas. Talvez fosse por isso que esse sacerdote estivesse sempre batendo à porta das casas das pessoas do campo. Talvez não houvessem acólitos suficientes para fazer esse trabalho por ele, e por isso o próprio sacerdote-chefe fosse aquele a ir ter com eles.
Ou talvez ele apenas gostasse disso.
Renton sentou ao lado da sua esposa, no chão, enquanto ouvia o sacerdote declamar uma passagem d'As Raízes de Siach. Era sobre a Terra. A Terra, que não era apenas aquilo que sustentava as cidades e os mares, e as montanhas e florestas. Mas a Criação, que contemplava os astros no céu, o próprio céu e todos os seres que existiam e que haviam existido. Era um erro comum, dizia Nórgal, mas facilmente corrigível. O Deus da Terra era o Deus da Criação, aquela concretude que possibilitava a existência do que era. Tínhamos vindo através de Siach, e graças a Ele.
As crianças pareceram assombradas quando ele passou a falar que Siach tinha um gêmeo. Um deus similar, ao mesmo tempo oposto, cujo nome há muito se perdera ou deixara de ser pronunciado. O Deus do Céu, e também da Destruição. Muito antes que tudo fosse como era agora, dizia, ambos disputaram o seu poder numa competição de dimensões inimagináveis. Não se alongaria muito nisso. O resultado do embate – o qual, obviamente, teve Siach como vencedor – gerou a substância que possibilitaria a Criação. Com a deixa que a Sua vitória permitiu, Siach criou a Terra. O firmamento, as estrelas, e também o sol e as nuvens; as montanhas e vales, rios e mares. O Deus do Céu permitiu isso tudo a contragosto, mas, antes que surgissem as formas de vida, criou-as ele mesmo. Houveram duas únicas coisas que ele criou: os corníferos e os meteoros. Muito tempo depois, surgiram os humanos.
– É como são as coisas – disse ele, sorridente. – Os Chifrudos tiveram que abrir passo para que nós pudéssemos entrar no palco.
Depois passou a falar dos deveres morais: respeitar tudo o que habita sobre a Terra, respeitar os ciclos e suas funções, ser justo, não tentar lidar com o que está além das próprias capacidades e trabalhar. Trabalhar para melhorar a existência. Renton ouviu-o, quieto. Ali estava! Não estava errado, afinal. Manter essa maldição com eles encaixava com "lidar com algo além das próprias capacidades".
Estivera certo nas suas pretensões, depois de tudo.
Quando as lições terminaram, as mulheres não o deixaram ir. Convidaram-no para juntar-se à janta. Já escurecera lá fora, diziam. Se quisesse, arranjariam uma cama para que passasse a noite.
Renton acompanhou as parcas tentativas de recusa dele, recusadas elas mesmas. Mas a sua mente estava em outro lugar. Voltara ao de antes; que essa era uma oportunidade única, e não devia desperdiçá-la. Que, mesmo desobedecendo à decisão que haviam tomado como uma família, faria o que deveria ser feito.
Comeram à mesa, juntos. Todos, mesmo aqueles que, a essa hora, estariam chapinhando num tonel de cerveja de cogumelo. Envoltos pelo aroma da laranja no molho do peixe, conversavam sobre as banalidades do dia com desenvoltura. No meio de todos, o alto e simpático sacerdote não parecia um estranho, mas um membro mais da família.
Em dado momento, o camponês sentiu uma cutucada no seu braço. Era Jinseng. O menino apontou para a porta aberta, sinalizando que terminara e queria sair para brincar.
– Por que está perguntando para mim? Vá perguntar à sua mãe.
Jinseng franziu os lábios, vencido. Limitou-se a balançar o corpo de um lado a outro, como se ao ritmo de uma canção que só ele conseguia ouvir.
Renton não estava disposto a lidar com o garoto, nesse momento. Na verdade, mal conseguia sentir o sabor do peixe que fingia comer. Esperaria todos caírem no sono, e então... não, provavelmente não daria certo. Não havia garantias de que Nórgal ficaria até depois da janta. Ouvira falar que os homens de Siach, além do mindinho voluntariamente cortado, tinham outros hábitos que beiravam o militarismo. Se ficasse, era bem possível que fosse dormir antes de todos os outros.
Coçou a cabeça, frustrado. Nada daria certo. Nunca fora do tipo que conseguia planejar minuciosamente as coisas, ou mesmo pensar nessas coisas difíceis. Sempre fizera o que achava certo; Eyna era quem pensava por ele. Mas, dessa vez, não sabia se podia contar com a sua esposa. Já que ela concordara com a ideia do cesto.
– Sabem – disse Nórgal, de repente –, eu agradeço o seu convite. Mas a verdade é que preciso mesmo voltar. Ainda tenho alguns assuntos a resolver na vila. Peço que me desculpem por não poder corresponder ao vosso desejo.
– Ah, que pena – murmurou Reni.
De súbito, o camponês percebeu que aquela era a chance que procurava.
– Eu o acompanho! – disse. Todos se voltaram para ele.
– Não é necessário, Renton – assegurou o sacerdote, enquanto se levantava da mesa. – Não é um caminho tão longo assim.
– Bem... podem haver... arrastadores a essas horas. Ou macacos do sol. Sim, esses bichos desgraçados! Não pode ir sozinho... Vossa Senhoria.
– Acha que conseguiria fazer algo contra os macacos, irmão? – zombou Delin.
O rosto de Renton ficou vermelho.
– Não posso deixar isso passar, Delin – disse Eyna, olhando para o cunhado com ar acusador. – O meu marido tem força e resistência maiores do que pode imaginar. Em todos os sentidos.
Renton ficou ainda mais vermelho, mas por outro motivo. Desviou o olhar da mesa. A alguns passos de si, Nórgal já estava de pé. Pronto para partir. Levantou-se e correu ao seu quarto para buscar o varapau. Não precisaria dele, mas serviria para que acreditassem no que havia dito.
Ao voltar, encontrou o olhar surpreso de todos sobre si.
– Então está indo mesmo, filho? – perguntou Tahet, num tom incrédulo.
– Claro! Claro... foi o que eu disse.
– Tenha cuidado no caminho, Ren – O olhar que Eyna lhe lançou o fez sentir culpado. Ainda que fosse pelo bem, tudo não passava de uma grande farsa.
Renton acenou para todos, o varapau nas mãos, e atravessou a soleira da porta. Seguido pelo sacerdote. A noite apenas caíra do lado de fora, mas já fora o suficiente para transformar a terra em breu e as árvores, em silhuetas escuras e difusas. Ouvia-se o zumbido das cigarras ecoando em toda parte.
Viu que Nórgal começava a andar, e o seguiu.
– Eu estava sendo sincero – retomou o sacerdote, num tom casual. – Não é necessário que me acompanhe, Renton. Conheço bem esses caminhos – Fez uma pausa, como se pesando as próprias palavras, e acrescentou: – Sua família é sempre bem receptiva. Como um forasteiro, me sinto honrado em ser acolhido dessa forma.
– Obrigado, senhor. Mas a honra é nossa.
– Não, acredite... é minha.
Seguindo à frente do sacerdote, percebia-o apenas pelo raspar das botas dele contra a terra. Um ruído quase constante, como o das cigarras e grilos em volta. Assim como ele o ouvia, o ouviriam também os macacos do sol? Estava com o varapau, mas aquela fora apenas encenação. Se um deles surgisse, duvidava que conseguiria matá-lo com esse pedaço de madeira.
Em dado momento, ao olhar para trás, percebeu que já estavam a uma boa distância da casa.
– Na verdade, senhor, há algo que preciso lhe pedir – confidenciou o camponês, em tom hesitante. – Talvez seja um incômodo.
– E seria?
Renton ficou sério.
– Pode voltar amanhã, antes do sol nascer? – disse. – Há algo que preciso lhe entregar.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro