Capítulo 12
-Não sabia que se conheciam há tanto tempo assim!- Diz Beth após Luke mergulhar no passado e contar como nos conhecemos. Queria ter ajudado meu amigo a compartilhar essa memória com nossa colega de trabalho, mas apenas consegui ficar parada olhando para a cidade em minha frente e lembrando o quanto odeio e amo esse dia ao mesmo tempo.
Conhecer Luke foi uma das maiores bênçãos da minha vida. Ter um amigo sempre disposto a brincar e conversar é tudo o que uma criança precisa. Ainda me lembro dos olhos surpresos dele ao me ver observando-o pela grade do portão. Também me lembro de Simba e da sensação do seu pelo entre meus dedos. E de como me lembrava de Bolota.
Quietinha pequena Jessie. Não foi isso que combinamos.
De repente a voz dele se mistura com a de Luke e a de Beth e o restante do mundo. Minha visão escurece algumas vezes, então seguro firmemente no muro para não me esborrachar no chão do estacionamento. Meu estômago começa a ficar enjoado e me pergunto se é apenas o efeito de algo que comi. A temperatura do meu corpo aumenta mesmo estando fria, cada parte queimava como as mãos de titio.
-Jessie!- Grita Beth ao meu lado quando coloco tudo o que havia dentro de mim para fora. O líquido gosmento escorre pelo muro e suja a barra da minha calça. A dor do meu estômago diminui, mas minha garganta arde e sinto o vômito nas minhas narinas.
-Eu estou bem- Digo limpando o fio de saliva que escorre pelo canto da boca na camiseta. Agora devo estar cheirando a suor e vômito. Aquilo era realmente nojento- Acho melhor eu ir para casa.
-Eu te ajudo a descer- Diz Luke ativando o modo protetor. Quando ele fica assim, se preocupa até quando um mosquito me morde. Eu diria que cuida melhor de mim do que meu próprio pai.
Luke desce do muro acompanhado de Beth provocando um baque surdo. Meu amigo faz um movimento com a mão sinalizando que posso pular e se prepara para me segurar caso perca o equilíbrio. Desço sem dificuldades, já que a tontura tinha passado depois que despejei meu almoço.
-Você está bem Jessie?- Pergunta Beth se aproximando e pousando a mão no meu ombro. Seus olhos já não brilhavam tanto quanto antes por terem sidos tomados por preocupação.
-Foi só um mal estar- Era uma meia mentira- Estou bem.
-De qualquer forma vou te levar até sua casa- Fala Luke pousando a mão nas minhas costas de forma protetora- Precisa de carona também Bethany?
-Não, obrigada- Ela dispensa sua proposta com um movimento de mão- Estou de carro.
-Tudo bem. Vamos Jessie?- Diz se dirigindo em direção ao seu carro estacionado nas sombras do mercado.
-Desculpa por estragar a noite.
-Não se preocupe! Podemos continuar a conversa outro dia- Tranquiliza Beth com um sorriso doce no rosto- Talvez possamos até sair para comer! Acho que cerveja de estômago vazio não te faz bem.
-Pode ser- Devolvo meu melhor sorriso para ela- Obrigada.
Passo o caminho todo querendo contar a Luke o verdadeiro motivo do meu mal estar. Mesmo depois de muito tempo ainda me sinto mal ao me lembrar das mãos de Marcelo no meu corpo infantil, fazendo coisas das quais eu não entendia quando era menor. A pior parte é que ele não foi preso por conta dessas ações e sei que se Luke soubesse do que aconteceu, o mataria com as próprias mãos.
-Tem certeza que vai ficar bem?-Pergunta quando abro a porta do carro e deslizo para fora. O vento gelado me envolve imediatamente levando o cheiro forte do vômito para longe- Posso te levar ao hospital.
-Não precisa Luke- Fecho a porta do carro e me inclino para olha-lo pela janela aberta. Seu rosto ainda apresentava rugas de preocupação- Obrigada pela preocupação.
-Me liga se precisar de algo- E volta a ligar o carro colocando-o em movimento.
Fico parada na frente do prédio até seu carro desaparecer no horizonte. Queria ficar do lado de fora sentindo o vento frio esfriar minha pele febril e bagunçar meus cabelos escuros, mas pessoas que passavam andando pelas sombras e de cabeça abaixada me fazem entrar rapidamente.
Nunca se sabem o que os outros podem fazer com a gente.
*
- O que está fazendo aqui Jessie?- Pergunta Beth girando a cadeira conforme me movimento.
-Trabalhando?
-Está se sentindo bem? Estava tão pálida ontem.
-Estou- Um casal se aproxima e começa a tirar as compras do carrinho e coloca-las na esteira- Foi uma coisa do momento.
Beth assente e começa a trabalhar parecendo satisfeita com minha resposta.
É engraçado analisar o que um casal compra. Os demais empacotadores não parecem ligar muito para isso, pois estão sempre imersos em pensamentos enquanto colocam produtos atrás de produtos dentro da sacola como robôs. Mas eu gosto de perceber o que cada um compra. De alguma forma, isso conta um pouquinho da história deles.
Esse casal, por exemplo, não está levando fraudas, então provavelmente eles não têm um bebê. Também não estão levando doces ou algo que agrade uma criança, então eu concluo que não tem filhos ou talvez eles já estejam na faculdade. Noto que há uma grande quantidade de carne e cerveja. Imagino que uma comemoração se aproxima.
Talvez tudo isso seja coisa da minha imaginação, mas eu continuo gostando de imaginar que cada coisa é uma dica para descobrir a história de uma pessoa.
-Nunca vi alguém comprar tanta carne na vida- Digo assim que o casal paga a compra e sai deslizando o carrinho até o estacionamento.
-Deve ser para comemorar o dia das mães. O que vai fazer nesse dia?
De repente meu estômago embrulha como ontem, mas dessa vez não sinto que vou vomitar. Essa dor é apenas o vazio do meu peito se espalhando por cada canto do meu corpo. Eu havia me esquecido completamente do dia das mães.
-Nada- Minha voz sai tão baixa que achei que Beth não fosse ouvir- Minha mãe faleceu faz um tempo.
-Ah... Eu sinto muito Jessie- Seus olhos se enchem de culpa quando os meus se enchem de lágrimas- Você deve sentir muita falta dela.
-Demais.
Beth se levanta e me envolve em um abraço. Aproveito e tento fazer com que seu carinho tome um pouco do espaço que a saudade ocupa, mas não parece funcionar. Minha mãe sempre foi meu porto seguro. Apesar de ficar brava com ela quando me colocava de castigo por passar dos limites, eu a amava imensuravelmente.
Ainda me lembro de seus cabelos longos como os meus e os olhos azuis profundos e cheios de amor. Ela não tinha muito tempo para cuidar dos fios cor de chocolate, mas ainda sim tinham um belo brilho natural. Lembro-me de como ficava maluca por eu fugir do banho como gato e de como tinha que me arrastar até o banheiro.
Também me lembro dos fins de tarde, quando ela havia acabado o serviço de casa e o sol estava desaparecendo no horizonte provocando um brilho alaranjado no céu, em que sentávamos em volta do pé de pitaya e colhíamos uma para comermos juntas. Seu interior cor de rosa deixavam as pontas dos dedos machados com sua tinta e os lábios coloridos.
Rio ao me lembrar do experimento com leite condensado. Lembro que acabei gostando mais da fruta pura do que acompanhado do doce melado. Será que a Jessie de hoje ainda acha a mesma coisa?
-Obrigada Beth- Digo me afastando- Eu preciso fazer uma coisa.
Vou até o hortifrúti e procuro por uma pitaya com boa aparência e a embalo. Depois sigo pelos longos corredores até encontrar o que abrigava os leites condensados de diversas marcas e escolho um.
Enquanto caminhava até o caixa, uma coisa me chama atenção. Uma caixinha de tinta para cabelos parece brilhar sobre a forte luz branca das lâmpadas. A moça da embalagem tinha os cabelos da mesma cor rosa da pitaya e exibia com um sorriso os longos fios que flutuavam ao redor de sua cabeça.
Por que não?
Incluo a tinta nas minhas compras e as passo no caixa. Tarde da noite, quando chego em casa, procuro um tutorial rápido na internet de como pintar o cabelo sozinha e resolvo testar. Preparo a mistura e me preparo para aplicar, mas me deparo com um problema. Eu tinha pouca tinta para uma quantidade muito grande de cabelo.
Então eu tenho uma ideia. Meio maluca, mas talvez desse certo. Meus olhos pousam na tesoura que descansava sobre a pia. Levo-a até uma mecha de cabelo e a corto sem hesitar. Os fios grossos e escuros caem no chão e em pouco tempo um mar se encontra aos meus pés.
Depois pincelo tinta por todo meu cabelo como a moça do vídeo. Sigo todos os seus passos até ter que parar para esperar a tinta agir. Aproveito esse tempo para cortar a pitaya e a lambuzar com leite condensado e descobrir se a Jessie de hoje vai começar a gostar dessa mistura.
Sento-me em frente a janela por onde entrava a brisa fresca da noite. Os carros passavam rapidamente na pista ao longe provocando um ruído tranquilizador. A cidade estava escura e as estrelas brilhavam intensamente no céu junto da lua. Encho a colher com a fruta e ergo em direção ao céu fazendo um brinde.
-Feliz dia mamãe.
E a levo até a boca sentindo o sabor doce e enjoativo do leite condensado por todos os lados. A mini Jessie tinha razão. A mistura não era ruim, mas nada se comparava ao sabor natural da fruta.
Certas coisas nunca mudam.
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