Dia 1
- Que sacrifício!
Blusa manchada, calça manchada, respingos para todo canto. Não havia guardanapo que desse jeito. Os palitos de metal pareciam não ter sido feitos para os dedos desengonçados de Betina. Mas ela não desistiria. Não faria isso. Estava naquela cidade, naquele país para aprender tudo o que fosse possível e se voltasse de Seul para São Paulo sem sequer saber segurar os jeotgarak¹ direito, consideraria a viagem toda um fracasso, mesmo sendo uma das melhores alunas da sala, conseguindo subir de nível no curso de coreano a cada semana.
Aquele pequeno restaurante já era seu lugar favorito no bairro, local de conforto para o seu coração cheio de saudades. Do jeitinho que via nos dramas, não se parecia nem um pouco com nada que havia em seu país de origem, mas o lugar a fazia sentir-se em casa. Não sabia se eram as mesinhas de madeira com seu cheiro característico ou os quadrinhos nas paredes, mostrando paisagens ensolaradas e haikus escritos em guardanapos. Era confortável e quente, assim como o sorriso da dona, que já havia feito de tudo para que Betina aprendesse a arte de se comer com pauzinhos, sem sucesso.
A porta se abriu balançando um sininho preso a ela. Betina não se importou com o som, ainda tentando entender como faria para o macarrão chegar a boca sem cair de volta na tigela e espalhar todo o caldo. O tom de voz da ahjumma² no caixa tornou-se mais animado, fazendo Betina levantar os olhos. Um rapaz, vestido de preto dos pés a cabeça, sorria e dizia algo a senhora. Os olhos dela brilhavam, como os de uma tia muito orgulhosa. Deveria ser alguém que ela não via há tempos. Betina sorriu e voltou a se concentrar na comida, tentando desesperadamente, "pescar" o mandu do prato.
***
Encarar aquela porta trazia lembranças boas e ruins. Boas, pois a comida de lá era barata e deliciosa e a ahjumma sempre dava mandu de graça para ele, que retribuia com pequenos poemas escritos em guardanapos. A ahjumma ficava com os olhos marejados quando os lia e aí dava um hotteok³ para finalizar. A parte ruim é que, naquela época, ele ainda era um trainee e o futuro parecia nebuloso demais. Respirou e finalmente empurrou a porta. O cheiro era o mesmo, as cores eram as mesmas. O sorriso da ahjumma, quando ele tirou a máscara e ela pôde ver seu rosto, era o mesmo. Olhou em volta. Seus poemas estavam todos enquadrados ao lado de paisagens ensolaradas:
- Era assim que eu me sentia quando lia os seus poemas... - Disse a mulher ao rapaz - Iluminada! E agora você está aqui de novo. Não pensei que voltaria a te ver, depois que se tornou o famoso Suga.
- É difícil ir pra qualquer lugar hoje em dia. - Coçou a nuca, meio sem graça - Mas por favor, não diz meu nome alto não. Acho que ninguém me reconheceu ainda, prefiro que seja assim e...Ao olhar para os lados, tentando confirmar que ninguém o havia visto mesmo, se deparou com o olhar de uma moça em sua direção. Não durou muito. Ela voltou a encarar o prato a sua frente, empenhada. Yoongi resumiu a conversa:
- Ahjumma, ainda lembra...
- Claro que eu lembro. Sente-se ali e eu já levo. Mandu por minha conta!
- Ahjumma! Não precisa mais ser assim. Agora eu posso...
- Não pode. Sou eu quem manda aqui ainda. Não se esqueça do meu haiku. Pode assinar dessa vez... se quiser.
E a mulher sumiu apressadamente em direção a cozinha, enquanto Suga, naquele restaurante sendo Min Yoongi, sentava na mesa oposta a da moça concentrada. O desafio dela se tornou uma atração interessante e dolorida. O lámen já parecia todo amolecido e vários mandus estavam destruídos. Sabia que a ideia que surgia em sua cabeça, fazia com que ele corresse o risco de estragar aquele lugar para ele para sempre, caso a moça ali o reconhecesse, alguém o visse ou coisa assim. Porém, não conseguiu ignorá-la. Levantou-se e foi em direção a moça. Ofereceu ajuda:
- Com licença...
Ela levantou os olhos da tigela e o encarou. Ele, sentindo as bochechas esquentarem sabe-se lá porque, continuou:
- Acho que... Você precisa de ajuda. Ahjumma pode te arranjar um garfo...
- Eu é que não vou comer comida coreana na Coreia de garfo! Betina respondeu, num coreano cheio de sotaque, que Yoongi achou bonitinho. Só de ouvir, ele já sabia de onde ela era. O Army cantando Seesaw em São Paulo havia deixado uma grande marca nele:
- Okay, okay - Respondeu o rapaz - Sei que vou soar como um pervertido, um doido talvez, mas... Posso te ensinar como usar os jeotgarak? Sou mestre nisso.
- E eu sou um fracasso! Betina riu. - A ahjumma já me mostrou um monte de vezes...
- Sou um ótimo professor, não se preocupe. Posso me sentar aqui?
A garota concordou com a cabeça:
- Ahjumma!- gritou Yoongi - Mudei de mesa!
Betina achou tudo aquilo muito esquisito, mas não questionou. Aceitou de bom grado a ajuda e a presença daquele moço. Não tinha muitos amigos ali em Seul, então ter companhia para almoçar era uma surpresa bem vinda. Ela sonhava com essas pequenas oportunidades, já que havia sido estragada pelos dramas coreanos, onde coisas românticas mirabolantes aconteciam. Mas naquele momento, não pensava nisso, apesar de ter achado o rapaz um gatinho. Ela estava com fome e queria praticar o que estava aprendendo nas aulas:
- Okay, vamos lá! - Disse Yoongi - Primeiro você coloca um dos palitos na curva do seu polegar e segura firme.
Mostrou a mão grande para Betina, que observou com cuidado. Ela copiou o movimento:
- Muito bem. - o rapaz continuou. Agora, apoie no seu dedo anelar... Não, não, está muito no meio... tem que ser mais na ponta.
Betina corrigiu a posição e ficou olhando para o rapaz. Conforme ele ia se soltando ao falar com ela, ele parecia ficar mais bonito. O encarou e o coração do rapaz pulou uma batida. Ela não tinha dado sinal nenhum de que o conhecia, será que finalmente se deu conta?
- Meu dedo está doendo. - Betina reclamou.
Yoongi respirou aliviado:
- É assim mesmo. Como tudo na vida, é pratica. Agora o indicador e o dedo do meio seguram o outro e se movem como uma pinça.
Betina admirou como o rapaz era meticuloso.
A ahjumma chegou com a comida de Yoongi: Lámen, arroz, mandu e kimchi. Rapidamente, num movimento perfeito, o rapaz pegou um tanto de lámen e o levou a boca, mostrando na prática como funcionava e queimando a boca no processo. Betina segurou para não rir, respirou fundo e o copiou, conseguindo finalmente colocar o macarrão na boca, sem que escorregasse de volta para a tigela. Olhava para Yoongi com olhos castanhos arregalados, enormes e felizes:
- Finalmente! - Disse a garota, assim que terminou de mastigar e sentindo-se ousada o suficiente para roubar um mandu quentinho do prato de Yoongi:
- Hey! - Ele alertou - Isso pode causar morte aqui na Coréia, hein!
Ela só não riu porque estava mastigando.
Yoongi parou para observar se a aula tinha dado certo. Claro que a moça ainda sofria, mas um pouco menos do que antes. Isso o deixou mais tranquilo, fazendo com que começasse a observar o quadro geral a sua frente. Um caderno sobre a mesa, uma bolsa rosa pendurada na cadeira. O cabelo chanel com uma mecha caindo sobre os olhos. Uma mão firmemente colocada sobre a mesa, como se manejar os talheres a fizesse perder o equilíbrio. A pele bronzeada daquela mulher contrastava com a dele sobre a mesa. Um desejo incomum e inoportuno passou por sua cabeça. Mais um. O que havia com essa garota que o fazia ter tantas ideias fora de lugar? Sentiu o desejo de tocá-la, como se dela emanasse um calor diferente, que deixava o dia frio de Seul um pouco mais quente. Os dedos dele começaram a tamborilar muito próximos aos dela, que seguia completamente alheia a proximidade do rapaz. Ela deixou um dos palitos caírem. Yoongi, com o susto causado pelo barulho, tirou a mão de perto da dela de uma vez. O que ele estava fazendo? A moça, ao levantar os olhos, espiou o grande relógio que havia próximo a uma tv acima do caixa:
"O grupo BTS acabou de anunciar o seu próximo comeback..."
"Ah não!" Pensou. "É agora que ela vê e ..."
Betina se deu conta de que estava atrasada para voltar ao curso de coreano. Levantou-se, trombando na mesa e derrubando mais um pouco do caldo do lámen. Aquele rapaz havia feito com que ficasse tão distraída, que não viu o tempo passar. Ao olhar para ele, notou que estava com as bochechas rosadas e abaixava os olhos. Envergonhado por causa dela ou queimado do frio? Ele era tão branquinho:
- Já vai? Mas você nem comeu direito!
Betina então enfiou uma colherada de arroz na boca, sem perceber que pegava mais uma coisa do que ele havia pedido. Yoongi apenas observou:
- Me desculpe! - disse de boca cheia, parecendo um hamster - Obrigada pela aula. Tô atrasada.
Queria saber se o rapaz havia entendido, mas não podia mais ficar. Agarrou a bolsa e o caderno, jogou o dinheiro em cima da mesa e correu, deixando um Yoongi atordoado e intrigado para trás.
Ao se virar para vê-la sair, Yoongi teve a impressão de que o homem que estava na mesa atrás deles havia se assustado e baixado rapidamente o celular. Como não poderia afirmar de verdade, tentou se afastar desses pensamentos e voltou a comer. Era como ter 20 anos novamente. O sabor ainda era o mesmo.
***
"Sob o mesmo teto
Uma mariposa e um brilho intenso
Já não faz mais frio"
¹ Hashi em coreano.
² Termo usado para se referir a mulheres mais velhas. Pode ser traduzido como aquele tia que usamos para professoras.
³ Panqueca doce coreana.
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