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Atenção: há um glossário ao final do capítulo com o significado das palavras estrangeiras no texto.
Nota inicial: Como o poema contido no capítulo é chinês, tive que traduzi-lo do inglês. Por isso não consegui preservar as rimas e a construção de palavras do original, mas o significado é essencialmente o mesmo.
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Jusang não tira os olhos das páginas. Sentado sobre algumas almofadas e mantendo uma expressão indecifrável, ele lê o livro apoiado na mesa à sua frente. Parece absorto, inatingível. Completamente perdido na beleza dos caracteres do alfabeto hangul que seu avô, o grande Sejong, inventara.
Solenemente ignorada, suspiro ruidosamente preenchendo o silêncio absoluto do recinto com os ruídos da minha insatisfação. Quando penso em simplesmente acomodar-me num canto e esperar até que ele decida que sou merecedora sua atenção, jeonha, ainda sem fazer contato visual, acena para que eu me aproxime.
— Está familiarizada com esses escritos?
— Não, Jeonha. — Sento-me ao seu lado com cautela.
Ele ergue o rosto e pousa os olhos sobre mim. São como duas pedras de azeviche, tingidas de profundidade e luz.
— Verde, verde é o salgueiro. Plácido, um fluxo pacífico escuto e ouço do rio...— Ele faz uma pausa, hesita e prossegue.— Para o leste, o sol nasce. Para o oeste, a garoa persiste. Embora digam que o sol é nulo, para mim, meu sol brilha¹.
— Um poema. — Constato, fascinada pelos versos cujos significados me são ocultos.
— Sim. — Ele assente. — Escrito por Liu Yuxi, um poeta chinês.
— O que quer dizer? — Pergunto.
Um sorriso quase imperceptível cintila em seus lábios antes que ele volte a falar. Porém, quando o faz, não é para responder minha questão. Ignorando minha curiosidade, ele pede que eu traga alguns livros que estão guardados na estante.
Passamos o resto da noite imersos em leitura de poesia e canções. Jeonha ensina-me sobre os festivais do palácio e conta-me sobre as danças da corte. Por fim, retira o pincel do tinteiro e traça riscos num papel.
— Fique com o poema de que você gostou.— Entrega-me o escrito.
Retorno para meus aposentos com passos demorados, plenamente consciente de que algo estranho acabara de acontecer. Apesar da animosidade presente em meu relacionamento com jeonha, o tempo não se arrastou dolorosamente como eu imaginava, mas esvaiu-se como um breve suspiro.
Assim, sentada em meu futon enquanto Hye Sun escova meus cabelos antes de dormir, releio atentamente os versos.
— Qual o significado desse poema?— Pergunto à ela.
Sendo uma dama do palácio de ranking elevado, sei que Hye Sun foi letrada tanto em ideogramas chineses como coreanos e não encontrará dificuldade em me ajudar.
— Mama.— Ela leva a mão ao queixo, pensativa. — Creio que jeonha omitiu uma parte.
— E qual seria?
— Plácido, um fluxo pacífico, escuto e ouço do rio sons do meu amor, minha amada.
— A-amada? — Gaguejo.
Um estranho sentimento imediatamente percorre cada centímetro do meu corpo, como uma onda de eletricidade, intensa e cálida, acendendo um rubor que sobe por meu pescoço e se aloja em minhas bochechas.
Perdida em pensamentos, dispenso Hye Sun com um aceno, abraço o papel contra o peito e fecho os olhos, permitindo que meu sonhos me levem por lugares até então desconhecidos, mas completamente deleitáveis.
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Algo se acendeu dentro de mim desde aquele dia, apesar de poucas coisas terem efetivamente mudado nos meses seguintes.
Meu relacionamento com jeonha corre de forma tranquila, como um córrego que toma seu curso natural, fluindo delicadamente sobre as pedras. Em alguns momentos, sereno. Em outros, tortuoso. Mas sempre constante.
Jusang é uma peça complexa de desvendar. Sinto que, por mais que ele permita que eu veja suas múltiplas facetas, conheço-as só de relance, nunca tempo suficiente para me aprofundar, e isso angustia minha alma de tal forma que quase enlouqueço.
Desejo saber mais sobre o homem ao meu lado, com maior intensidade, agudeza e intimidade. Anseio desvendar seus segredos e consolar a tristeza sempre presente em seus olhos. Quero infiltrar-me em sua pele e percorrer seu corpo, impregnando-o com meu perfume, entrelaçando nossas almas.
O sentimento que arde em meu peito por vezes parece tão forte que sinto como se estivesse à beira de uma implosão iminente. Trinta minutos de passeios no jardim não bastam. Uma hora em seus aposentos reais são como migalhas.
Contudo, enquanto jeonha ainda me trata de forma cordial como a uma amiga, eu sou como um poço que não encontra seu finito. Sedenta e desesperada por um amor que ele resiste em me oferecer.
— Conte-me o que houve. — Peço, fitando seu rosto aflito.
— São só alguns problemas da corte.— Jeonha hesita. — Você se lembra do meu tio, o príncipe Suyang²?
Assinto.
— Tenho escutado rumores estranhos. Creio que não sejam verídicos, contudo o ministro Hwang Bo In e o general Kim Jong Seo estão preocupados.
— Eles foram escolhidos pelo seu pai para lhe auxiliar, jeonha. Talvez devesse escutar seus conselhos.
— Eles acham que sou imaturo para reinar sobre choson, meu próprio povo. Tentam controlar-me de todas as formas!
— Você só tem dezessete anos. É compreensível.
— Minha idade não importa. Sou o rei.
— Jeonha...
— Não vamos falar disso.— Ele muda de assunto, inquieto.— Como foi seu dia?
— Não tive que lidar com nada tão importante quanto rumores de traição. Houve apenas uma situação um pouco desconfortável.
— Hum? — Ele alcança o jotgarak e põe-se a comer das tigelas postas na mesa central do aposento.
— Por acaso sua majestade acha que não sou capaz de cumprir com meus deveres como rainha?
Jeonha me fita com seriedade, fazendo meu coração perde-se em palpitações.
— Quem te disse uma tolice dessas?— Questiona.
— Oh, bem, alguns dias atrás daebi mama cobrou-me coisas estranhas. Ela queria saber quando finalmente darei à luz a um herdeiro.
Ele engasga. Seu rosto está tão vermelho que não sei dizer se tal fato deve-se à vergonha ou à tosse intensa. Evitando olhar-me nos olhos, ele serve uma cumbuca de chá gelado e a toma num só gole.
— Não se sinta pressionada. —Ele pigarreia. — Falarei com eomamama para não importunar-lhe mais.
— Então sua majestade considera tal assunto um incomodo?! — Levanto da almofada e aliso com fúria a saia do hanbok. — Entendo.
— Espere. —Jeonha também se levanta e me segura antes que eu tenha a chance de escapar. — Olhe para mim. — Ele chama, mas ignoro.— Song Hyo Joo, por favor, olhe pra mim.
Viro-me involuntariamente ao ouvi-lo dizer meu nome. É a primeira vez que ele o faz.
— Você está chorando! — Jeonha exclama.
— Não! —Soluço. — Não estou, Yi Hong Wi! —Também pronuncio seu nome de nascença em voz alta, prescindindo de qualquer título real a fim de irritá-lo.
— Eu gosto.
— Do que?
— Do meu nome em sua boca³.
Estou corando. Oh, estou corando quando deveria estar brava. Meu corpo está se rebelando contra mim.
— S-se v-vossa majestade acha tão incomodo assim ter um herdeiro com sua própria rainha, deve ser porque pretende servir-se de concubinas. Tudo bem. Faça como quiser, Hong Wi. Espalhe sua linhagem por onde tiver vontade. Não me importo, não mesmo.
Ele começa a rir.
— O que foi?!
— Você realmente está com ciúme.
— Sim! E é culpa sua! Pare de me escrever poemas de amor quando nem mesmo se esforça para tratar-me com mais afeto do que à uma amiga!— Esbravejo, transtornada.
Em resposta, Jeonha aproxima-se de mim e, por reflexo, dou alguns passos para trás até que minhas costas encontram a parede. Seu rosto paira sobre o meu, seu hálito suave aquece minha pele e seus braços, de repente, envolvem minha cintura.
— Isso significa que você não sente mais medo de mim?— Ele sussurra contra meus lábios, tão perto que desfaleço. — Que me ama?
E, nesse momento, não consigo negar.
— Amo.
Jeonha suspira e acaricia meu cabelo. Puxa, um por um, os pinos e presilhas que o prendem, libertando-o do apertado coque. Depois percorre devagar meu maxilar com os dedos, parando ao chegar no meu queixo.
— Esperei tanto até que você me correspondesse, Hyo Joo. — Ele confessa com a voz trêmula. — Esperei desde o momento em que a vi pela primeira vez, mas, naquela época, era imaturo demais e, depois, apenas não sabia expressar o que ardia dentro do meu coração.
Fecho os olhos ao ouvir suas palavras. Cada pedaço do meu corpo ciente da proximidade. Nossos narizes roçando, suas mãos no meu rosto, nas minhas costas, na curva dos meus quadris. Seus beijos suaves fazendo trilhas no meu pescoço, dissipando minhas inseguranças, e seus lábios cálidos, finalmente, encontrando o caminho até os meus.
Se meus pés tocam o chão, não sei, mas meu coração flutua, ultrapassa as telhas de barro que cobrem o palácio, e acomoda-se ao lado das estrelas. E quando a noite passar, certamente não terá retornado. Estará ainda no alto céu, competindo com o brilho ofuscante do sol. Pois é assim que inexplicavelmente me sinto. Incandescente.
(1402 palavras)
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GLOSSÁRIO EM ORDEM ALFABÉTICA
💮 Choson: antigo nome da Coreia (norte e sul)
💮 Daebi Mama: forma como era chamada a rainha predecessora, no caso, a mãe do atual rei.
💮 Eomamama: forma respeitosa do rei referir-se à sua mãe.
💮 Hanbok: roupa tradicional coreana.
💮 Hangul: alfabeto coreano criado pelo rei Sejong. Também escrevi um conto sobre ele, chama-se "Ginseng Selvagem". Está no meu perfil, confere lá :)
💮 Jeonha: pronome de tratamento para o rei.
💮 Jotgarak: palitinhos usados para comer. Equivale aos hashis japoneses.
💮 Jusang: rei.
💮 Mama: equivale à "sua majestade" quando usado para referir-se à rainha.
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NOTAS
💮¹O poema foi escrito por Liu Yuxi (772-842) e se chama "Canção dos galhos de bambu". O ideograma chinês 晴 (ensolarado) e 情 (amor, afeição) possuem o mesmo som, criando um duplo significado, de modo que a frase "para mim, meu sol brilha" sugere "para mim, meu amor brilha". (Informações retiradas do site chinesepoemsinenglish.blogspot.com.br).
💮²O príncipe Suyang era o tio paterno do personagem principal deste conto e, como tal, era um dos sucessores ao trono em caso de ausência de herdeiros.
💮³Nessa época, não se chamava os membros da realeza pelo nome de nascença, mas sim pelos pronomes de tratamento.
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