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Atenção: há um glossário ao final do capítulo com o significado das palavras estrangeiras no texto.
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Dormindo aconchegada nos braços quentes de jeonha, acordo com barulhos fortes na porta. Hye Sun e o eunuco chefe entram e, com terror em suas feições, nos dão a notícia.
O príncipe Suyang, tio de jeonha, conspirou com ministros e oficiais da corte. Conseguiu apoio suficiente para usurpar o trono e pretende mandar o sobrinho para o exílio, retirando-lhe o título real.
Os criados contam que prepararam tudo às pressas para nossa fuga e que devemos partir imediatamente. Atordoados, mas despertos pela adrenalina, nos movemos rumo aos portões.
Jusang galopa com velocidade e me seguro contra ele, envolvendo sua cintura num aperto ansioso. Subimos o monte Bugaksan em meio a inúmeros percalços, desviando-nos dos troncos dos pinheiros, alguns arbustos deixando cortes profundos em minha pele, rasgando o tecido do hanbok, pincelando vergões vermelhos em meu rosto.
Não diminuímos o passo nem por um minuto sequer, mas o trotar dos cavalos se aproximando fica cada vez mais audível.
Quando a mata se torna muito fechada, tomamos o caminho à pé. Jeonha segura minha mão o tempo todo e, quando torço o tornozelo, ele me carrega nos braços.
Evito olhar para trás sabendo que, se eu o fizer, verei soldados prestes a nos alcançar. Tão perto do jeonha, ocupo-me em observar gotas de suor escorrerem lentamente por seu pescoço, seu pomo de adão subindo e descendo, seus lábios entreabertos, ofegantes, sussurrando repetidamente doces palavras de consolo.
E no momento em que o reflexo em seus olhos torna-se sombrio, percebo que algo muito errado está para acontecer.
Ele me coloca no chão e, juntos, contemplamos o penhasco à nossa frente. Embaixo, um grande rio corre tranquilo, alheio à perseguição que se desenrola.
Somos cercados. Guardas reais, antes leais ao Jusang jeonha, agora apontam suas espadas afiadas em nossa direção e gritam palavras de ordem.
— Hyo Joo. — Ele sussurra para que apenas eu ouça. — Você confia em mim?
— Confio. — Respondo, ciente de que o que ele está para propor é nada menos que loucura.
Jeonha aperta minha mão e pede que eu feche os olhos.
Obedeço e, então, o mundo torna-se vermelho. O sol forte contra minhas pálpebras traz uma sensação de conforto inesperada.
Ouço o farfalhar das árvores, sinto o vento acariciar meu corpo e escuto pássaros cantando, provavelmente aninhados ente os galhos das árvores.
Sem aviso prévio, o cenário muda. Os brados graves dos soldados são abafados. O mundo começa a rodar num caleidoscópio de cores quentes. Meus pés dançam no ar e meu corpo gira no eixo. A única firmeza que sinto vem a mão que segura a minha, sem vacilar, até que atingimos a superfície das águas.
Finalmente abro os olhos.
Envolta pelas águas frias do rio, o sol brilha timidamente acima de nós. À minha frente, jeonha flutua sereno como se imerso num sono pacífico, algumas bolhas escapando de suas narinas.
Graças à correnteza fraca, consigo arrastá-lo para a margem. Desesperada, aperto as mãos contra seu peito, pressionando-o. Sem resposta. Inconformada, chacoalho seus ombros, beijo seu rosto, sussurro seu nome e cubro-o com minhas lágrimas. Nada. Entorpecida, abraço seu corpo inerte, compartilhando com ele meu calor e, se possível, minha vida.
— Não me deixe, Hong Wi.— Eu o chamo e minha voz se quebra. — Não me deixe.
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Ano 1456 do reinado de Sejo¹.
Talvez devêssemos ter dado mais atenção às admoestações do ministro e do general. Talvez, se não fôssemos tão jovens, teríamos notado que os cochichos que circulavam na corte não eram apenas rumores. Quem sabe, se não estivéssemos tão imersos no amor puro que recém havíamos descoberto, notaríamos que algo estava fora do lugar, sentiríamos o cheiro do perigo se aproximando. Mas não foi assim que aconteceu.
Meus sapatos, um dia de couro bordado, agora são gastos e sujos. Minhas vestes, antes de seda colorida, agora são de algodão branco, grosso e áspero. Com os cabelos presos num coque simples com pinos de madeira, ignoro os olhares de pena que recebo na rua.
A verdade é que fui capturada e exilada no norte de choson². E apesar dos inúmeros motivos para apenas praguejar e desistir, suspiro aliviada todas as manhãs ao acordar, pois o rosto de Yi Hong Wi é a primeira coisa que vejo.
— Bom dia.— Ele enlaça minha cintura, puxa-me contra suas costas e beija minha nuca.
Rolo no futon, ficando de frente pra ele.
— Bom dia.— Sussurro contra sua boca, roçando seus lábios quentes.— Você vai ao mercado da cidade hoje?
— Vou. — Ele diz, espreguiçando-se. — Venderei todo estoque de abalones até a hora do almoço.
Rimos juntos.
Ainda não nos acostumamos à esse tipo de conversa trivial e afazeres diários tão comuns. Também causa estranheza saber que há guardas continuamente nos vigiando para que não tentemos fugir.
Mas a grande ironia esconde-se no fato de que, apesar de conformados com a vida simples a que fomos relegados, recebemos ontem uma mensagem secreta vinda da capital.
Seis ministros leais à Hong Wi pretendem restaurar seu reinado e colocá-lo de volta em seu lugar de direito. O movimento também tem ganhado força ente os cidadãos comuns e das classes mais baixas, insatisfeitos com o governo autoritário e sanguinário de Sejo, o antigo príncipe Suyang.
Seja como for, nada disso aflige mais meus sentimentos. Nem golpes de estado, revoltas políticas ou estratagemas secretas. Nem palácios, luxos e poder.
O céu nos poupou e agraciou. Nós sobrevivemos e vivemos. A cada amanhecer, nosso amor renasce e se fortifica. E mesmo que isso não seja suficiente para alimentar nossas barrigas e aquecer nossos corpos fatigados, meu coração sente-se em paz.
Para o leste, o sol nasce.
Para o oeste, a garoa persiste.
Há quem diga que o sol é nulo
Mas, para mim, em meio a chuviscos,
meu sol persistentemente brilha³.
(954 palavras)
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Oi, gente, ainda não acabou! Postarei o epílogo amanhã :)
GLOSSÁRIO EM ORDEM ALFABÉTICA
💮Choson: atual Coreia (norte e sul).
💮Hanbok: roupa tradicional coreana.
💮Jeonha: pronome de tratamento para referir-se ao rei.
💮Jusang: rei.
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NOTAS
💮¹O rei Sejo trata-se do príncipe Suyang após usurpar o trono.
💮²Nessa época, os exílios aconteciam dentro do próprio território da Coreia, contudo em locais afastados da capital Hanyang.
💮³Os itálicos correspondem aos acréscimos que eu tomei a liberdade de fazer. O poema foi escrito por Liu Yuxi (772-842) e se chama "Canção dos galhos de bambu". O ideograma chinês 晴 (ensolarado) e 情 (amor, afeição) possuem o mesmo som, criando um duplo significado, de modo que a frase "para mim, meu sol brilha" sugere "para mim, meu amor brilha".
💮Ilustração de como eram os mercados ao ar livre da época:
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