Chào các bạn! Vì nhiều lý do từ nay Truyen2U chính thức đổi tên là Truyen247.Pro. Mong các bạn tiếp tục ủng hộ truy cập tên miền mới này nhé! Mãi yêu... ♥

Capítulo 20 | O bando do Kasir Branco - Parte 2

"Aquilo que ficou conhecido como a Podridão de Oseng, o surto que quase destruiu a próspera cidade costeira, serviu como lembrança de que, diferente deles, nossos irmãos, ainda estamos presos aos misteriosos desígnios divinos. Considerem-me herege ou não, busco apenas a verdade – e eles parecem conhecê-la."

- Notas pessoais e Testamento de Lunsori Nweno, o "sem memórias"


Edali estava radiante com o novo vestido que havia encontrado.

Com as luzes mais adequadas do salão-comum, aquelas roupas shenzianas de seda haviam se revelado ainda melhores do que imaginou. Um vermelho vibrante, como o sol no fim da tarde, ornamentado com bordados dourados de flores e ondas. Na cintura, aquela faixa de tecido preta não a apertava tanto quanto a das suas roupas normais. Era como se estivesse vestindo nuvens.

Seu sorriso, no entanto, terminou ao ouvir o raspar da pedra contra o metal, das facas sendo amoladas pelo sr. Baejin. Pela visão de todas aquelas armas no chão, facas, facões, espadas curvas, espadins e adagas, esperando chegar a sua vez. Foi inevitável lembrar do que havia acontecido lá em cima, na cabine de comando. Aquela mulher...

Olhou em volta, nervosamente procurando Vyeda em algum canto do salão. O que encontrou, ao invés disso, foi o olhar admirado dos homens recaindo sobre si. Muito diferente do desdém ou da indiferença. Muito... incomum, também.

– O que uma roupa shenziana não faz com as pessoas – comentou o sr. Baejin, com o bom-humor usual, enquanto Edali sentava no tapete perto dele. – O vestido caiu bem em você, menina.

– O-obrigada – disse a garota, tentando não enrubescer pela lisonja. – Eu... não tem problema eu pegar essa roupa emprestada, tem?

– Pelo manto de Duj, a essa altura ela pergunta! – debochou Jinghnal, sentado num outro tapete.

Edali tentou não se deixar afetar pelo comentário.

– Hum, bom... – O sr. Baejin tossiu, antes de continuar. – Não acho que hajam problemas. Arrisco dizer que a maioria de nós não tentaria usar isso, e mesmo se tentasse, o tamanho provavelmente o impediria. A chefe também não usa vestidos.

– Embora talvez fosse bom vê-la usando, vez ou outra... – murmurou Sassin, fantasiando.

Os demais se limitaram a rir, ou a olhar em volta agitados, como se temendo que Vyeda pudesse ouvi-los. Hakk, não. Edali se endireitou, nervosa, ao ver que o erdaviano olhava em sua direção. Felizmente, para o seu alívio, não era um olhar tão frio como antes. Era... algo como paternal. Por quê?

– De onde tirou essas roupas? – ouviu-o perguntar. Aquela voz grave, trovejante, como uma grande rocha que se desprende do penhasco, o impedia de soar afável.

– Elas estavam... no banheiro. Nos caixotes, guardadas.

– Entendo – disse Hakk, assentindo. – A minha filha... também gostava desses lianyi de seda. Dizia... que era como abraçar um filhote de palja. Imagino que seja uma sensação igualmente agradável – E voltou-se para uma outra direção, pensativo.

Edali franziu as sobrancelhas, confusa. Esse homem havia acabado de falar... da filha dele? Ansiosa por mais respostas, procurou o olhar do sr. Baejin, mas só obteve cumplicidade.

– É... até mesmo Hakkel tem as suas anedotas para contar, de vez em quando – concordou o shenziano com cicatrizes na testa, e, desviando a atenção para o amolador, não disse mais nada. Dali a pouco, levantou-se, e um outro assumiu o seu lugar com as facas.

A garota, é claro, não se contentou apenas com isso. Estava já vários dias a bordo daquele navio, e em nenhum momento aquele erdaviano carrancudo trocara com ela qualquer gentileza que fosse. E, então, de repente... ele falava da própria filha? Não havia como não ficar curiosa.

Apesar disso, os olhares insistentes que lançava para Hakk não foram correspondidos. Nem adiantou mudar de posição no tapete, de modo a ficar um pouco mais perto dele, mas não tanto. O que a fez franzir as sobrancelhas, irritada.

Enquanto isso, os homens alternavam-se para usar o amolador de pedra. Os ruídos haviam se reduzido para murmúrios casuais, e o persistente raspar.

– Mas a verdade – disse Kepmal, retomando o tom mais alto de uma conversa que Edali não ouvira – é que estou com saudades de uma boa cidade. Uma cidade grande.

– Você é das províncias, Kep. Não é da cidade.

– Não, ele tem razão – concordou Beryamna, cujas sobrancelhas escuras uniam-se em uma só, acima do nariz adunco. – Esse desgraçado tem toda a razão. Como eu sinto falta de Barbatana! As mulheres, a cerveja horrível de cogumelo, as brigas de rua... as mulheres... Ao invés disso, olhe onde estamos!

– Aí está exagerando – disse Jinghnal, com um ar irônico. – Este lugar não é tão pior do que aquela merda de Barbatana.

– Paz, Jin – Beryamna levantou as mãos, num gesto conciliador. – Sabemos que um ghinda sangue nobre de Mupara não vê o mundo da mesma forma que nós, mestiços. Mas que Barbatana é um perfeito paraíso insular, isso nem você não pode negar.

Se Jinghnal retrucaria, calou-se ao ver que os demais riam da piada, e dele. Edali os observava sem saber do que estavam falando. Não eram todos naedi ali? E, apesar disso, pareciam falar como se um lugar fosse melhor do que o outro. Pensando bem, já presenciara esse comportamento várias vezes, nos marinheiros que aportavam em Okinto e iam à Quinta para beber. Seria algum tipo de orgulho regional, que ela não entendia?

Os demais continuaram a falar sobre as diferenças na merda de ki'yim, ou o que quer que fosse isso, até ouvirem-se passos descendo pela escada que levava ao convés. Passos sôfregos, hesitantes, seguidos por uma respiração pesada. Nada que transmitisse a mínima sensação de segurança.

Foi o suficiente para fazê-los se calarem, e a atenção voltar-se para a escada, na qual, pouco a pouco, foram surgindo duas pessoas. Edali se sobressaltou.

– Mas, pelos ursos de Kallyeva – grunhiu Hakk, parecendo preocupado –, o que aconteceu com os senhores?

Wagyu, que se usava de apoio para ajudar o palito Capp a andar, limitou-se a negar com a cabeça.

Ao dar o último passo com a perna boa, que mais pareceu um pequeno e sofrido pulo, deixou-se cair no chão do salão-comum. Capp, com o olhar bem aberto e inerte como o de um boneco, catatônico, caiu com ele.

Todos os homens se levantaram, indo em auxílio dos dois. A garota foi com eles, pálida. Parecia uma cena digna de uma peça satírica de teatro. Um coxo ajudando um viciado possivelmente moribundo a andar. Mas ela não viu graça alguma naquilo. A culpa era sua. Com a pressa de sair da cabine de comando, o medo, havia esquecido totalmente de avisar que Capp estava lá em cima, lutando pela própria vida. Esquecera por completo dele.

O homem, apesar disso estava vivo. Mas, se morresse, ela seria a responsável.

Por favor, não morra, pensou, sentindo o ar sair dos seus pulmões como se uma corda invisível os apertasse. Enterrando as unhas no vestido de seda. Por favor... por favor, não. Eu achei que... achei que estava... por favor! Não morra...!

Foram penosos segundos que Edali observou Wagyu ofegar, suar, e com dificuldade (e ajuda) erguer-se para observá-los com um olhar cansado. Capp, por sua vez, continuava caído como uma estátua derrubada. Tinha um olhar vítreo e morto, congelado no espaço.

– Já estou muito velho para essas coisas – resmungou o naedi de meia-idade, usando os braços de Hakk para se levantar. – Talvez não para a vida, no geral. Mas, para certas coisas, estou.

– Mas o que foi isso tudo, Wag? – perguntou o erdaviano, franzindo as sobrancelhas.

Era a pergunta que todos queriam fazer. Todos, menos Edali.

– Encontrei o coitado do Capp nessas condições, lá em cima. Não, minto. Ele estava pior. Melhorou depois que o fiz mastigar umas duas folhas de jasselif, tranquilizantes – Fez uma pausa, antes de explicar: – Nyan.

– Foi uma overdose? – Kepmal abriu bem os olhos. – Sorte ele ainda estar vivo...

– Não foi uma sorte total. Se algum de nós o tivesse encontrado antes, eu poderia ter dado a ele algo mais forte e efetivo.

A garota sentiu um arrebato de tontura, e enjôo.

– Mas Cappki ainda não está morto – continuou Wagyu, secando o suor do rosto com um lenço. – Os senhores podem ainda arrancar um pedacinho de madeira do convés, para fazer o seu amuleto de boa sorte. Claro, se tiverem vontade.

– Pobre homem – concordou Beryamna, baixando a cabeça em respeito. – Ele era um ícone no Kasir Branco.

Sem conseguir mais respirar, Edali subiu ao convés para tomar um ar. Ventava. Na noite, o vento carregava os sussurros das ondas, próximas e distantes, e o frescor de um dia que já partira. Não havia ninguém ali; as velas triangulares da caravela sacolejavam para um público fantasma.

A garota apoiou as costas na mureta e sentou no chão. Sentindo-se pequena naquele vestido tão vistoso. Irresponsável. Egoísta. Inconsequente. Pior do que tudo.

Pouco depois, os passos avisaram que alguém subia a escada para o convés. Edali não se virou para ver quem era. Continuou abraçada aos próprios joelhos, olhando para a frente, percebendo a silhueta movimentar-se nos cantos da sua visão. Ficando mais próxima. Até que ouviu-o sentando ao seu lado.

– Hmmm – era a voz do sr. Baejin –, é duro ver alguém naquelas condições, não é mesmo? Apesar de que não é uma situação totalmente nova para mim. Eu mesmo já estive a ponto de sucumbir a esse estado em duas situações.

Não é por isso que eu saí. Não só por isso...

– Não sei pelo que aquele sujeito passou. Mas, às vezes, estamos tão destruídos, que não nos resta outra alternativa que não apelar a esse tipo de fuga. Não que resolva alguma coisa.

– Eu... – Edali não conseguia mais se segurar. Estava evidente que ele tentava animá-la, mas era por isso mesmo que não podia se conter. Não merecia apoio nenhum.

– Uma vez, quando eu ainda servia ao duque de Iryeo...

– ... sou uma inútil – Doía admitir. – Uma egoísta inútil. A culpa é minha.

O sr. Baejin ergueu uma sobrancelha, curioso.

– Do que você está falando, menina?

– Se o Capp morrer, vai ser culpa minha – Edali afundou ainda mais o rosto nos joelhos. – Lá na cabine, quando eu fui procurar o amolador... eu vi ele caído. Vi, mas não avisei ninguém. Devia ter avisado alguém... qualquer um de vocês...

– E por que não avisou? – o tom da pergunta era mais interessado, do que reprovador.

– Porque achei que não adiantava! Porque achei... me disseram... que, numa overdose de nyan, não há forma de salvar uma pessoa. Que ela apenas espera a morte chegar. Parece que nem isso sei fazer direito. Sou uma inútil, que está aqui à toa...

O silêncio durou alguns poucos, mas desconfortáveis, instantes, que o vento aproveitou para afagar os cabelos encaracolados da garota. Nada. Vazio.

– Bem, não tenho certeza quanto a isso – disse o sr. Baejin, num tom exageradamente despreocupado. – Mas, antes de que o Wag dissesse, eu não sabia que havia forma de remediar esse estado...

Edali dirigiu um olhar apenado e ofendido ao shenziano, mas não quis contestá-lo. Não era só Capp. Nos últimos dias, tivera excessivas oportunidades para comprovar que não era nada adequada a esse tipo de vida, ou à viagem que empreendia. Não conseguia fazer nada direito, e sempre havia alguém para zombar da sua incapacidade. Havia tentado não dar muita bola, mas... uma hora cansava.

Tinham razão. Todos tinham razão. Seu pai tinha razão.

– Sobre o que falávamos no outro dia – disse o homem, num tom de confidência –, era da sua ilha natal. Okinto. Você ainda quer saber, Edali?

A garota pensou um pouco, e assentiu devagar.

– Okinto, bem... talvez seja melhor que eu explique do zero. Você sabe o que é uma confederação?

– É uma organização política, eu acho? – Seu pai a obrigara a ler muitos livros, quando era menor. Sob a tutela do avô, ela havia tido uma formação básica.

– Em geral, sim. Falando em termos específicos, é um agrupamento de cidades ou nações independentes que se submete a um poder central, mas mantêm grande parte da autonomia. Exatamente como A Confederação.

» O nome completo, na verdade, é "Confederação de Pandora, Estrela, Aye e Okinto. Meio grande, não é?

» Então, bem... o poder central é aquele que preside em Aymuri, na capital de Pandora. Se quiser uma opinião de como são essas pessoas, não tenho muito a acrescentar, já que não conheço elas. O que importa é que, na teoria e na prática, são eles que controlam toda a região do Mar Central. E, até uns vinte anos atrás, comportavam-se como manda a nomenclatura.

» Sobre o que aconteceu? Muitas coisas aconteceram. Pelo que vi na sua ilha, os tumultos ainda não alcançaram vocês. De alguma forma, ainda não. Mas vão, em breve. E o que eu queria saber, naquele momento, era qual o tipo do seu pai. E você já disse que era o tipo "abaixa a cabeça e obedece". Essa explicação é boa o bastante?

Edali desviou o olhar para as mãos, onde numerosos cortezinhos surgiam na sua pele, resultados de puxar as duras cordas ou de tentar limpar as facas que lhe pediam. Depois, suavemente, as suas pálpebras se fecharam. Imaginou estar no alto de uma montanha, vendo uma gigantesca cidade se desdobrar à sua frente, numa planície, sentindo-se realizada. Imaginou-se afastando os matagais de uma densa floresta, descobrindo as ruínas de uma cidade abandonada, onde os deuses ainda habita...

Nenhuma dessas coisas eram mais do que fantasias, certo? Imagens assim só existiam nos contos de livros. Mesmo se aventuras como essas aparecessem nos relatos de Zhen Hud – como apareciam, de fato –, eram apenas cronistas exagerando e embelezando a narrativa. A realidade era completamente diferente daquilo. Era dura, rude... e não dava nada a ninguém de graça.

A imagem de Alina aparecia quando fechava os olhos. Triste, ao saber o que Edali fizera para conseguir sair da ilha. Decepcionada.

– Eu entendi – murmurou a garota, sem realmente ter prestado atenção à explicação prévia. Não adiantava. Não sabendo o que fazer, sentia-se perdida naquele navio de estranhos. Droga. Quando atracassem num porto, em qualquer lugar que fosse, desceria e iria... iria...

– Sua gente talvez passe por uns maus bocados em alguns meses – comentou o sr. Baejin, e Edali olhou para ele sem entender. O homem abriu um sorriso, parecendo ver a confusão dela, e acrescentou: – Bem, imagino que isso não seja mais assunto nosso, não é mesmo? Já que você agora está conosco.

Essa afirmação terminou de exaurir a garota.

– Por que vocês tinham que aparecer na ilha? – perguntou ela, num tom perceptivelmente cansado.

– Hmmm?

– Se nada disso tivesse acontecido, eu não teria mesmo feito nada. Talvez estivesse presa, é verdade. Mas a minha vida não correria risco. Não no sentido real, palpável. O sr. Telmo não teria morrido, e a minha amiga não estaria tão destruída, a ponto de me obrigar a fazer alguma coisa. Eu não... teria tido coragem de ter feito essa besteira...

O sr. Baejin pareceu triste ao dizer:

– Era, bem... foi um trabalho.

– Que tipo de trabalho causa tanto mal?

– O nosso trabalho – sussurrou o homem, num tom contido e pesaroso. – Quando a chefe aceita um trabalho, passamos a ser meras ferramentas nas mãos do nosso contratante. O que ele pede, é o que devemos fazer. Alguns gostam da sensação de liberdade que esse tipo de situação cria. Eu, particularmente, devo dizer que não.

– Então por que você continua com eles?

– Porque é a única vida que me resta. Assim... é o Kasir Branco.

Edali franziu as sobrancelhas, incômoda, procurando uma resposta no rosto do sr. Baejin Kangwan. Mas não encontrou nada. Encontrou apenas amargura, pesar, e... resignação. O que poderia acontecer, para que alguém escolhesse entrar numa vida como essa?

– De qualquer forma – disse o shenziano, voltando-se para ela com uma expressão um pouco menos soturna –, diga você o que quiser, eu não a considero tão inútil quanto pensa. Certo, talvez não saiba muito da vida no mar. Mas você me ajudou a contar aquelas moedas. Nunca, nenhum desses folgados sequer fez isso.

– Obrigada... eu acho – respondeu a garota, sorrindo.

– De nada. Bem, agora, aproveitando essa deixa, eu posso contar a história de quando o duque de Iryeo... – De repente, o sr. Baejin teve um acesso violento de tosse, que interrompeu a conversa. Edali se assustou. Aproximou-se dele, preocupada com que talvez ele se engasgasse, mas o homem se limitou a afastá-la com um gesto despretensioso. – Não é nada. É só que... parece que os Dois-En não querem que eu conte mesmo essa história, he, he.

– Está mesmo bem, sr. Baejin? – Edali ainda tinha as sobrancelhas franzidas. – Não deveríamos descer para ver Wagyu?

– Não, bobagem. Eu estou bem. Quem está mal é o palito Cappki; não devemos atormentar Wag com preocupações desnecessárias.

Aquilo parecia longe de ser uma preocupação desnecessária.

– Mas... – insistiu a garota.

O shenziano de meia-idade, cujos bigodes finos e compridos rivalizavam com as cicatrizes na testa, balançou a cabeça em negativa. Seguiu-se o silêncio. Na manhã seguinte, caíram os dois vítimas de acessos de tosse e febre alta.

***

Vyeda levantou a camisa, temendo que o sangue tivesse voltado a escorrer do ferimento enfaixado na barriga. Franziu as brancas sobrancelhas. Não havia nada de anormal. Apesar das pontadas de dor que voltara a sentir quando Edali caíra sobre ela, aparentemente não era o suficiente para fazer reabrir aquela lesão profunda.

Criança de merda, pensou, cada vez mais irritada com o fato.

O caminho que tomara, à saída da cabine de comando, a levou para um espaço à sua sombra, uma esquina oculta onde a balaustrada do convés encontrava a parede da cabine. Era um bom lugar. Àquela hora da noite, quase nenhum dos idiotas saía ao convés, ou mesmo passava por ali. Mesmo que o fizessem, não poderiam vê-la. Isso lhe daria um tempo de paz para...

Havia alguém na sua esquina. Alguém ousara se apropriar dela. Vyeda conteve a indignação enquanto se aproximava, deixando que a sombra da cabine engolfasse a sua silhueta. Parte sentou-se, parte apoiou-se na mureta, voltada para o céu e o mar à distância, escurecidos de igual forma.

Chefe... – ouviu o murmúrio ao seu lado. Era a voz de Rezram. Havia tido a impressão errada, ou esse tom era...? Não, não podia ser. – Chefe...

A mulher não respondeu.

– Ouvi que você sente um êxtase anormal quando mata alguém, chefe – O tom estava excessivamente atrevido. – Isso não parece quase como... se estivesse fazendo sexo com a pessoa? Ei, me diga, isso é verdade, chefe? Vyeda.

Vyeda sentiu uma fagulha de irritação (e outra menor, de desconfiança) acendendo dentro de si. Mas não se voltou para aquele homem.

– Você é, na verdade, bem bonita, Vyeda – Ouvia a voz de Rezram mais e mais perto. – Não tive muitas oportunidades antes, mas quem diria... – Os passos lentos, calculados, sobrepassaram o ruído das ondas. – Ei, se me matasse agora, será que você sentiria algum prazer? Ou será que teria mais prazer se eu...

O robusto naedi hadzi pareceu vacilar quando a assassina pousou os olhos nele. Mas a mão dele não se afastou dos seus peitos.

Vyeda ergueu o queixo e desviou o olhar para o lado, flexionando o corpo numa posição convidativa. Era uma finta. Viu Rezram cair, interpretando o gesto como uma positiva, e aproximar-se mais com um olhar de puro desejo.

Então, assim que o homem estava perto o suficiente para minimizar os erros da iminente investida, materializou uma faca pequena das suas tatuagens, cravando-a por baixo do queixo dele. A lâmina encontrou o seu alvo num baque molhado e solitário.

Rezram pareceu confuso, por um momento. No momento seguinte, estava morto. Vyeda o segurou pelo colarinho, impedindo-o de tombar no convés. Depois, jogou o corpo no mar, sem sentir nada que se aproximasse a um prazer.


– Então foi isso que aconteceu? – perguntou Hakk, na manhã seguinte, com um olhar consternado. Vyeda assentiu, segurando um bocejo. – Que... anormal. Com tudo o que ele era, ridiculamente estúpido não era uma das coisas que imaginei que ele fosse.

– Muito tempo sem prostitutas ou bordéis costuma deturpar o raciocínio de vocês, homens. Não que eu também não compartilhe da mesma ansiedade.

Hakk grunhiu algo, mas estava distraído. Por mais de que Vyeda tivesse anunciado que o bando perdera um membro na noite passada, nenhum dos homens havia tomado esse acontecimento com mais surpresa do que tomariam a chegada da noite, após o fim do dia. Não houvera comoção nenhuma pela morte de Rezram. Embora, verdade seja dita, eu também sinto falta de umas prostitutas, pensou ela.

A luz da manhã e o cheiro da maresia entravam pelas escotilhas do salão-comum, revelando alguns poucos sobre os tapetes. Vyeda era uma das únicas, junto com o erdaviano, Wagyu, Baejin e a menina. Acordara já há algum tempo, mas, sem o banho, fios de cabelo flutuavam ao redor de sua cabeça como emaranhados de um algodão vagabundo. Ainda não fazia falta que os penteasse, já que tinha um potencial problema para resolver.

O mesmo problema que levara o restante dos seus homens para o convés, acima, tão cedo pela manhã.

– Hmm... – murmurou a mulher, erguendo-se para encurtar distância com Wagyu, num tapete mais próximo do banheiro do que dela. Sentindo a maciez da lã dos tapetes nos seus pés. – Wagyu. Boi – Parou à frente do homem, que, circunspecto, esmagava ervas num pilão, fazendo desprender aquele desgraçado fedor medicinal. – O que pode me contar sobre os riscos, agora?

– Ainda não descobri nada, Vye. Me desculpe.

– Ainda?

– Exato – Wagyu assentiu, sentado, sem deixar de amassar as ervas que já se convertiam numa massa preta e oleosa no interior do pilão. Ao lado dele, no mesmo tapete, estavam deitados Baejin e a garota, com expressões sofríveis no rosto e panos molhados na cabeça. Dormitavam, cobertos por uma manta. – Sei que não é a peste de Oseng, pelo menos. Mas, tirando isso, não posso dizer quase nada sobre o que esses dois têm.

– E o que nós devemos fazer?

O médico pareceu considerar a questão, durante um momento.

– Não sei. Não sei se o que eles têm é perigoso, se deveríamos mantê-los num outro lugar ou não. Provavelmente deveríamos. O que sei, é que, quanto antes cheguemos a Estrela, melhor será.

Vyeda umedeceu os lábios com a língua, pensativa. Wagyu, que estivera a serviço do seu pai desde muito antes que o velhote viesse a falecer, era um autêntico médico, reconhecido pela Guilda de Al Kapur. Não tinha quaisquer dúvidas quanto à capacidade dele, já que fora curada muitas vezes por esse mãos. Mas, ossadas, ele deveria saber que ela não planejava continuar até Estrela sem nenhuma parada. Não... ainda precisava atracar naquela ilha antes. O problema era: qual seria a magnitude dos problemas que essa doença poderia causar?

A assassina andou de um lado a outro, sob o olhar curioso de Hakk, de pé junto ao médico. Sabia que devia estar subestimando o perigo da situação. Merda. Doenças eram um problema; mesmo o mais estúpido dos idiotas era capaz de dizer isso. Doenças, pestes... matavam indiscriminadamente, sem propósito algum. Oseng era a prova. Trezentos anos antes, Balarat também havia sido. E Barbatana. E muitos outros lugares, em muitos outros momentos.

Aquele surto que por pouco não destruíra totalmente a linhagem Makot ainda permanecia vivo na sua memória. Uma irritante memória. Proteja o nosso sangue, dissera Yadeerhi no leito de morte. A lembrança daquele momento causou em Vyeda uma vontade compulsiva de bocejar. Talvez a solução fosse jogá-los, os dois, ao mar? Isso, quase certamente, devia ser o suficiente para impedir a misteriosa doença de se alastrar.

O corpo adormecido de Edali se contorceu, de repente, mudando de posição sob a manta. A assassina a observou com expressão fria. Ainda não sinto nada, mesmo, pensou, muito mais constatação do que culpa. O que eu deveria estar sentindo agora?

– Bem – disse Hakk, vindo em sua direção –, talvez o melhor seja sairmos agora, chefe.

– Talvez seja.

Mesmo assim, Vyeda foi com ele para fora do salão-comum.

No convés, um sol matinal ardente e desagradável obrigou a mulher de cabelos brancos a fechar os olhos e cobri-los com as mãos. O chão do convés mostrava-se úmido aos seus pés descalços, que inadvertidamente a levavam na direção do ruído. Ruído de conversa animada entre os seus homens e... um grasnar apavorado? Mas que tipo de bobagem eles estavam aprontando, dessa vez?

Quando a sua visão se acostumou à nova luminosidade, percebeu o motivo da agitação: Derjit segurava uma ave marinha pelo pescoço. O animal obviamente se debatia, batendo as asas sem parar, tentando morder o captor com o bico dentado.

– Que merda é essa?

– Ah, chefe – Derjit acenou com a mão livre. – É um pato-arranca-dedo de Aye.

– Eu sei o que esse bicho é – disse Vyeda, erguendo uma sobrancelha ao olhar para a ave cinzenta assustada. – Quero saber o que vão fazer com ele.

– É para comemorar a recuperação do palito – explicou Unuli, arregalando os grandes olhos esbugalhados. Atrás dele, Capp estava de pé em meio ao grupo, lambendo os beiços ao olhar para a ave. Parece que o idiota sobreviveu... de alguma forma, pensou ela.

– Não é uma situação meio inadequada para uma celebração? – questionou Hakk, franzindo o cenho. – Temos dois doentes a bordo. Podemos estar correndo mais perigo do que imaginam.

Os homens – Derjit, Capp, Beryamna, Unuli e Kepmal – entreolharam-se, receosos.

– Estamos todos cansados desses peixes secos com biscoitos... secos – admitiu Derjit, fazendo uma careta de desagrado. Alisou a espessa barba escura com os dedos da mão livre. – Não foi uma ideia planejada. Quando subimos aqui, havia um grupo desses patos empoleirados na mureta.

– Não podíamos deixar passar – concordou Beryamna.

Vyeda deu de ombros. Seus lábios formaram um meio-sorriso. Ou ignoravam o que aquela doença significava, ou era realmente bizarro que pudessem estar tão empolgados apesar dela. Bem, para ser sincera, isso era exatamente o que esperava deles. Ossadas. Poderiam estar dando um banquete no dia em que a Grande Seca chegasse.

À exceção daqueles cinco, no entanto, o restante dormia à sombra do mastro central ou da cabine de comando, mais à frente, deitados no convés.

– Parabéns por sobreviver, Capp – disse ela, e o alto e pálido homem pareceu comovido pela congratulação. – De qualquer forma, consigam ao menos mais dois desses bichos. Quero comer algo diferente hoje, também.

A morena deu meia-volta, lembrando que ainda precisava procurar um pente no banheiro, já que todo aquele cabelo que o vento jogava no seu rosto começara a incomodá-la. Desceu ao salão-comum, evitando Wagyu e os dois enfermos para ir até o banheiro, onde se trancou. Ainda assim, a porta fechada não a impedia de ouvir os gemidos queixosos que, vez ou outra, a menina deixava escapar.

Enquanto alisava o cabelo com o pente de madeira, Vyeda pensou que, de fato, talvez a melhor decisão não fosse seguir direto para Estrela. Agora, somavam-se outros motivos para fazê-la pensar de que deviam parar em Marit, aquela maldita ilha deserta. Mas, considerando que todo esse trajeto Okinto-Estrela era assustadoramente desprovida de ilhas, aquilo teria que bastar.

De qualquer forma, já havia passado um bom tempo desde que se encontrara com os mortos.

Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro