Capítulo 15 | Preparação - Parte 4
O eco das conversas fluía até o seu quarto, por debaixo da porta. Edali não sabia se queria ouvi-las. Na verdade, não sabia se queria ouvir coisa nenhuma. Com as lembranças dos acontecimentos recentes ainda vivos, todos os outros pensamentos pareciam um meio de tentar escapar à realidade nua e crua.
A garota abraçou os joelhos, encostada à firme madeira da porta. Não sabendo onde descansar o olhar, olhou para os pés. As suas unhas estavam um pouco sujas.
– ... óbvio que não podemos ir assim, sem mais – dizia o sr. Kiliman, num tom incomodado. – Não sabemos quem, nem quantos são. E, além disso, ainda não temos a permissão do sr. prefeito.
– Ainda? – ouviu a voz do seu pai responder. – Não estão pensando que lhes darei isso que pedem, estão? Já disse e volto a dizer: não são vingadores; são soldados.
– Ninguém está pensando em se vingar! Mas um crime foi cometido, e é o nosso dever punir os responsáveis. Ou está pensando em deixar tudo de lado por meras "implicações comerciais"?
– Nairu tem razão, sr. Ponec – a voz grave e contida de Androvil concordou. – Se os Barqueiros trouxeram alguém assim com eles, o mínimo que devem fazer é aguentar as consequências – Houve uma breve pausa nas ideias. – E não é como se fôssemos responsabilizá-los todos. Uma vistoria não machuca ninguém, de qualquer modo.
– É fácil para os senhores dizer isso – tornou a dizer o seu pai, suspirando. – Já que sou eu que terei que lidar com tudo, mesmo. Com a insatisfação dos moradores, quando não tiverem mais seu festival trimestral. Ou com a possível má reputação que ganharemos, quando falarem disso com outras companhias comerciais.
Edali fungou, afundando a cabeça nos braços. Tudo isso por um pequeno grupo de estranhos que não teve o que procurava. O que era o que procuravam na Quinta, afinal? Ouvira Alina murmurar, entre prantos na cozinha, que estavam atrás de Tobbi. Mas Tobbi já não estava em Okinto!
E, mesmo que estivesse, isso não era desculpa para matar alguém.
Alheio às conversas, o seu bonequinho de madeira talhada a observava do umbral da janela. Colorido pelo brilho prateado e silencioso da lua. A garota levantou-se, e foi até a janela pegá-lo. Aquele era um cervo chalope, um cervo de quatro chifres comum no arquipélago Pandora – dissera o marujo embriagado que lhe dera o boneco de presente. Há muito que não lembrava mais daquele homem, de onde viera ou para onde ia. Mas conservara o pequeno cervo, que agora trazia conforto nos momentos mais difíceis.
Edali voltou a sentar ao pé da porta, com o cervo nos dedos.
– É que não estão me entendendo, senhores – repetiu o seu pai, com mais firmeza. – Mesmo que fossem os três prendê-los, não sabemos quantos mais são. E se houver um navio repleto com eles? Minha filha disse que eram quatro os que chegaram à taverna. Mas quem nos assegura que esses são todos os bandidos que há?
– Então já concordamos que são bandidos, e que precisamos fazer algo quanto a eles, certo? – A voz de Nairu tinha um resquício de raiva nela.
– Bem, sim, mas...
– Então está decidido!
Ouviu-se um arrastar repentino, da cadeira sobre o piso de madeira. Edali pensou que, naquela noite, o seu pai estava bem mais receptivo que o normal.
– Acalme-se, rapaz – disse a voz de Kiliman, de repente. – Ponec tem razão. Não é algo que possamos fazer sem planejarmos com antecedência. É perigoso.
– Se demorarmos muito, vão fugir!
– É só a primeira noite. Teremos ao menos uma semana para abordá-los. Enquanto os Barqueiros estiverem ancorados aqui.
– Isso, isso – concluiu o seu pai, num tom mais irritado. – Terão uma semana. Mas antes, ao menos deixem-me pensar sobre isso tudo.
Ouviram-se ruídos de botas contra o piso, uma depois da outra, antes da porta se fechar num estalo.
Edali ergueu a cabeça, com um olhar disperso. Não, esse assassinato não era a única coisa que ocupava os seus pensamentos. Desde aquele dia, em que trabalhara na Quinta como garçonete, seu pai a trancafiara em casa como se estivesse com a peste. Quase uma semana. Muitas coisas haviam acontecido nesse meio-tempo. Ouvira o seu pai resmungar muitas vezes, nos corredores, sobre alguma exigência absurda que o governo-central da Confederação queria impor a Okinto. Não sabia o que era, mas dificilmente seria algo que facilitasse a vida dela.
Havia outro boato; esse que ouvira a sua mãe comentar com a velha criada, enquanto preparavam a janta. "Não sei, mas estão dizendo que a filha de Dárand talvez esteja doente. Já são vários dias que não aparece para servir os clientes. Dárand, também, não comenta nada sobre esse assunto." A garota não tivera mais contato com Alina, desde aquele dia. Mas era estranho imaginá-la doente, ou coisa do tipo. Mesmo quando as pessoas ficavam doentes pelas gripes sazonais, ela nunca parecera abatida ou cansada. Alina tinha uma saúde invejável.
Então Edali fora conferir a veracidade dos boatos. Para o seu azar, a sua escapada coincidira com a aparição dos bandidos.
A garota suspirou, movendo delicadamente o cervo de madeira nos dedos. Voltou a deixá-lo no umbral da janela, atrás do vidro que separava o seu quarto da noite profunda. Abriu a porta e saiu. Na sala, o seu pai ainda estava sentado à mesa, hirto. Se as velas estiveram acesas durante a conversa dele com os soldados, não estavam mais.
– Pai...
– Ainda está acordada, filha? – A voz do seu pai, por mais estranho que pudesse parecer, não carregava qualquer tipo de repreensão ou aborrecimento. Estava serena e pensativa, como um lago à noite.
– Eu estava ouvindo o que vocês diziam – disse ela, com timidez. – Me desculpe.
Houve um instante de silêncio. A escuridão desabrochava como uma névoa pela sala.
– E pensar que tudo isso é por causa de um rapaz tolo, que a esta altura deve estar em Estrela...
– Perdão? – perguntou Edali, confusa. Estrela? Ouviu direito?
– Não é nada, filha. Estava só pensando alto. De qualquer forma, já é tarde. Vá dormir o quanto antes.
– Está bem – disse a garota, curvando-se. Estava provavelmente muito escuro para ver. – Boa noite, pai.
Edali voltou ao seu quarto. Dali a pouco, seu pai iria se deitar, e então o véu do sono teria caído sobre a casa. Seria o momento de dar uma escapada? Com tudo o que acontecera, precisava falar com alguém. Com Alina. Como ela estaria agora? Naquele momento, na cozinha, ela não estava nada bem.
A garota suprimiu a vontade de pular a janela do seu quarto e se arrastar até a taverna. Não apenas o seu pai, mas todo mundo da vila já estaria dormindo, àquela altura. Incluindo aquela a quem considerava como a sua irmã mais velha. Não conseguiria nada indo até lá agora.
Franziu os lábios, incomodada. Teria que esperar até amanhã.
***
– Nós não nos conhecíamos lá – comentou Alina, com uma nota de tristeza na voz, enquanto transportava o balde para dentro de casa. Edali a ajudava, apesar da dor que puxar a corda com um balde cheio causava às suas mãos. – Estrela é até que bem grande, sabe? Não é como aqui. Lá é... bem, me entende, certo?
– Entendi que é meio grande.
Viu Alina sorrir, e fazer o sinal para que puxasse a corda que traria o balde das profundezas do poço. Puxou.
– Há de tudo um pouco naquela ilha – continuou. – É como se estivesse mais perto do mundo. Muitos e muitos navios no porto; desde os pequenos barcos de pesca até os gigantescos juncos. É uma cidade movimentada, também. Isso que acontece aqui quando chegam os Barqueiros Viajantes, lá era coisa diária.
– Você parece gostar bastante de Estrela, Lina.
– Ah, foi isso que pareceu? Não é... bem assim. Eu vim para cá quando houve um surto da febre belicosa. Um ano antes de que o prefeito se rebelasse contra a Confederação, e fosse invadido. Essas são... apenas imagens que ficaram gravadas na minha memória.
Um punhado de água respingou para for a do balde, quando o içaram para a superfície. Alina desatou o nó da corda na alça, enquanto Edali o segurava para facilitar o trabalho dela. Uma manhã branca e nublada, úmida, envolvia-as.
– Mas, como eu dizia, nunca cheguei a encontrar Telmo por lá – retomou Alina, num tom conclusivo. – Uma vez conversando, aqui, ele me disse que a família dele era de arpoadores de baleias. Viajavam de ilha em ilha, seguindo a rota das baleias-rubi. Não sei exatamente o porquê, mas posso imaginar os motivos que ele escolheu para se alistar como soldado e sair de lá. Ele nunca me disse.
Edali também podia imaginar. Em outras ocasiões, ouvira a amiga dizer que, apesar do comércio efervescente, a vida não era fácil por lá. Pela grande circulação de pessoas, os surtos de febre belicosa e das gripes estavam sempre à espreita, como predadores famintos. E que, para qualquer um que não fosse um rico comerciante (a maioria não era), restavam apenas trabalhos menores nas valas, minas e porões de navios. Para ser sincera, mesmo aquilo estava tão distante da sua realidade que custava um grande esforço para imaginar. Mas, sabendo que a família inteira de Alina morrera com um surto de peste, devia ser uma situação realmente ruim.
Observou a amiga pousar o balde ao pé da mesa, e molhar as mãos nele. Depois, foi até um dos vários sacos empilhados junto à parede. Trouxe um punhado de farinha nos dedos, cuidando para que não caísse.
– De vez em quando, é bom relembrar o passado – disse, enquanto depositava a farinha amarronzada sobre a mesa. Como um pequeno vulcão, pensou Edali. – Já fazem dois meses, mas acho que não faz mal fazer as tortillas do Desabroche. Um camponês ensinou ao meu pai, que me ensinou quando eu cresci. Até que o pessoal gosta delas – Molhou a farinha com a água que trouxera.
– O que é Desabroche? – perguntou a garota.
– É um festival da segunda semana do mês das Inundações. Para honrar o desabroche dos lírios do sol, que acontece apenas uma vez por ano – Alina ficou pensativa por um instante, e disse: – Não há lírios do sol aqui, de qualquer forma. São os camponeses de Pandora que celebram isso.
Edali ficou parada observando a amiga sovar a massa. Não ousou se intrometer. Tentar ser uma garçonete por uma noite era uma coisa; preparar uma tortilla, quando não sabia nada de cozinha, era totalmente diferente. Já bastava o desastre que aquela noite havia sido...
– Não cheguei a perguntar ainda – disse Alina de repente, como se lendo os seus pensamentos –, mas o que está fazendo aqui a essa hora? Nem mesmo os galos saíram ainda do galinheiro.
– Não saíram porque são preguiçosos. Nem é tão cedo assim. Você está acordada.
– Entendeu o que eu quis dizer – Viu o olhar dela pairar em sua direção, indagador. – Você não costuma dar as suas escapadas tão cedo pela manhã, Dalinha. Daquela vez eu confesso que achei estranho, também. Está tudo bem?
– Está – murmurou Edali. Eu poderia perguntar a mesma coisa, pensou. Mas achou melhor não dizê-lo. – Não precisa de ajuda com nada? Com essas tortillas que você está fazendo?
– Não se preocupe, eu consigo dar conta delas. Não é como se hoje fosse ser um dia diferente, de qualquer forma. Quando terminar, imagino que o meu pai já terá acordado. E então, bem... devemos chamar o carpinteiro para consertar o balcão...
Edali assentiu. Na verdade, viera ver como Alina estava. E agora, depois de vê-la, podia dizer: ela não estava bem. Admitia que a lembrança da noite anterior ainda a assombrava; isso, porém, devia ter causado um choque ainda pior na amiga. Já que embora não a ouvisse dizer nada, embora ela tentasse a todo custo manter uma expressão simpática no rosto, conhecia-a o suficiente para saber o que havia no interior dela. Tristeza profunda.
Alina, naquele instante, era como a visão de uma sombra. Um farol abandonado, numa península esquecida e distante. Edali sentiu o coração apertar ao constatar isso.
– Eu acho... que preciso ir embora – disse, procurando evitar o olhar da outra.
A garota deu as costas para a amiga, seguindo para a porta. Parou à soleira.
– Foi bom te ver, Edali – ouviu a voz gentil de Alina dizer. – Volte sempre que quiser.
– Eu vou... assim que puder.
Quando Edali saiu, a visão do sol, erguendo-se à sua esquerda por cima dos vidoeiros e bordos, não lhe trouxe nenhum conforto. Nem o cheiro do orvalho, ainda apegado às folhas dessas árvores, e dos arbustos e samambaias. Na verdade, aquilo trazia-lhe uma sensação de urgência e desfecho – mas negativo. Negava-se a pensar no que percebera ao visitar a sua amiga. Se admitisse o que seus pensamentos apenas sugeriam... seria uma perda e tanto.
À sua frente, no caminho de cascalho, as sombras das árvores se alongavam pelo chão, como se renegando o dia que acabava de começar.
Edali voltou à sua casa, nas redondezas da vila. Assim que a construção surgiu diante de si – amarronzada e de aspecto pesado, graças às pedras que formavam as paredes –, a garota assumiu um andar mais leve. Como um ladrão no meio do seu sórdido trabalho.
Levantou a janela do seu quarto com a ponta dos dedos, cuidando para que não fizesse barulho algum. Tudo isso eram, provavelmente, preocupações desnecessárias. Assim como no caminho, não haviam sinais de movimentação dentro da casa. Tanto o seu pai, como a sua mãe, e a velha criada, estariam dormindo ainda. A maioria dos moradores de Okinto o estaria, a essa hora. Ainda assim, era difícil vencer a força do hábito.
Edali esgueirou-se para dentro do seu quarto, e fechou a janela atrás de si. Havia ali dentro uma escuridão confortável, do tipo que a acolhia e a convidava. Tirou as alpargatas dos pés e se jogou na cama. Fechou os olhos.
Talvez tivessem passado minutos. Talvez apenas segundos. Ou talvez horas. No estado semiconsciente em que estava, os ruídos dos galos que agora cantavam, dos passos no corredor, ou mesmo um incômodo e mais distante tilintar metálico (devia ser o vizinho e sua ferraria), não passavam de sensações distantes e incompletas. Como olhar através daqueles vidros foscos shenzianos. E, no entanto, era no seu interior que a agitação estava mais evidente. O que podia pensar depois de tudo? Agora, na escuridão da sua mente, várias das coisas que não percebera ou que não quisera perceber surgiam com mais clareza. A violência do ataque de ontem, que a deixara sobressaltada. O corpo morto do soldado, ensanguentado na cozinha. O aperto forte daquele homem, que a machucara e a deixara sem ar. Sim, ainda percebia uma dor surda no lugar onde ele a apertara.
Ignorou o toque de alguém no seu braço. Mas aquilo serviu para trazê-la para mais perto da realidade. Pelo que entedera, aqueles bandidos estavam atrás de Tobbi. Alina comentara isso, alguma vez. Dissera que aqueles cogumelos que ele cultivara lá em cima, no topo do vulcão, haviam saído de um empréstimo que ele tomara há um ano. Os bandidos seriam, então, os credores? Mas por que estariam procurando por ele aqui, quando aquele raki já devia estar em Estrela? Não, pensando bem, Estrela era algo que o seu pai dissera. Talvez eles não soubessem disso. E não sabendo, faria sentido virem perguntar a alguém que sabia. Pensavam que Alina sabia?
Edali começava a estabelecer um raciocínio coerente, mas a repentina sacudida que sentiu terminou por enterrar os seus pensamentos. Abriu os olhos, assustada. A sua mãe e a velha criada a observavam com preocupação, junto à sua cama.
– ... talvez devêssemos chamar um médico, senhora – ouviu a criada comentar.
– Não, olhe, ela acordou – Viu sua mãe chegar ainda mais perto, os cachos caindo-lhe pelos lados do rosto. – Está tudo bem, filha?
A garota piscou duas vezes, antes de entender o sentido da pergunta.
– Estou, mas por que a pergunta?
– É que você não costuma dormir até tão tarde. Já almoçamos há algum tempo. Innin tentou acordá-la, mas não conseguiu. Achamos que podia estar doente.
– Estar doente só por isso! – zombou, mas forçando-se a separar o corpo do colchão. – Estava com um pouco mais de sono, isso é tudo.
As duas mulheres olharam uma para a outra, confusas.
– Se está dizendo, Dalinha... – murmurou Innin, a velha criada.
Edali levantou-se da cama, e sem calçar as alpargatas, pôs se a andar pela casa. Não havia mais rastro da escuridão confortável da manhã; tudo dera lugar a feixes de luz mais forte nas frestas e janelas, e as nuances de um calor bem mais substancial. Sentiu um formigamento na barriga. Então era verdade. Não era algo que nunca acontecesse, mas passara muito tempo da última vez que acordara tão tarde. O que poderia ter causado...
Sentiu, mais uma vez, aquele vazio físico nas suas entranhas. Seguiu para a cozinha, ignorando as duas mulheres que a observavam à distância, como se temendo que estivesse realmente doente. Puxou uma cadeira e sentou à mesa. Da larga panela de barro deixada ali em cima, emanava o inconfundível cheiro do ensopado. De novo..., pensou.
As duas mulheres continuavam ali, conversando alguma coisa à entrada da cozinha. Lançando olhares ocasionais à garota. Eu estou bem!, ralhou Edali, mas sem dizer nada. Bem, havia dito isso, mas não pareciam ter acreditado...
Em seguida, pensamentos mais sérios voltaram a povoar a sua mente. Precisava fazer algo quanto aos bandidos, quanto a Alina, quanto a si mesma; quanto a isso tudo. Precisava... porque seria triste admitir que não podia fazer nada. Mesmo que a sua impotência fosse incontestável, não fazer nada seria admitir a derrota. E não era pela derrota que tanto resistira aos desejos e projetos dos seus pais.
Bem, precisava esperar pela noite para fazer qualquer coisa.
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