Mais cedo ou mais tarde, as dívidas são cobradas
O dono da casa não saiu do quarto nem para saber quem eram os visitantes que batiam à sua porta. Um péssimo anfitrião, no entender deles.
Eles arrombaram a porta e o encontraram na cama, suando bastante por causa de um pesadelo. Nada que uns bons tabefes por parte de Juna não o fizessem voltar ao mundo dos acordados. Juna e Félix tiveram que arrancá-lo da cama.
O tal Malcolm não recebeu com alegria os estranhos que ousavam invadir os seus aposentos. Ele ficou de pé e avaliou o bando que seguia a mulher. Visualizou o mordomo parado na entrada.
Sacudiu os braços, tentando se livrar de Juna e Félix. – Largai-me!
–Só depois de nos mostrar onde escondeu o corpo de tua esposa.
Ele observou Félix erguer a espada e encostá-la junto a sua garganta. Sem saída, concordou.
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Vestindo um roupão e calçando chinelos, Malcolm tirou o lampião da base, em um nicho de parede, e saiu pelo corredor. Foi seguido de perto pelo grupo.
Juna estava com Lang, Domênico e o mordomo Maxwell. Os demais piratas, amedrontados, seguiam vários metros atrás, carregando suas tochas. O grupo começou a descer uma escada que parecia levar aos calabouços do castelo. Mas só quando chegaram lá, perceberam que não se tratava dos calabouços, e sim de uma caverna subterrânea.
Da parede mais a frente, surgiu a figura de Caitlin, flutuando na direção deles. Juna, Félix, Malcolm e Lang permaneceram na escada. O restante dos piratas subiu de volta correndo, impulsionados pelo pavor.
–Não é Caitlin – Juna disse em voz alta. Domênico manteve a espada em punho, mesmo sabendo que de nada adiantaria.
–Grande consolo, minha irmã! – Respondeu, aflito. Afinal, era uma figura fantasmagórica e flutuante tal e qual a outra.
–Sheila! – Malcolm estendeu as mãos para ela.
–Libertai-me! Libertai-me! Libertai-me! Enterrai a bruxa! – A voz lamuriosa de Sheila ecoava como um mantra.
Mais ao fundo do cômodo, estava o caixão de Caitlin, rodeado por flores murchas. O corpo em exposição aparentava estar bastante decomposto. No entanto, em algum momento, a umidade da caverna provocou um processo natural de mumificação. O que tornou a aparência do cadáver mais assustadora do que seu fantasma.
Havia um cheiro enjoativo no ar.
A tampa caída do caixão, para o lado, revelava as mãos cruzadas da defunta sobre o peito e a cabeça envolta pelo véu de casamento. Em seu rosto, a sugestão de um sorriso macabro.
Malcolm foi tomado por desespero e fúria. Ele agarrou a espada de Juna e correu na direção do corpo. Ergueu a espada acima da cabeça, pronto para golpear.
–Não faças isso! – Juna pediu, porém, não conseguiu detê-lo a tempo.
–Maldita! Eu te matei! Posso matar-te de novo! – Ele golpeou repetidas vezes. – Vá para o inferno!
Lang sacudiu a cabeça, tranquilo.
–Assim não dá... Ele não tem nenhum respeito pelos mortos. Está perdido.
–Como assim? – Sussurrou Domênico.
–Espera e tu verás! – Lang apontou para a escura e nebulosa imagem que começou a se formar no alto do cômodo. De repente, num dos golpes, a espada ficou presa no peito do cadáver. Malcolm não conseguiu retirá-la, muito menos largá-la – sua mão parecia grudada no cabo.
Os olhos de Malcolm se arregalaram de pavor. Uma transformação se operou e a massa escura envolveu a defunta e seu assassino. O corpo em decomposição – judiado pelos golpes – remoçou de repente e se animou, com o aspecto dos tempos em que ela estava viva. Caitlin abriu os olhos, segurou a lâmina da espada com ambas as mãos, e retirou de dentro do próprio peito.
O olhar que Caitlin lançou a Malcolm foi medonho. Juna e Félix observaram a cena, de perto, incapazes de se mexer. Caitlin agarrou Malcolm pelo pescoço e o puxou para dentro do caixão.
–Finalmente... Tua hora chegou. – A voz lúgubre sentenciou, num tom muito doce.
Melodioso, até.
Caitlin, então, forçou Malcolm a beijá-la nos lábios carcomidos. Na verdade, a boca dela pareceu engolir a dele. Malcolm gemeu, com olhos arregalados, até que eles ficassem vítreos. O beijo continuou indefinidamente... Só que da boca dele começou a jorrar sangue. Os piratas finalmente entenderam que a criatura estava literalmente comendo a boca dele por dentro.
Juna tentou impedir, puxando Malcolm para trás, sem resultado. Ele parecia colado ao caixão. Ela então foi segura por Lang e Félix, e afastada.
–Em ajustes de contas, ninguém deve interferir. – Lang comentou no ouvido dela. – Apenas ele poderia se libertar, se estivesse sinceramente arrependido do que fez no passado.
Malcolm caiu morto no chão. A maldição havia completado o seu ciclo.
Caitlin sentou-se, com olhar triunfante. De sua boca ainda escorria o sangue do marido, por entre os dentes pontiagudos. Seu rosto assumiu os traços humanos normais; aparentando cansaço, a morta deitou-se outra vez no interior do caixão e fechou os olhos. Desta vez, para sempre. O corpo voltou a parecer um cadáver decomposto.
–Acho que está tudo acabado. – Félix sussurrou.
Lang meneou a cabeça.
– Para nós, sim... Mas para Caitlin, não. Ela combateu olho por olho, como dizem os antigos hebreus. E isso também vai custar a ela um preço a ser pago do outro lado.
–Como assim? – Juna indagou, curiosa.
–Não a veremos outra vez por aqui, mas ela certamente não alcançará o paraíso por conta dos seus atos. Deverá expiar pelo "vale das sombras", assim como o próprio Malcolm. O ódio é um sentimento que liga as pessoas por diferentes encarnações. Por isso, Jesus dizia que o perdão tinha poder de libertar as pessoas. O perdão é a arma mais poderosa contra as trevas.
Juna refletiu sobre suas palavras. Ela era cristã, acreditava em Cristo, mas não acreditava na Igreja. Estaria pronta para perdoar o que fizeram aos seus pais e irmãos? Estaria pronta a perdoar o que fizeram aos pais lombardos que a adotaram?
Ainda não tinha essa resposta. Mas o evento do Castelo de Carmim-Sur a impressionou e a fez pensar durante muito tempo.
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