Um Novo Começo
Assim que ouviu o despertador e abriu os olhos naquela manhã, Cosima sentiu suas entranhas contraírem de dor. Era como se um filhote de dinossauro a estivesse devorando por dentro.
Merda! Justo hoje...
Ela se virou para a mesa de cabeceira, abriu a gaveta e retirou um dos frascos que ali guardava. Suas cólicas haviam tido uma piora considerável nos últimos meses, então era um hábito ter remédios sempre à mão naquela época do mês. Colocou os óculos, e com a visão agora nítida, notou que o relógio já marcava 07:15 AM. Percebendo que provavelmente chegaria atrasada em seu primeiro dia de volta as aulas, ela suspirou desanimada. Sentido a dor ficando cada vez mais intensa, pegou dois comprimidos e os engoliu a seco - já estava tão acostumada que nem precisava mais de um gole d'água para ajudar a empurrá-los para baixo.
Cosima se levantou da cama e ficou satisfeita em perceber que acordou a tempo de não precisar trocar o lençol. Seguiu bocejando para o banheiro, e uma vez lá, prendeu os dreads de modo a evitar que molhassem durante o banho. Se despiu e regulou o chuveiro em uma temperatura alta, tendo em vista que a água quente fazia se sentir um pouco mais confortável quando estava com aquele tipo de dor.
Enquanto espalhava a espuma pelo corpo, Cosima tentou focar no que vinha ocupando seus pensamentos nos últimos dias. Naquela segunda-feira, retomaria os estudos em seu segundo ano do PhD em Desenvolvimento Evolutivo, ramo da ciência do qual era apaixonada há vários anos. Sua intenção era terminar o doutorado e seguir a carreira acadêmica como pesquisadora e, talvez quem sabe, até emendar um pós-doc depois de formada.
Depois do banho e de estar adequadamente vestida, Cosima foi para a cozinha preparar algo para quebrar o jejum. Abriu os armários, mas não encontrou nada que fosse servir muito bem como café da manhã; na geladeira além da garrafa d'água pela metade, só havia um resto de leite no fundo do vasilhame.
- Droga Felix, era a sua vez de fazer as compras...
Pelo menos ainda restava pó de café. Contudo, não se lamentou mais pela precariedade da despensa, pois mesmo que tivesse um banquete a sua disposição, dificilmente conseguiria comer alguma coisa dada a náusea crescente que afligia seu estômago causada pela cólica.
Pouco tempo depois de acionar a cafeteira, ela ouviu a porta da frente do apartamento sendo destrancada e uma voz familiar preencheu o ambiente.
- Ah, finalmente em casa! - o rapaz soltou de forma teatral - Bom dia, amor.
Mas Cosima não pôde responder; seu corpo disparou o comando e ela teve que correr imediatamente para o banheiro. Insatisfeito com a recepção que teve, Felix a seguiu até a suíte da amiga e a encontrou ajoelhada diante do sanitário.
- Caramba Cosima, você já foi mais responsável. Não devia estar de ressaca no seu primeiro dia de aula.
Considerando que ainda não havia comido nada, não demorou para que o suco gástrico misturado com bile fosse drenado de seu corpo para dentro do vaso. Cosima ergue a cabeça e limpou a boca com as costas da mão enquanto acionava a descarga.
- Não é ressaca Felix... - Ela se arrastou para o quarto necessitada de voltar para a cama e se encolher. - É dor.
- Já tomou remédio?
- Sim, faz uns 15 minutos, mas ainda não fez efeito. Bom, agora é provável que nem vai fazer mais...
- Agradeço todos os dias por ter nascido homem... - ele disse revirando os olhos. - Espera um pouco, vou buscar uma bolsa de água quente pra você.
- Valeu.
Sozinha no quarto, Cosima desejava poder penetrar seu ventre com os dedos e arrancar aquilo que lhe causava tanta dor. Se uma mera cólica menstrual era capaz de causar tanta agonia, ela estava certa de que de seu útero nunca sairia nada além de sangue; trabalho de parto é algo que ela não estava disposta a se sujeitar.
- Aqui está - Felix disse ao retornar para junto dela. Se sentou na beirada da cama e estendeu a bolsa aquecida para a amiga.
- Muito obrigada - ela retribuiu não tardando em colocar o objeto em contato com sua pele.
- Sabe, eu não tenho muita experiência ou propriedade com essa coisa de cólica menstrual, mas dá pra ver que isso não tá certo, Cosima. Todo mês é a mesma coisa. Você tem que ir num médico, moça.
- Não, eu tô bem. É assim mesmo, minha mãe sempre teve cólicas fortes também.
- Mesmo assim, um médico poderia te passar um remédio mais forte, sei lá, alguma coisa que ajude.
-Maconha me ajuda - ela suspirou com os olhos fechados. Apesar de ser mais lento do que gostaria, o calor da bolsa ajudava a relaxar a musculatura da região, conferindo algum alívio da dor. - Pega um cigarro pra mim, tá ali em cima da cômoda.
- Só se você dividir...
- Anda logo - Cosima soltou uma risada fraca e o empurrou da cama com a pouca força que lhe restava. - Só vou dar uma tragada ou duas, não quero ir chapada pra faculdade. - Felix fez o que lhe havia sido solicitado e acendeu o cigarro antes de entregá-lo a morena. - Mas e você? Como foi a noite ontem?
- Nada mal na verdade... - ele respondeu cruzando as pernas e fingindo interesse em suas unhas.
- Ah, qual é! Eu não estou em condições de ficar implorando pra você falar.
- Tá bom... - Felix falou se encostando na cabeceira da cama ao lado dela. - Talvez eu tenha conhecido um cara...
- Sei.
- E talvez eu tenha ido pra casa dele.
- Talvez? Uhum.
Se Felix tentou manter o mistério, isso não poderia durar por muito tempo - não se conhecendo tao bem quanto eles se conheciam.
- Ah Cos, ele é tão fofo! - falou relaxando a postura e a expressão em seu rosto. - O nome dele é Colin. Trabalha num necrotério, ou algo assim. Parece que é realmente um cara legal, diferente do tipo que eu estou acostumado a ficar.
- É impressão minha ou você tá considerando sair com a mesma pessoa mais de uma vez?
- Dessa vez eu sinto que tem futuro. Chamei ele pra ir na festa domingo, quem sabe vocês não se conhecem? A gente podia sair juntos um dia, aí você aproveita e acha alguém pra se esfregar também.
- Fee!
- O quê? Você já tá criando teia de aranha, queridinha, desse jeito vai morrer solteira.
- Não sei o que eu fiz pra te merecer...
- Ah, para com isso, eu sei que você me ama. Mas agora vou deixar você aí, curtinho sua dor, e vou descansar. Tive uma noite bem longa, se é que você me entende - disse ele dando uma piscadela e tirando o cigarro da mão dela. - Se precisar de alguma coisa pode me chamar.
- Tudo bem. Estou começando a melhorar, daqui a pouco vou tentar ir pra faculdade.
Felix se levantou, deixou um beijo estalado na bochecha da amiga e saiu do quarto deixando um rastro de fumaça atrás de si.
Cosima continuou deitada até que a dor atingisse uma intensidade mais suportável. Quando sentiu que seria capaz de sair de casa, eram 08:20 da manhã. Constatando que o café que havia feito já estava frio na cafeteria, decidiu que comeria alguma coisa na lanchonete universitária mais tarde, até porque o jejum não a estava incomodando. Como estava devidamente vestida para sair, apenas escovou os dentes, passou o seu característico delineador, calçou as botas e pegou sua bolsa, sem esquecer, é claro, de seu sobretudo vermelho. Assim que trancou a porta, colocou os fones de ouvido e selecionou uma das playlists em seu celular. A primeira música da lista era Blood Makes Noise, de Suzanne Vega.
Ao pisar na calçada, escorregadia por conta da neve da noite anterior, tomou cuidado para não deixar que os Hendrix a vissem, pois àquela altura a loja já estaria aberta. Não tinha nada contra o casal, muitíssimo pelo contrário, nutria uma amizade de anos com eles, apenas não queria se atrasar ainda mais com a conversa que provavelmente adviria daquele encontro.
Alison e Donnie Hendrix eram os simpáticos donos do pequeno estabelecimento de sabonetes artesanais intitulado Bubbles, que se descava em seu ramo naquela vizinhança. Apesar da aparência inofensiva e dentro de todos os "padrões", aquele era o melhor lugar da região para se comprar remédios tarja preta sem receita.
Cosima e Alison estudaram juntas no ensino médio, mas depois de se formarem, acabaram tomando rumos diferentes na vida. Foi uma surpresa para ela quando, anos depois, descobriu que o apartamento em que tinha interesse de alugar pertencia à antiga colega de colégio.
A Universidade não ficava longe dali - menos de 20 minutos de caminhada - o que a fazia ela economizar uma boa quantia de dinheiro, já que não precisava ter um carro ou fazer uso de transporte coletivo. Isso certamente era uma vantagem bem grande, considerando seu orçamento restrito.
Cosima tinha conseguido uma bolsa de estudos, mas o valor mal era suficiente para cobrir suas despesas básicas, então ela fazia bicos como DJ em eventos para conseguir alguma renda extra. Com o início de período letivo, a festa de recepção aos calouros era uma tradição, e por ser aberta ao público externo, acabava se tornando um evento relativamente grande. Ela iria fazer a abertura do show para uma banda local, Pythagoras, que seria uma apresentação breve, mas o cachê era bom.
Quando chegou ao seu destino, sem surpresa nenhuma notou que tudo estava calmo, pois todos já deviam estar em suas respectivas aulas ou simplesmente haviam decidido matar o primeiro dia. Ela se apressou para o bloco das biológicas e ficou confusa ao encontrar sua sala vazia. Pegou o celular na bolsa para conferir se estava ao lugar certo, e de fato não tinha se enganado nem com o local nem com o horário.
Decidiu então mandar uma mensagem para o seu colega de curso.
COSIMA: Scott, onde vocês estão?
Em menos de um minuto ela recebeu a resposta.
SCOTT: Está atrasada Srta. Niehaus, a aula já terminou.
Tô na lanchonete, vem aqui que eu te explico.
A distância até lá não era longa e quando a morena chegou, o rapaz estava sentado de costas para a entrada enquanto terminava de comer seu donut. Mesmo não estando em um de seus melhores dias, Cosima não poderia perder a oportunidade de assustá-lo, então twntou controlar o ruído de seu calçado contra o piso para não denunciar sua aproximação.
- Bom dia, Scott! - ela bradou batendo nos ombros dele.
- Mas que merda, Cosima! - A jovem riu do pulo que quase o fez cair da cadeira.
- Também estava com saudades.
- Não descansou o suficiente nas férias pra já começar o ano se atrasando?
- Eu não dormi demais, só acordei meio indisposta.
- Sei. Se não te conhecesse poderia até acreditar.
- É coisa de mulher, tá legal?
Ele a olhou com confusão. Cosima ainda se surpreendia em como seu amigo podia ser tão brilhante em alguns assuntos, mas tão limitado em outros. Quando finalmente compreendeu do que se tratava, Scott arregalou os olhos e suas maçãs do rosto enrubesceram à medida que ele tentou se ocupar mordendo o último pedaço da rosquinha.
- Ah... okay. Entendi, me desculpe.
- Tudo bem. Mas diz aí, o que aconteceu na aula?
- Bom, na verdade não tivemos. O Leekie só passou alguns avisos. Disse que agora nós não vamos ficar tão presos as aulas presenciais e esse tipo de coisa. O objetivo a partir desse semestre é desenvolver as teses e começar a pensar na dissertação. Ele quer que a gente entregue um relatório até o final da semana especificando qual vai ser o tema e as etapas da pesquisa.
- Final da semana? Caramba ele já começou com tudo hein?
- Pois é - ele finalizou limpando a boca com um guardanapo.
- E isso foi tudo?
- Não, ele quer ter uma reunião individual com cada um de nós, pra explicar melhor como ele quer que a gente desenvolva o relatório. Temos que passar lá na secretaria pra marcar um horário. Você pelo menos já decidiu qual vai ser o seu tema?
- Sim, tava pensando em estudar a influência epigenética em células clone.
- Cara, isso é um assunto fascinante! Mas se quer um conselho, eu iria logo falar com ele. Parece que não está em seu melhor humor hoje, e eu de você não faltaria à aula sem dar uma explicação depois.
- É, você está certo. Tudo o que eu menos preciso é que meu orientador pegue implicância comigo. - Cosima fez uma breve pausa enquanto conferia as horas no celular. - Vou comprar um café e vou lá na secretaria marcar meu horário. Você sabe se ele vai atender agora de manhã?
- Não tenho certeza, mas ele disse que ia pro laboratório continuar aquele projeto dele, o de desenvolvimento do útero artificial. Se bem o conheço, duvido que saia de lá até antes do almoço.
- Droga... - ela disse esfregando a nuca. - Mas acho vou mesmo assim. Você não vem?
- Vou mais tarde. Estou aproveitando que o dia tá tranquilo e marquei de jogar RPG com o pessoal.
- Beleza, te vejo depois então.
- Tchau.
Ela se levantou ajeitando a bolsa no ombro e foi até o balcão da cantina, que naquele horário estava sem fila. Do outro lado do balcão, uma jovem mulher loira de cabelos encaracolados, volumosos e olheiras que destoava se sua pele pálida, repunha o estoque de latas de refrigerante em uma das geladeiras.
- Hey, bom dia, Helena - a morena cumprimentou.
- Bom dia, moça do cabelo engraçado. - Cosima não pôde deixar de rir daquele comentário. - O que vai querer hoje?
- Só um café médio sem açúcar, por favor.
- Um café médio saindo.
Helena era a atendente daquele estabelecimento desde que Cosima começara a graduação. No começo, por algum motivo ela se assustava um pouco com a mulher de sotaque ucraniano forte e voz áspera, mas agora, depois de tantos anos de convivência, tinha percebido que aquilo não fazia o menor sentido, já que a atendente sempre a tratou de forma muito gentil e pacífica.
- Aqui está - disse ela entregando o pedido e recolhendo o pagamento.
- Obrigada! - O calor do copo foi recebido como um consolo pelos dedos gelados da morena. - Tchau.
Enquanto rumava para o prédio onde ficavam as salas dos professores, Cosima foi bebericando a bebida quente, ficando satisfeita em perceber que agora seu estômago estava suficientemente estável para recebê-la. Lá chegando, alguns alunos já esperavam na sua frente, mas não demorou muito até que ela fosse atendida.
- Bom dia, o que deseja? - a secretária perguntou em resposta a aproximação dela.
- Oi, eu preciso marcar um horário com o professor Aldous Leekie, por favor.
- É graduação?
- Não, doutorado.
- Qual curso?
- Desenvolvimento Evolutivo.
A secretária digitou alguma coisa no computador e instantes depois proferiu:
- Hoje ele só vai estar disponível para atendimento depois da uma da tarde.
- Tudo bem. Posso reservar o primeiro horário?
- Claro. Qual seu nome?
- Cosima Niehaus.
- Poderia soletrar, por favor?
A desvantagem de se ter nomes, digamos, incomuns, é que ninguém nunca sabe como escrevê-los sem uma base de referência ou sem que se soletre.
- C-O-S-I-M-A N-I-E-H-A-U-S.
- Prontinho, está marcado. Cosima Niehaus, da uma à uma e cinquenta da tarde, na sala do Dr. Leekie.
- Muito obrigada.
Conforme se dirigia para a saída, ela notou ser pouco mais de nove da manhã, e como achava que seria melhor falar com seu professor antes de começar escrever seu relatório, Cosima decidiu que iria voltar para casa. Apesar do alívio inegável, sua dor ainda persistia, e nesse estado, a qualidade e rendimento dos estudos nunca eram dos melhores.
Mal havia começado a descer as escadas que ligavam o saguão de entrada ao passeio público, quando notou há alguns metros mais à frente uma mulher alta e loira, que caminhava alheia os papéis que escorregavam de sua pasta enquanto olhava concentrada para a tela do celular.
- Hey moça! - Cosima chamou. - Espera aí!
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