33. Sofrimento - Emily
Ao acordar, percebi que Giovanni não estava no quarto. Encontrei-o na cozinha fazendo café e conversando pacificamente com Ricardo e Gustavo, que ao me ver se arrastou ao meu encontro. Eu o abracei e ele forçou um sorriso.
— Obrigado por me deixar ficar.
— Como eu poderia não fazer isso? Sabe o quanto é precioso para mim.
Ele concordou com a cabeça e começou a chorar. Apertei-o em meus braços na tentativa de confortá-lo. O efeito do calmante havia passado e ele se encontrava desolado, chorou por algum tempo. Eu podia sentir sua raiva e seu desespero pelo o que aconteceu a cada tremida de seu corpo encostado ao meu. Eu estava completamente impotente, sem encontrar qualquer coisa por dizer ou fazer. Doía-me demais vê-lo sofrendo e minhas lágrimas também me fugiram. Ricardo abraçou-nos numa tentativa de nos consolar e Giovanni observava-nos sem muito fazer.
Quando finalmente nos acalmamos, Giovanni nos serviu o café-da-manhã. Uma refeição silenciosa e emocionalmente pesada.
A manhã percorreu sombria; Gustavo se manteve calado e agarrado a Lucky, enquanto nós quatro ficávamos na frente da TV e fingíamos assisti-la. Nada parecia realmente interessante para nos distrair do sofrimento.
Sérgio chegou mais tarde para ver Gustavo e nos trouxe o almoço que Maria havia feito para nós. Comemos todos juntos e Sérgio levou o Ricardo para a rodoviária. Abraçamo-nos fortemente na despedida. Gus, depois disso tudo, preferiu deitar-se um pouco e adormeceu. Eu e Giovanni sentamos no sofá, abraçados.
Nossa conversa desanimada percorria antigos livros, lembranças de filmes, fugindo dos acontecimentos recentes, era apenas um passar de tempo à espera de anoitecer novamente e podermos desligar de tudo por algumas horas.
Até que Giovanni simplesmente não conseguiu mais manter para si algumas coisas que o chateavam:
— Sua tatuagem parece uma versão menor e idêntica da que o Ricardo carrega no ombro.
Ele me olhava angustiado e nesse momento não pude sentir raiva, apenas compreendi que a presença de Ricardo foi para ele frustrante, como o acontecimento com Gus o foi para mim, pois nossos sentimentos estavam grudados a situações diferentes.
— Fizemos a tatuagem como simbologia da sinceridade, amizade e cumplicidade de nós três. O Gustavo deveria fazer uma também, mas desistiu na última hora. Na época foi como uma promessa de que sempre estaríamos juntos, como amigos.
Não estava sendo totalmente sincera com ele em minha fala, mas também não era mentira. Cada estrela tinha o seu significado em nossa história: sinceridade em nossos atos e falas, o não término de nossa amizade, e a cumplicidade de nossos segredos. Ricardo convidara o irmão a participar de nossa loucura, apesar da ideia inicial de Ricardo ter sido uma maneira infantil de me pedir desculpa por ter ficado com outra garota.
— Foi algo tolo de se fazer. — ele franziu o rosto, sua voz estava áspera.
— Sim. — forcei um sorriso. — Mas é uma bela tatuagem, não é?
— Fica melhor em você do que nele. — ele tentou demonstrar simpatia, e desviou o olhar. — Desculpe-me, sei que este é um péssimo momento. É que ver o seu ex me deixou... sem chão. Eu o imaginava mais como o Gustavo, no entanto ele é tão diferente. E vocês pareciam tão felizes e consolados em se ver. Era como se eu estivesse sobrando.
— É importante para mim que esteja aqui. — o beijei para desmontar que era ele que eu amava.
— É bom ouvir isso.
Aconcheguei-me em seus braços. Sabia o choque que ele sentira ao ver o Ricardo, era o que normalmente acontecia quando conheciam o Gustavo primeiro. Os dois se assemelhavam em suas feições bonitas, no entanto Gus era magro, tímido e aparentava fragilidade; enquanto Ricardo era forte, confiante, bronzeado e encantadoramente extrovertido.
— Por que não me contou naquele dia no carro, quando discutimos, que Gustavo era homossexual? — Giovanni me olhou intrigado. — Teria finalizado nossa briga por completo.
— Nunca trairia o segredo que Gustavo confiou a mim e a seu irmão. Ele não queria que ninguém mais soubesse.
— Não confia em mim?
— Confio muito. — soltei com sinceridade. — Mas o segredo não era meu.
— Eu sabia que vocês tinham uma forte ligação. — ele parecia refletir para si e havia mágoa em sua voz. — Mas quando vi o quanto você se afetou com os acontecimentos e como esteve disposta no passado a brigar comigo ou aceitar ser mal falada por amizade a Gustavo percebi quão intensa realmente é. — ele me abraçou com força. — Algum dia chegaremos a ter algo parecido?
— Espero que sim. — sorri apaixonada.
Ele esboçou um sorriso ao encostar sua cabeça a minha. Eu o amava, entretanto ele estava certo, o que eu sentia por Gustavo era imensamente mais poderoso. Penso que seria o mesmo tipo de amor que uma mãe devotada sente por seu querido filho. O que provavelmente a mãe de Gustavo não era capaz de sentir por ele. Deixei-me permanecer abraçada, desejando sinceramente que algum dia nosso amor alcançasse tanta força.
****
Durante a semana, Gustavo não teve nenhuma melhora significativa em seu estado de espírito. Sérgio conversou com os coordenadores e conseguiu dispensa para Gus, além de uma bolsa de estudos parcial, já que o dinheiro que a mãe dele mandava não era suficiente para pagar a faculdade.
Giovanni nos conseguiu um psiquiatra para atender meu amigo. Combinamos que ele iria três vezes por semana enquanto estivesse tão apático, para conversarem e talvez receitar um antidepressivo. Era muito angustiante vê-lo sofrendo, pois nada parecia alegrá-lo e ele passava quase o dia na cama.
No turno da manhã, Maria lhe fazia companhia para eu ir à aula e a tarde e a noite eu o acompanhava. Maria me surpreendera por sua devoção em nos auxiliar. Apesar dela ter sempre me amparado em sua casa foi só com os acontecimentos de crise referentes a Gustavo que eu aprendi a ter mais consideração por ela.
Sérgio vinha nos visitar com frequência. Giovanni passava todo o tempo que não estava na faculdade conosco. Ricardo ligava todo o dia. Alice às vezes vinha comigo da faculdade para passar a tarde. E Rodrigo tornou visita frequentemente, Gus sentia-se melhor na companhia dele, pois este lhe dava forças e falava sobre os preconceitos que já havia passado por ser homossexual, entre outros assuntos que só ele poderia verdadeiramente compreender.
No dia seguinte ao ocorrido liguei para minha mãe para informá-la de tudo. Combinamos que Gus moraria comigo o tempo que fosse necessário e que ela começaria a me mandar mais dinheiro para as despesas. Minha mãe estava preocupada, pois sempre tivera grande carinho pelos dois meninos. Quando éramos crianças ela nos abraçava e dizia que tinha uma filha legítima e dois filhos de coração. Dois dias depois ela me ligou informando que conseguira uma folga e viria dentro de um mês nos ver.
****
A campainha tocou, eu e Gus nós indagamos confusos. Alguém devia ter subido com um vizinho e estava à nossa porta, pois não havia se pronunciado no interfone da entrada.
Era a mãe de Gustavo. Eu não queria que ela entrasse, contudo o Gus, de coração mole, permitiu.
— Olá, filho. Vim trazer o seu bolo preferido, mais dinheiro e ver como você está. — ela admirou-nos com olhos tristes.
— Veio ver como ele está? — Gritei, incrédula. Meu peito se inflou de raiva quando minha voz alta ainda ecoava pelo apartamento fazendo Lucky agitar-se no poleiro. — Vocês o trataram como uma aberração. Como você acha que ele está? Não o defendeu quando devia e agora vem aqui com essa cara de coitada como se tudo estivesse bem. COMO PODE SER UMA MÃE TÃO TERRÍVEL?
— Meu filho, me perdoe. — ela chorava ao me ignorar e fitar Gustavo.
Eu, numa postura enfurecida e protetora, a mantinha do lado de fora da porta entreaberta. Não acreditava como a mãe de Gus tinha coragem de vir pedir perdão ao filho ao mesmo tempo em que mantinha seu apoio ao marido. Gustavo se aproximou e, como de costume, deixou-se vencer por sua mãe. As lágrimas brotavam grossas de seus desamparados olhos e ele a abraçou. Eu me afastei perplexa.
— Gus, como você está? Eu sinto muito. — sua mãe dizia entre lágrimas. — Implorei para seu pai lhe aceitar de volta, mas ele não está disposto a isso. Não se preocupe, filho. Eu vou lhe trazer dinheiro e tudo o que precisar uma vez por semana.
Gustavo apenas se deixava embalar como um bebê nos braços da mãe. Meu coração enraivecido não acreditava na facilidade com que Gus perdoara a mãe, como se ela não tivesse tido nenhuma participação no ocorrido. Ela permitira que o marido jogasse Gustavo para fora como se ele fosse um inseto. Retirei-me derrotada ao meu quarto.
Giovanni invadiu meu quarto ainda segurando os potes de comida chinesa que fora buscar para nosso almoço.
— Aquela é a mãe de Gustavo? — ele fechou a porta, atônico.
— Infelizmente é. — ele se sentou na borda da cama confuso com meus olhos furiosos. Falei abafado. — Ela vem aqui depois de tudo. Pede desculpa, e o Gus simplesmente aceita?
— O que você esperava que ele fizesse?
— Que brigasse com ela! Que dissesse como ele está magoado! Que contasse os pesadelos que o acordam à noite e o fazem chorar. Que falasse de como sua autoestima está desmantelada. — Giovanni me observava quieto. Ele abraçou-me fortemente quando minhas lágrimas de raiva escaparam de meus olhos. — Eu só queria que ele a enfrentasse uma vez na vida e mostrasse que ela sempre o magoa.
— Emily, talvez, no momento, seja mais fácil para Gustavo se apoiar no perdão da mãe do que pensar em todos os sentimentos ruins.
— Eu sei. — suspirei na tentativa de tranquilizar meus batimentos. — É que dói tanto ver a mesma história se repetindo desde que somos crianças. A mãe de Gus está constantemente magoando os filhos e Gustavo sempre a perdoa. E depois eu tenho que tentar colar os cacos que ela deixou para trás.
— Não fique tão amargurada, o Gustavo vai se fortalecer e poderá enfrentar a mãe um dia. Mas não agora.
— Se o Ricardo estivesse aqui seria tudo tão diferente. — Giovanni se mostrou magoado. Mas eu não conseguia guardar o pensamento apenas para mim. — Na presença dele, sua mãe ouviria muitas verdades. Ela teria que se esforçar muito mais para conseguir que o filho a perdoasse.
Giovanni preferiu não comentar, apenas me abraçou. Gustavo entrou no quarto com o rosto inchado pelo choro. Ele me observava envergonhado. Sabia o que eu pensava sobre o que tinha acontecido. Giovanni nos analisou e levantou-se educado, deixando-nos sós.
— Emily, sei que não devia. — Gustavo abaixou a cabeça ao falar. — Mas eu não aguento mais ficar longe de minha mãe.
— Sabe como isso é errado, não sabe? Ela vai fazer de conta que nada aconteceu e vai ficar te visitando sem enfrentar o seu pai.
— Eu sei. — ele recomeçou a chorar compulsivamente. — Sinto falta dela. Não fique chateada comigo. Eu preciso muito de você.
Aproximei-me e o abracei fortemente. Estava decepcionada e com raiva, mas não iria insistir em meus sentimentos junto a Gustavo. Ele precisava de meu apoio e não de minha rispidez. Afaguei seus cabelos.
— Se isso te faz mais feliz, está tudo bem.
— Obrigado, Emily.
Apertei meu coração e engoli todo o sentimento ruim que me acompanhava, permitindo que tivéssemos um almoço e uma tarde, novamente, à frente da TV.
À noite, sozinha após todos dormirem, meu peito estava esmagado pela raiva contida. Liguei para Ricardo, na esperança de evitar um ataque do coração por tanto sentimento sufocado.
— Não acredito que ela esteve aí! — ele gritou aborrecido.
Ele compartilhar de minha raiva me acalmou permitindo que pudéssemos trocar injurias e reclamações sobre sua submissa mãe e seu cruel pai.
— Ela me procurou ontem também. Mas eu deixei claro que para voltar a respeitá-la só se ela se posicionasse. O que ela permitiu que meu pai fizesse com Gus para mim não tem perdão.
Ricardo falava revoltado, numa resolução madura de seus sentimentos e não numa forma de birra com sua mãe. Ele apenas acreditava, assim como eu, que as pessoas merecem ser tratadas como nos tratam independente de qualquer laço de sangue. Conversar com Ricardo me fortaleceu para suportar mais um tempo o Gustavo iludindo-se com sua mãe.
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