Onde Você Está?
Se aquilo tivesse acontecido com qualquer outra pessoa que não fosse Delphine, Cosima provavelmente teria se sentido constrangida ao ser pega no flagra. Porém, quando a francesa lhe enviou uma mensagem no instante em que ela ainda relia suas conversas passadas, tudo o que conseguiu foi ficar muito contente em saber que a namorada também estava pensando nela àquela hora da madrugada.
Cosima não podia negar; preferia que Delphine tivesse lhe respondido e dado continuidade à conversa ao invés de apenas visualizar sua última mensagem para voltar a ficar offline logo depois. Mas compreendia os motivos dela, talvez simplesmente estivesse cansada demais e aquela foi a última conferida que ela deu no aplicativo antes de enfim pegar no sono.
Sono, a propósito, era algo que ela vinha falhando miseravelmente em conseguir. Desde que abriu os olhos depois de... depois de seja lá o que foi aquilo que aconteceu com ela naquela noite mais cedo, Cosima não conseguiu mais nem sequer tirar um cochilo. Havia terminado o livro que ela tinha começado a ler nos últimos dias e o lençol só faltava se desprender do colchão de tanto que ela já via revirado na cama, mas nada do sono dar o ar de sua graça.
Na verdade, parecia que quanto mais ela insistia em tentar dormir, mas ativa sua mente se tornava. E isso acrescido uma sensação de que algo estava prestes a acontecer – uma sensação intensa – eram exatamente as coisas que fizeram com que Cosima acabasse com o celular na mão lendo conversas que havia tido com Delphine meses atrás.
Seja por coincidência ou não, depois de responder à namorada e retomar a leitura, agora de mensagens trocadas em um tempo mais recente – onde o tom leve e as brincadeiras entre elas foram aos poucos perdendo espaço para os avisos de agendamentos médicos e Delphine se certificando de que Cosima estava bem enquanto trabalhava no hospital – seu conforto foi se esvaindo e ela começou a sentir o peito ficando apertado. Se tratando de um sintoma físico, ela temeu que pudesse ter se esquecido de tomar algum de seus remédios, embora isso fosse bastante improvável.
Cosima se levantou, foi até a cômoda onde costumava deixar sua medicação. Fez questão de até mesmo contar as pílulas para ter certeza, mas não havia erro; ela realmente não havia deixado de tomar nenhum comprimido. Tendo consciência de que estava sozinha em casa e de que Felix não voltaria antes do amanhecer, ela abriu o armário e tirou o medidor de pressão lá de dentro. Se o desconforto em seu coração fosse os primeiros sintomas de um infarto, ela ia querer saber a tempo de poder fazer algo sobre isso. Afinal de contas, amava sua avó, mas não estava em seus planos voltar a se juntar a ela tão cedo.
Depois que a braçadeira relaxou e o visor digital deu seu veredicto, ela ficou satisfeira em saber que ao invés de uma pressão alta capaz de lhe causar um ataque cardíaco, sua pressão para além de controlada podia ser lida até mesmo como baixa. Contudo, saber que não estava prestes a infartar sem ninguém presente para lhe socorrer não diminuiu em nada o que a essa altura podia ser definido como dor no peito e angústia crescente.
Cosima voltou o aparelho para dentro da caixa e em seguida o retornou para seu lugar de costume. Porém, logo após fechar a porta do guarda-roupas, um forte calafrio se espalhou por todo seu corpo. Ela até mesmo precisou se apoiar para evitar de cair ao sentir sua visão escurecendo e sua cabeça ficando bastante zonza. Esperou alguns segundos até se sentir um pouco mais estável, para então rápida, porém cautelosamente, conseguir voltar para a cama. Apesar de depois de ter se deitado seu mal estar físico tenha diminuído um pouco, a sensação de que algo estava muito errado não a deixou assim tão fácil.
Cerca de 15 minutos mais tarde, Cosima se surpreendeu ao ouvir uma sirene de polícia passando pela rua. Era fato que aquela estava sendo uma noite atípica e ela se deu conta de que independentemente do tivesse acontecido, devia ser algo grave, uma vez que instantes depois foi a vez de uma ambulância cortar a rua à toda velocidade.
Olhando no relógio, ela constatou que já eram quase 5 horas da manhã, e certa de que não conseguiria mais dormir, resolveu sair de dentro daquele quarto que já começava a se tornar opressor. Ela foi até a cozinha e se obrigou a pegar uma maçã da fruteira; caso seu recente mal estar tivesse sido causado por uma hipoglicemia, aquilo já devia impedir que ele voltasse a acontecer. Enquanto mastigava a fruta, ficou formulando hipóteses sobre o que havia sido aquela agitação toda em sua vizinhança que sempre foi muito segura.
A primeira coisa que veio à cabeça de Cosima, era de que poderia ter sido um acidente de trânsito, um motorista embriagado, talvez. Mas isso não fez muito sentindo quando ela pensou que se esse fosse o caso, a polícia não teria razão para chegar com a sirene ligada, ainda mais tão tarde da noite. Então cogitou que poderia ser alguma coisa um pouco mais violenta e menos acidental, quem sabe alguma denúncia de violência doméstica. Ou ainda o bêbado da história não fosse um motorista, mas alguém que entrou em uma discussão e eventualmente a coisa acabou ficando feia...
– É isso – Cosima resmungou sozinha entre as mordidas na maçã. – Só pode ter sido uma briga de bêbados.
Depois de terminar de comer e se servir de um copo de água, Cosima achou resolveu ficar na sala e assistir um pouco de TV. Passou um bom tempo trocando de canal sem achar nada interessante, até enfim se render e deixar em uma emissora de notícias, que àquela altura já transmitia seu primeiro jornal da manhã.
Por mais que tentasse se concentrar no que os repórteres estavam falando, nem se deu conta de quando parou de prestar atenção na notícia – que tratava da mais recente e bastante polêmica decisão do presidente americano que poderia dificultar e muito o processo dos canadenses em conseguir um visto de trabalho nos Estados Unidos – e começou a pensar em como Felix estava demorando para voltar para casa. Não que ele costumasse chegar muito antes daquele horário, porém o sentimento ruim e angustiante ainda não havia a deixado, e diante disso, ela não pode deixar de se preocupar. Cosima cogitou ligar para o amigo para perguntar se estava tudo bem, mas as chances de ele estar passando por qualquer problema eram tão ínfimas que ela achou melhor não incomodá-lo com suas paranoias.
Apesar da televisão ainda estar ligada, ela continuava bastante dispersa e sem estar ouvindo realmente o que os jornalistas falavam. Sua atenção só foi captada novamente quando a imagem do estúdio saiu de cena para dar lugar a um repórter de rua parado em frente a um estabelecimento bastante familiar a ela. A movimentação de policiais, as luzes da viatura que refletiam nas vitrines da loja e também a fita amarela que fazia o isolamento do perímetro, conferiam uma atmosfera bem diferenciada ao local, mas inegavelmente aquele era o mercado da rua de trás em que ela tinha o costume de fazer suas compras.
– ... falamos agora com o nosso correspondente está no local do crime – a âncora do jornal anunciou. – Bom dia, Andrew. Que novas informações você nos traz?
– Bom dia Vassy e a todos nossos telespectadores – o repórter respondeu depois de superado o delay. – Os investigadores ainda não tem muitos detalhes sobre o crime que aconteceu a pouco mais de uma hora aqui no Bloor Aneex, região central de Toronto. O dono do estabelecimento estava no interior da loja que funciona 24 horas com outros três clientes, quando dois assaltantes armados – um homem caucasiano e uma mulher negra – adentraram o local e renderam as vítimas. Segundo o que relatam as testemunhas, ninguém reagiu à ação e neste exato momento os detetives ainda estão analisando a cena do crime e tentando descobrir o que motivou os assaltantes a agirem de forma tão agressiva. Uma mulher jovem cuja identidade não foi divulgada, foi atingida por um disparo na região do abdome e encaminhada para o hospital em estado grave. O que se sabe por hora é que os criminosos fugiram do local sem levar nenhuma quantia em dinheiro ou qualquer outro bem além dos celulares das vítimas.
– A polícia já conseguiu localizar os suspeitos? – Vassy perguntou do estúdio.
– Não, por enquanto não se tem nenhuma pista de para onde eles possam ter ido. Esperamos que quando os vídeos das câmeras de segurança...
Cosima ficou tão atenta na reportagem, que só reparou que Felix havia chegado quando o rapaz já havia entrado e estava fechando a porta.
– Hey, o que você está fazendo acordada assim tão cedo? – ele disse se aproximando do sofá onde ela estava. – Caiu da cama, foi?
– Na verdade eu nem dormi. – Cosima se levantando para abraçar o amigo. – Que bom que você chegou.
– Aconteceu alguma coisa? – Felix perguntou retribuindo o abraço, porém estranhando a reação dela.
Por onde eu começo?
Embora tenha pensado em a contar tudo o que havia se passado desde a hora que ele saiu de casa, Cosima optou por ser um pouco mais direita quando se afastou do amigo.
– Assaltaram o Doc's agora a pouco – ela respondeu ajeitando os óculos no rosto.
– Ok, isso é bizarro... – ele comentou. – Mas não precisava se preocupar, eu nunca vou no Doc's essa hora...
– Eu sei, eu sei. É que eu ouvi a quando a polícia passou aqui pela rua e acabei ficando assustada. Sabe quando você tem um mal pressentimento? – ela disse franzindo o cenho. – Como se algo muito ruim tivesse acontecido?
– Bom, eu estou ótimo. São e salvo, como você pode ver. Vai ver que esse seu mal pressentimento aí é só falta de um pouco de sono – Felix falou pegando o controle de cima da mesa de centro e desligando a televisão. – Anda, não me faça ter que te colocar na cama. Não quero que a Delphine pense que não cuidei direito de você quando ela voltar.
Então Cosima seguiu os passos do amigo em direção aos quartos. Talvez o rapaz até pudesse ter uma parcela de razão, mas de alguma forma, lá no fundo as palavras dele não a convenceram nem um pouco.
A última tentativa de Cosima de conseguir dormir felizmente havia sido bem sucedida, embora seu sono tenha sido bastante agitado.
Em seu sonho, ela se via perdida em um labirinto de corredores de supermercado, com gritos de assaltantes e estrondos de tiro se espalhando pelo ambiente em intervalos regulares. Poças de sangue apareciam sem seu caminho, e por mais que corresse entre as prateleiras, nunca conseguia encontrar ou alcançar a voz agonizante que implorava por ajuda. Quando enfim encontrou uma silhueta humana encolhida em um canto no chão e encoberta pelo líquido vermelho viscoso, antes que pudesse fazer qualquer coisa o cenário mudou e dessa vez ela se viu dentro de um hospital. Ao que tudo indicava, o lugar estava completamente vazio e o ruído de seus passos ecoando pelos corredores era tudo o que Cosima conseguia ouvir. Ela procurava desesperadamente pela pessoa que havia sido ferida, mas simplesmente não conseguia encontrá-la em lugar nenhum.
Horas mais tarde, quando enfim voltou a abrir os olhos, Cosima ficou aliviada em saber que tudo não havia passado de um pesadelo. Talvez ela realmente fosse do tipo facilmente impressionável e não devesse assistir a noticiários antes de se deitar da próxima vez.
Só espero que a moça tenha ficado bem.
Ela buscou pelos óculos antes de alcançar o celular para conferir as horas e ficou surpresa ao ver que o relógio já marcava quase meio dia. Mas mesmo já sendo tarde, não poderia levantar da cama sem antes fazer uma coisa. Abriu o aplicativo de mensagens e no fundo estranhou quando viu que Delphine ainda não tivesse lhe mandado mais nada.
COSIMA: Bom dia/tarde!
Espero que tenha conseguido dormir bem.
Vendo que a mensagem havia sido enviada com sucesso, porém ainda não recebida, ela julgou que não valeria a pena ficar esperando por uma resposta imediata da loira. O sonho havia feito com que Cosima molhasse a camiseta de suor, então ela decidiu que era melhor ir tomar um banho enquanto aguardava a réplica de Delphine. E embora não tenha deixado de ficar desapontada, também estranhou o fato de a mensagem ainda não ter sido entregue mesmo depois dela ter saído do banheiro vários minutos mais tarde.
Saindo do quarto com a intenção de ir até a cozinha, Cosima se deteve um instante, notando uma movimentação atípica dentro do quarto de Felix. Como a porta estava aberta, ela não viu problemas em se encostar no batente e ficar observando o amigo.
– O que você está fazendo? – ela disse sabendo que ele ainda não havia notado sua presença.
– Porra Cosima! – ele gritou quase deixando a tela que segurava cair no chão. – Parece assombração!
– O que é isso aí? – ela perguntou já adentrando o ambiente.
– Eu só estou separando umas pinturas...
Com o rapaz de costas para si, Cosima começou a mexer nas telas dele. Reconheceu alguns de seus trabalhos e viu que alguns outros ainda estavam inacabados. Porém, escondido por de trás de várias obras, ela se surpreendeu com um dos quadros.
– Ah, droga... – Felix falou ao se dar conta do que ela havia encontrado. – Eu pretendia fazer uma surpresa pra vocês duas...
O busto de Delphine havia sido trabalhado em tinta óleo sobre um fundo preto, e embora inquestionavelmente fosse o traço de Felix, de forma geral a tela estava visualmente mais limpa e com menos cores do que geralmente era próprio do estilo dele.
– Quando foi que ela posou pra você? – Cosima perguntou curiosa sem conseguir tirar os olhos da pintura.
– Nunca – Felix respondeu. – Ela nem sabe disso ainda, eu usei uma foto como referência.
– Ficou incrível!
– Você acha que ela vai achar ruim por eu ter feito sem pedir permissão?
– Se eu conheço bem a Delphine é capaz dela ficar morrendo de vergonha, mas não acho que vai ficar brava com você não.
– E será que vai me dar permissão pra expor? – Felix continuou. – Estou pensando em organizar uma exposição e queria incluir esse também.
– Bom, isso eu já não sei – Cosima falou voltando a tela para o lugar. – Mas o que eu sim sei, é que eu só deixo se você me garantir que só vai vender ela pra mim.
Felix riu com o apontamento dela. Ele não tinha nenhuma dúvida de quem se interessaria em comprar aquela tela caso ela fosse colocada à venda e sabia que aquela cena se repetiria quando Delphine visse a pintura de Cosima terminada.
– Eu estou com fome... – ele falou terminando de organizar seus trabalhos. – Brunch; o que me diz?
Cosima apenas deu os ombros e anuiu com a cabeça como resposta, para então seguir o amigo para fora do quarto. Podia até não ser das reações mais empolgadas do mundo, mas Felix já ficou satisfeito só por ela não ter feito uma careta ou rejeitado a oferta de antemão.
Enquanto devorava sua omelete recheado com queijo e bacon, Felix reparava Cosima de frente a ele do outro lado da mesa dividindo sua atenção entre as garfadas de panqueca coberta por geleia de morango e maple syrup e olhadelas constantes para a tela do celular, mesmo que não estivesse interagindo de fato com ele.
– O que que tem de tão interessante aí que você não para de olhar pra esse celular?
– Não é nada... – ela resmungou terminando de mastigar. – É só que eu andei uma mensagem pra Delphine já faz mais de uma hora e ela nem sequer recebeu ainda.
– Uma hora? – ele riu irônico. – Realmente, isso deve ser um recorde pra vocês duas.
– Eu sei que é pouco tempo, mas sei lá... Desde ontem, quer dizer, hoje mais cedo, eu estou com essa sensação estranha...
– Sua francesa está ótima, querida, tenho certeza disso – Felix falou colocando o último pedaço da omelete na boca. – Ela deve só ter ficado sem bateria ou desligou o celular um pouco pra curtir a cidade com a mãe.
– É, você deve ter razão.
Ele sempre tem razão, ela pensou tentando se convencer. E embora sua cabeça estivesse inclinada a aceitar o que era mais lógico, seu coração não parava de insistir que algo não estava certo.
O rapaz terminou de comer primeiro e não esperou para se levantar da mesa e começar a cuidar da louça que eles haviam sujado. Cosima começou bem, mas a essa altura estava apenas mexendo os últimos pedaços de panqueca de um lado para o outro no prato. Tentando tirar o foco do restante da comida que era incapaz de continuar comendo, ela decidiu retomar um assunto que mal havia sido iniciado.
– Mas então... – Ela se levantou para ir até a lixeira descartar as sobras da panqueca. – Que história é essa de exposição?
– Bom, não tem nada certo ainda... – ele falou enquanto terminava de desengordurar uma frigideira. – A Adele tem esse um cliente, Ezra Leu. O cara é dono de uma das maiores galerias de arte de LA. Ela comentou com que eu sou artista e ele falou pra eu montar uma mostra pra ele poder avaliar.
– Quer dizer então que você vai expor os seus quadros em Los Angeles?
– Não sei, só se eu conseguir fazer ele gostar muito do meu trabalho, o que não é uma tarefa nada fácil. – A ansiedade era perceptível na voz dele. – O Ezra tem negócios em Londres, Paris e Los Angeles, já viu de tudo em termos de artes plásticas.
– Não senhor; ele não viu as suas telas ainda – Cosima disse dando apoio ao amigo. – Você eu sei que você vai conseguir impressionar ele.
– Que Apolo te ouça – Felix falou enxugando as mãos em um pano de prato. – É a chance que eu tenho de finalmente colocar o nome no mercado.
– É bom ir se preparando, meu amigo – ela recomendou com um sorriso aberto no rosto. – A fama já está prestes a bater na sua porta.
O rapaz riu, contente de ver que a amiga parecia genuinamente feliz diante da oportunidade que ele teria.
– Quem sabe assim você não começa a posar para mim sem reclamar tanto... – ele falou se voltando para ela. – Aliás... É exatamente isso o que a senhorita vai fazer agora mesmo. Não vai inventar uma desculpa dessa vez.
Embora ficar sentada sem poder se mexer não fosse exatamente seu primeiro item da lista de coisas que ela tinha em mente para aquele dia, Cosima não podia reclamar. Se essa era a oportunidade da vida daquele que ela considerava quase como um irmão, ela o ajudaria com aquilo que estivesse ao seu alcance e faria isso com muito prazer.
Felix a puxou para sala e a deixou esperando lá enquanto foi no quarto buscar o quadro de Cosima que ele havia iniciado tantos meses atrás e que ainda estava incompleto. Na volta, ajeitou o cavalete onde teria uma boa iluminação, direcionou a amiga sobre em que posição ela deveria ficar e deixou as tinhas e pincéis a disposição para então parar de frente à tela.
Porém ao oscilar o olhar entre sua modelo viva e a silhueta previamente esboçada enquanto o pincel pairava inerte no ar, Felix foi incapaz de dar continuidade a seu trabalho. O intervalo de tempo que se estendeu entre a primeira vez que Cosima havia posado para ele até o momento presente, havia a tornado uma pessoa bastante diferente – e diferença essa que ia muito além da mera ausência de seus dreads – de forma que ele não conseguiria simplesmente continuar de onde havia parado.
Tentando encontrar uma solução para aquele problema, de repente a imagem de um quadro totalmente diferente veio à mente de Felix. Em outra circunstância ele não teria tido dúvidas, mas agora ele não pode deixar de questionar sua inspiração. Se seguisse seu instinto, ele estaria pintando algo que fugia um pouco de seu estilo e não se encaixaria muito bem na identidade visual da exposição que ele estava tentando montar. Teria dificuldades de explicar a inclusão dessa nova obra para Ezra e talvez tivesse até mesmo que deixá-la de fora.
Mas enquanto racionalizar algo que deveria ser instintivo, um pensamento lhe ocorreu.
Nunca questione a musa.
Então decidido a embarcar naquela ideia independentemente dos frutos que ela poderia lhe render, Felix tirou o quadro inacabado de cima do cavalete e saiu da sala.
– Hey, aonde você vai? – Cosima perguntou, porém foi deixada sem resposta.
Um minuto ou dois mais tarde, o rapaz estava de volta trazendo uma tela em branco e esta um pouco maior do que a última. Em vez da usual conformação em retrato, dessa vez ele iria pintar em paisagem. Procurou por um rolo de fita adesiva perdido em meios a suas coisas e com o auxílio de uma régua, conseguiu dividir a tela em três retângulos menores e de mesmo tamanho.
– O que houve, Felix?
– Nada, querida – ele respondeu com um sorriso discreto nos lábios. – Eu só tive uma ideia bem melhor do que aquela, é só isso.
Apesar de ter ficado inquieta e insistido em enviar outras mensagens que também não foram recebidas por Delphine, Felix havia conseguido a distrair Cosima bem o suficiente para conseguirem passar uma tarde agradável juntos. Contudo, uma vez que a noite caiu e o rapaz saiu de casa, a preocupação mais uma vez voltou a ganhar espaço dentro de Cosima.
Ela já estava começando a cogitar que a conversa de Delphine com a mãe havia sido desastrosa o suficiente para que a loira a bloqueasse e por isso não estava recebendo as mensagens. Mas essa hipótese perdeu um pouco de sentido quando Cosima tentou ligar para ela e a ligação nem chamou, retornando imediatamente que o número estava temporariamente fora de área ou desligado.
Mesmo sabendo que se as tentativas anteriores de entrar em contato com a namorada não haviam funcionado essas não passariam da mais pura de perda de tempo, ela tentou entrar em contato através das outras redes sociais e até e-mail enviou. Mas como já era de se esperar, não recebeu nenhuma resposta.
Cosima estava começando a ficar desesperada com tudo aquilo, mas não queria acreditar que algo sério pudesse ter acontecido. É só um mal entendido, ela pensava repetitivamente tentando se convencer.
Mesmo sabendo que Delphine havia prometido chegar de madrugada e vir direto para a casa dela, Cosima não viveria até essa hora chegar se continuasse naquela agonia. Não gostava de tomar mais pílulas além daquelas todas que eram essenciais para o seu tratamento, mas naquela noite resolveu se render ao remédio que o Dr. Nealon lhe havia prescrito para ajudar a dormir com mais facilidade. Eles nunca a deixaram excessivamente dopada e ela tinha certeza de que se Delphine batesse na porta ela acordaria. Ainda assim, por precaução, achou melhor se deitar no sofá da sala.
Quando Cosima abriu os olhos horas mais tarde, o céu ainda estava escuro. Ela procurou pelos óculos que deveriam estar perdidos em algum lugar no chão ao seu lado e se surpreendeu ao ver o casaco de Felix pendurado no cabideiro junto à porta. O sentimento de culpa foi instantâneo; se não acordou com a chegada do amigo isso significava que também não tinha ouvido quando Delphine veio.
Rapidamente ela buscou pelo celular, já pensando em como faria para se justificar com a namorada por não estar acordada por ela, porém tudo o que encontrou conseguiu foi se sentir novamente desapontada ao desbloquear a tela do telefone e não encontrar nenhuma notificação proveniente da loira. Tentou ligar novamente, mas o resultado não foi nada diferente daquele da noite anterior.
Ela ficou chateada, ela disse a si mesma como se de alguma forma conseguisse influenciar a realidade com seus pensamentos. Ela só ficou magoada porque eu não atendi a porta quando ela chamou.
Constatando que pouco se passava de 07:30 AM, Cosima se levantou do sofá e foi apressada para o banheiro. Se não demorasse muito, talvez conseguisse alcançar Delphine antes dela começar seu turno.
Ela foi rápida em sua higiene matinal e mais rápida ainda para se vestir. Ajeitando o gorro na cabeça e já no corredor rumo à porta de saída, ela foi obrigada a voltar para o quarto e pegar a máscara que havia esquecido. Por mais ansiosa e aflita que estivesse, não deveria negligenciar sua saúde; cuidar bem de si própria de certa também forma era uma forma de ser grata por todo o tempo e dedicação que Delphine havia despendido com ela.
Uma vez na rua, Cosima constatou que o pedaço de pano preso a seu rosto além de lhe proteger de possíveis patógenos que pudessem ser disseminados pelo ar, também ajudava um pouco com o frio e o vento que eram cortantes. Conforme se aproximava do hospital, ela já foi se preparando para a bronca que a esperava. Delphine certamente ficaria uma fera quando visse ela andando por aí com a imunidade tão baixa sem ser para suas consultas ou exames médicos. Mas nada do que a loira pudesse dizer iria diminuir a felicidade que ela iria sentir a vê-la novamente.
Cosima teria conseguido chegar na ala oncológica do hospital antes do expediente de Delphine se não tivesse precisado parar uma ou duas vezes no caminho para recuperar o fôlego; era inegável que seu vigor estava longe se ser o que era antes de descobrir a doença. Mas isso não diminuiu em nada sua determinação; se a namorada tivesse atendendo alguma paciente naquele horário ela esperaria sem o menor dos problemas.
– Bom dia, Grace – ela disse assim que se aproximou do balcão da recepção.
– Bom dia, Cosima – a ruiva retribuiu. – Consulta com o Dr. Duncan?
– Não, hoje eu estou aqui por um motivo um pouco diferente. A Dra. Cormier está em atendimento?
– Não, na verdade ela nem chegou ainda.
– A Delph... Digo, a Dra. Cormier não está aqui?
– Não, ela está um pouquinho atrasada... – Grace conferiu as horas. – Você tem horário agendado com ela?
– Não, eu não tenho – Cosima respondeu engolindo em seco. – Bom, eu acho que vou esperar por ela então. Obrigada.
Quando estava seguindo o tratamento imunoterápico, Cosima sempre aguardava nas cadeiras dispostas de frente à porta do consultório de Delphine, porém tendo em vista que ela ainda não tinha chegado isso não faria muito sentido, então resolveu esperar nos assentos da recepção mesmo.
Conforme o tempo foi passando, os corredores foram ficando mais e mais movimentados. Cerca de 40 minutos já tinha se passado quando uma mulher loira apareceu por detrás das portas do elevador, dando não mais que um segundo de esperança à Cosima antes de sentir frustrada mais uma vem no momento seguinte. Em outras circunstâncias ela nunca teria se deixado confundir, tamanha era a diferença de altura e na maneira de se vestir entre ela e Delphine. A moça adentrou o local com um sorriso simpático no rosto, cumprimentando tanto as recepcionistas quantos os pacientes que aguardavam atendimento para então destrancar a porta do único consultório que desembocava na sala de espera.
Cosima pensou saber de quem se tratava; Shay Davydov, se bem se lembrava. Recordava de ver pequenos cartazes divulgando suas atividades dentro do hospital e também de ter ouvido falar muito bem de seu trabalho através dos muitos outros pacientes que já haviam cruzado seu caminho ao longo de todos aqueles meses. Apesar de se sentir curiosa, Cosima nunca havia procurado Shay antes, no começo por ter convicção de que não precisava de nada daquilo que ela podia oferecer, e depois, simplesmente por não ter disposição para isso.
Depois de mais algumas tentativas mal sucedidas de tentar ligar para a namorada que àquela altura já estava atrasada a mais de 1 hora, ela mais uma vez se debruçou sobre o balcão de atendimento.
– Esse atraso da Dra. Cormier é realmente muito atípico – Gracie falou mantendo seu tom um pouco mais baixo que o usual. – Ela não avisou que não viria, a Srta. Obinger deveria estar em consulta agora mesmo.
Cosima virou o rosto e reconheceu a mulher de cabelos vermelhos e curtos sentada a metros de distância mais à frente no corredor.
– Se você quiser... – Grace continuou. – ... eu aviso a ela que você esteve aqui quando ela chegar.
Se ela chegar.
Se antes Cosima achou que a francesa poderia estar apenas zangada com ela, agora tinha certeza de que algo muito errado estava acontecendo. Delphine era provavelmente a pessoa mais responsável que ela conhecia, nunca faltaria ao trabalho daquela por um motivo fútil ou sem dar satisfação daquela forma.
Estava prestes a verbalizar uma resposta para a oferta de Grace, quando a já conhecida sensação de fraqueza e vista escurecida lhe acometeu, fazendo com que ela sentisse a necessidade de se apoiar no balcão.
Da porta de seu consultório, enquanto se despedia do senhor que havia acabado de atender, Shay viu Cosima passando mal a poucos metros de distância e conseguiu chegar a tempo de impedir que ela caísse no chão.
– Grace, me ajuda aqui por favor – ela disse e rapidamente a ruiva veio em seu auxílio. – Vamos levar ela lá pra dentro.
Cosima não chegou a ficar totalmente inconsciente, mas tampouco conseguiu esboçar qualquer reação até ser deitada sobre a maca que fica encostada em uma das paredes de pequena sala.
– Eu vou chamar uma enfermeira – Grace falou já fazendo menção de sair do consultório.
– Não precisa... – Cosima balbuciou. – Eu já tô bem...
– Tem certeza? – Shay perguntou.
– Sim. Foi só uma queda de pressão, eu já estou acostumada com isso.
Ela apoiou os cotovelos na maca tentando se levantar, contudo uma mão surgiu para impedi-la de continuar.
– Não senhora, é melhor ficar deitada mais um pouco – a loira disse firme, porém em um tom doce. – Tudo bem, Grace. Eu tomo conta a partir daqui, obrigada.
Com o olhar, Cosima acompanhou Shay caminhar até o móvel que ficava em um dos cantos da sala, derramar um pouco da água de sua garrafa térmica dentro de um copo descartável e trazer até ela.
– Obrigada – Cosima se levantou e retirou a máscara de pano do rosto para que conseguisse beber.
– Você está acompanhada? – Shay questionou. – Eu posso ir chamar o seu acompanhante...
– Não, eu estou sozinha.
– Pois não devia – Shay falou como se estivesse advertindo uma criança travessa. – Pra quem já está acostumada a ter quedas de pressão não é nada seguro ficar andando sozinha por aí.
Cosima soltou um risinho. Conhecia outra pessoa de cabelos dourados que teria lhe dito exatamente a mesma coisa.
– Bom, eu já estou melhor então acho que já vou indo – ela disse descendo da maca. – Não quero te atrapalhar, você deve estar com a agenda cheia.
– Bobagem, eu não sou médica de verdade, meus pacientes não precisam marcar horário, simplesmente chegam. E é você quem está aqui agora, então...
– Não tem ninguém esperando lá fora?
– Não, só faz uma semana que eu comecei a atender todos os dias de manhã, o movimento está fraco, as pessoas ainda precisam de costumar – Shay ocupou seu lugar à mesa e indicou a Cosima a cadeira a sua frente. – Posso perguntar seu nome?
– Claro. Me chamo Cosima. Você é Shay, certo?
– Isso mesmo – a moça respondeu sorrindo. – E você comeu alguma coisa antes de sair de casa, Cosima?
– Na verdade eu até me esqueci disso... – ela respondeu só então se dando conta do vazio em seu estômago.
Sorrindo de lado como se aquela cena não fosse novidade para ela, a loira abriu uma das gavetas da mesa, tirou uma barra de cerais lá de dentro e alcançou para Cosima.
– Você trabalha com terapias holísticas, certo? – ela falou enquanto tentava rasgar a embalagem.
– Sim. Meu foco é nutrição, trabalho corporal e aconselhamento espiritual. Você precisa ter um bom equilíbrio dessas coisas para conseguir viver bem, e se não tiver, eu tente te ajudar a equilibrar.
– Hum. E como você sabe quando as pessoas estão desequilibradas?
– Bom... Eu consigo ver dentro da sua alma.
– É mesmo? – Cosima falou em meio a uma risada contida.
– Deixa eu ver, você não acredita em nada disso?
– Não, não é isso o que eu quis dizer. E eu devo perguntar o que você vê dentro da minha alma?
– Desse jeito, agora? – Shay disse aceitando o desafio. – Nada. Mas se você voltar a se deitar ali naquela maca e me deixar examinar você, aí sim eu vou poder te responder.
Enquanto terminava de comer Cosima se viu em um impasse. Ela tinha pressa em descobrir o que havia acontecido com Delphine e devia focar sua atenção nisso. No entanto, os eventos dos últimos dias ainda não haviam sido completamente assimilados por ela. Seria bom conseguir algumas respostas sobre isso e talvez Shay pudesse ajudá-la
– Ok – ela acabou cedendo depois de alguns momentos de reflexão.
Deixando seus pertences na cadeira junto à mesa, Cosima retirou seus sapatos antes de se acomodar em cima da maca.
– Eu preciso que você feche seus olhos e mantenha sua respiração profunda e constante, tudo bem? – Shay pediu parando ao lado dela. – Não lute contra seus pensamentos. Deixe-os fluir livremente, isso faz parte do processo.
Cosima anuiu levemente e seguindo as orientações que havia recebido. A sala ficou silenciosa, apenas o movimento do ar entrando e saindo de seus pulmões podendo ser ouvido. Alguns instantes depois ela começou a sentir as mãos da loira passando lentamente por cima de seu corpo. Contudo, apesar de conseguir perceber o calor da presença dela, o toque físico não existia de fato.
– Seu organismo me parece impressionantemente bem nutrido – Shay disse quase em um sussurro.
Cosima não pode conter seus lábios de se curvarem ligeiramente.
Isso é mérito da Delphine.
– Seu corpo, no entanto... – a loira continuou. – Seus músculos estão muito tensos. Talvez seja reflexo de toda angústia e preocupação que pairam em sua mente.
Embora tenha voltado a se calar, Shay continuou seu trabalho com as mãos, agora parando especificamente sobre o abdome de Cosima.
– Hey – ela sentiu o impulso de dizer. – Você sabe alguma coisa sobre experiências de quase morte?
– Por quê? Você teve uma?
– Eu tive alguma coisa...
O silêncio voltou a pairar sobre elas, fazendo Cosima pensar que talvez sua pergunta tivesse vindo em um momento inoportuno. Porém alguns segundos mais tarde a loira continuou.
– Bom, eu tenho uma teoria – Shay começou. – Antes de deixarmos essa vida, nós vemos o que amamos. Digo, no fundo da alma, o que você não pode viver sem. E se for forte o suficiente... Às vezes achamos nosso caminho de volta.
Mesmo contrariando o que havia lhe sido pedido, Cosima não conseguiu se manter de olhos fechados.
– Pessoas comuns podem ter... intuição? – ela perguntou.
– Pessoas comuns... – Shay disse parando de se movimentar e olhando diretamente nos olhos dela. – Você quer dizer pessoas como você?
– Sim.
– Acho que depende do que estamos chamando de intuição – ela explica. – Muitas vezes as pessoas só estão dando voz a seu próprio ego ou sendo influenciadas pelo mundo exterior e querem chamar isso de intuição. Mas sim, existem situações em que nós conseguimos captar energias mais sutis que estão querendo nós transmitir alguma mensagem.
– E como a gente faz pra diferenciar se essa mensagem é real ou só uma invenção da nossa cabeça?
– Não existe uma fórmula mágica nesses casos. Você vai ter que confiar no seu coração.
Depois de sair do hospital, Cosima caminhou pela rua determinada a não descansar enquanto não encontrasse Delphine. Para aquilo que a princípio pensou ser apenas uma distração e perda de tempo, a consulta improvisada com Shay havia sido muito proveitosa, conferido o incentivo que ela precisava para dar voz aos seus instintos. Após deixar o consultório sob um caloroso convite para que ela voltasse para dar início a um tratamento com Reiki, Cosima parou na recepção da ala oncológica apenas para ouvir de Grace mais uma vez que a Dra. Cormier ainda não havia chegado.
Agora, andando em direção ao prédio da namorada, ela se apegava a sua última esperança de que a loira devia estar em casa, com alguma enfermidade repentina que a impediu de ir trabalhar. Isso não explicava o porquê ela não atendia a seus telefonemas, ignorava à suas mensagens ou ainda o porquê não havia avisado o hospital sobre sua incapacidade de cumprir com seus compromissos, mas era única ideia em que Cosima conseguia se agarrar e que a impedia de se entregar completamente ao desespero.
Tendo as chaves da casa de Delphine e as suas próprias juntas no mesmo molho, ela não encontrou dificuldades em acessar o prédio da francesa. Quando se deu por si, já estava empurrando a chave para dentro da fechadura da porta da frente do apartamento dela.
– Delphine? – ela chamou tão logo deu o primeiro passo para dentro no hall de entrada.
Sua voz ecoou pelas paredes do apartamento, se extinguindo sem lhe trazer nenhuma resposta.
O lugar estava em sua mais perfeita ordem; sem nem sequer uma almofada torta no sofá ou ainda um copo esquecido sobre a mesa de centro. Nenhum único vestígio de presença humana. Cosima adentrou a cozinha se deparando com praticamente o mesmo cenário. Sem o aroma de um café da manhã recém preparado e a pia perfeitamente vazia e seca.
Caminhando em direção ao quarto, ela já não conseguia impedir que sua garganta se fechasse em um nó que seus olhos começassem a queimar, abrindo espaço para as lágrimas que já se formavam.
Dessa vez, no entanto, não foi com uma organização intocada o que ela encontrou ao adentrar o dormitório. Na cama, o lado direito do colchão – aquele em que Delphine costumava dormir – estava com o cobertor jogado de lado e o lençol remexido, indicando que alguém havia se deitado ali. Olhando mais atentamente, ela também pode notar que o guarda-roupas havia sido fechado apressadamente, pois a borda da manga de uma blusa de seda pendia para o lado de fora. Além disso, um outro objeto se destacava em meio a mobília característica daquele cômodo.
Deixada em um canto do quarto, a pequena mala se impunha como um fantasma frente a Cosima. Sentindo um temor crescente dentro de si, ela se aproximou com cautela da bagagem e com a visão embaçada pelas lágrimas, ela se ajoelhou no chão e abriu o zíper. A julgar pela pequena quantidade de roupas – incluindo uma troca já usada dentro de um saco plástico – era inegável que aquela era a mala que Delphine havia levado para Montreal e isso era a prova de que ela realmente tinha voltado para Toronto.
Mas se esse era o caso... Onde ela estava?
Antes que o desespero a tomasse por completo, Cosima sentiu o celular vibrando dentro do bolso do casaco e atendeu a ligação sem se dar o trabalho de verificar que era.
– Cosima! – Felix visivelmente preocupada do outro lado da linha. – Onde é que você se meteu??
– Eu tô no apartamento da Delphine – ela conseguiu dizer entre soluços. – Ela não tá aqui Felix...
– Hey, fica calma, tá legal? – ele disse assustado com a situação em que a amiga se encontrava. – Ela deve estar no hospital e...
– Não está. Eu acabei de voltar de lá e ela não foi trabalhar. Não consigo encontrar ela em lugar nenhum Felix. Se alguma coisa de ruim aconteceu com a Delphine, eu não sei o que eu...
– Nós vamos encontrar a Delphine, ok? – ele falou antes que ela pudesse terminar a frase. – Não saia daí, eu já estou indo te buscar e nós vamos dar um jeito de achar aquela francesa juntos.
– Não precisa vir – Cosima falou já se levantando do chão. – Eu não quero ficar aqui nem mais um minuto sem ela.
– Tem certeza? – ele perguntou receoso de que a amiga não tivesse se andar sozinha na rua naquele estado.
– Sim. Eu já estou indo.
E então com o coração cheio de angústia, Cosima saiu do apartamento instantes depois de desligar o celular.
Felix não podia negar, agora estava legitimamente preocupado. Durante o domingo todo vendo a aflição de Cosima em não conseguir falar com Delphine, pensou que era no mínimo uma reação exagerada e talvez até tivesse uma pitada de remorso por parte da amiga por ter se mantido distante da namorada enquanto ela ainda estava a seu alcance e que a francesa devia estar apenas aproveitando o dia com a mãe.
Mas agora depois de falar com ela, havia se convencido de que a loira poderia realmente estar em apuros. 'Responsável', com toda certeza seria um dos primeiros adjetivos que viria à cabeça de qualquer um que precisasse descrever Delphine, e se a loira realmente tivesse faltado ao trabalho – trabalho esse que ela tinha quase como uma missão de vida – isso não poderia ser um bom sinal, ainda mais dado o contexto em que ela estava inserida.
Consolar Cosima nunca havia sido um problema para Felix, de alguma forma ele sempre encontrava as palavras certas para confortar a amiga. Mas dessa vez não tinha certeza se conseguiria lidar com aquela situação sozinho, e nesse caso, só existia uma pessoa a quem ele sempre poderia recorrer.
– S... – ele soltou tão logo a ligação foi atendida. – ... eu preciso que você venha aqui pra casa agora.
– Hey, vai com calma. Agora, eu não posso, estou fazendo o almoço da Kira – Siobhan respondeu. – O que foi dessa vez?
– É a Cosima... Ela esta desesperada porque não consegue falar com a Delphine, e agora até eu já estou ficando preocupado.
– Não consegue falar com a Delphine?
– Sim. Ela sumiu do mapa desde sábado à noite, não atende o telefone e não está em lugar nenhum que supostamente deveria.
Siobhan ficou em silêncio por um instante e ele pode ouvir um tilintar metálico ressoando ao fundo.
– Ok. Eu já estou indo.
Cosima não sabia nem como havia conseguido chegar em casa. Depois de deixar as botas molhadas de neve ao lado da porta, ela adentrou o apartamento sendo quase que imediatamente presa em um abraço apertado vindo de Felix. Seus pensamentos estavam agitados, formulando milhares de teorias sobre o que poderia ter acontecido, de forma que mal conseguia processar a enxurrada de perguntas que o amigo lhe fazia.
Sem que suas pernas conseguissem oferecer qualquer resistência, ela se deixou ser levada até a cozinha, onde Felix praticamente a obrigou a comer uma fatia de pão com manteiga de amendoim. Comer não era nada fácil, visto que sua garganta ainda estava apertada e seu estômago embrulhado, mas pelo menos a essa altura suas lágrimas haviam secado, embora não soubesse dizer por quanto tempo.
Cosima só conseguiu se concentrar um pouco mais no momento presente, depois de ouvir alguém batendo na porta e Felix saindo de seu lado para atendê-la. Apegada na ilusão de que poderia ser Delphine, ela seguiu o rapaz até a sala, apenas para ver sua expectativa sendo frustrada ao ver Siobhan com Kira no colo adentrando o ambiente. No entanto, embora não fosse S quem ela estava esperando, não pode deixar de se surpreender com a chegada da mãe do amigo.
– A comida está dentro da bolsa – disse Siobhan. – Você pode dar o almoço dela pra mim?
– Claro. Vem cá Kira. – O rapaz se aproximou para pegar a menina. – O tio Felix vai dar o papa da macaquinha.
À medida que ele se retirou com a criança para a cozinha, Siobhan olhou na direção de Cosima e a passos calmos foi até ela.
– Oi amor, como você está? – S disse a abraçando. – O Felix me contou que você está preocupada com a Delphine.
– Sim – Cosima respondeu amparada pelos braços daquela que considerava como uma segunda mãe.
– Quer falar sobre isso?
Sendo capaz apenas de anuir com a cabeça, ela foi guiada por Siobhan até seu quarto.
– A Delphine já tinha nos avisado de que iria passar o final de semana em Montreal com a mãe – S falou se sentando ao lado dela na cama. – O que foi que deu de errado?
– Eu não sei. – Cosima deu os ombros e acenou com a cabeça. – Na madrugada de sábado pra domingo foi a última vez que eu recebi uma mensagem dela. Ontem tentei entrar em contato o dia inteiro, mas ou o celular dela está fora de área, ou está desligado, ainda que nenhuma dessas duas opções me pareça fazer muito sentido.
– Você não tentou falar com a mãe dela?
– Não, eu não tenho o contato dela. A Manon não sabe sobre mim – ela falou suspirando. – Quer dizer, eu não sei se a Delphine já contou pra ela sobre nós. De qualquer forma, não acho que ela seria de muita ajuda; a Del já está em Toronto. Eu sei disso porque encontrei a mala da viagem no apartamento dela.
Siobhan sempre fora um porto seguro para todos aqueles que ela decidia acolher sob suas asas. Então Cosima olhou fundo naquele par de olhos azuis cintilantes em busca de todo o conforto que eles pudessem oferecer.
– Eu preciso que você me diga que a Delphine está viva – ela pediu com a voz falhando.
– Eu não posso fazer isso, amor.
– Eu sinto que algo muito ruim aconteceu com ela.
– O que não quer dizer que realmente aconteceu – Siobhan pontuou. – Nós duas sabemos que ela mexeu com gente muito grande e poderosa, certo? Eu não posso mentir pra você dizendo que ela não está correndo perigo.
Choque de realidade. Seu coração dolorido implorava por qualquer fala mentirosa que pudesse aliviar seu desespero de alguma forma. Mas a Sra. S certamente não era a pessoa certa para dar isso a ela. Consciente de que não podia ignorar as possibilidades ruins, Cosima se entregou ao pranto incontrolável sendo prontamente amparada por Siobhan.
– Mas nós não precisamos esperar para descobrir o que aconteceu paradas – a mais velha falou depois de alguns minutos. – Por que você não liga pra MK e pede ajuda pra descobrir o paradeiro da Delphine?
– MK? – Cosima balbuciou se reerguendo e tirando os óculos para que conseguisse enxugar os olhos. – Eu não tinha pensado nisso...
– Se ela conseguiu descobrir os podres do Dyad, acho que encontrar a Delphine não vai ser tão difícil.
– Sim – Cosima falou enxugando os olhos por detrás da lentes dos óculos. – É, você tem razão.
Apesar da dificuldade de MK em expressar seus sentimentos, antes de desligarem a vídeo chamada ficou bastante evidente o quão preocupada ela também havia ficado com o aparente sumiço de Delphine. Era inegável que Veera sempre foi a mais preocupada com segurança dentre todas elas, especialmente depois que passou a desconfiar que o instituto já sabia da investigação que estava em andamento. E Cosima que antes chegou a achar as medidas de prevenção adotadas por ela exageradas e beirando a paranoia, agora lhe pareciam até mesmo relaxadas demais.
MK garantiu que conseguiria encontrar Delphine rastreando o número de telefone dela; ou pelo menos conseguir a última localização dele antes que parasse de funcionar. Como não estipulou nenhum prazo para conseguir essa informação, Cosima se deixou ser levada por Siobhan de volta a sala.
Ainda que nada fosse capaz de distraí-la completamente naquele dia, foi impossível para Cosima não se pegar sorrindo ao assistir a pequena Kira gargalhando enquanto brincava com o tio sentados no tapete. Felix e a mãe também estavam tensos, embora conseguissem disfarçar isso um pouco melhor do que ela.
– Ah, droga, eu esqueci completamente – ele disse algum tempo depois, olhando para tela do celular após receber uma série de mensagens.
– O que foi? – Sra. S perguntou.
– Eu tenho um horário marcado com a Krystal pra daqui tipo, 20 minutos.
– Quem é Krystal? – a mais velha perguntou franzindo o cenho.
– É a minha manicure.
– Francamente Felix... – Siobhan repreendeu. – Acho que você pode cuidar das suas unhas em um outro dia...
– Não, tá tudo bem S – Cosima interveio. – É capaz da MK ainda demorar pra retornar alguma resposta, pode ir tranquilo Fe.
– Tem certeza?
– Uhum.
– Ok. Eu prometo que vai ser rápido.
Ao sair de casa a passos apressados, Felix não pode deixar de se sentir um pouco culpado. Talvez realmente devesse ter desmarcado seu compromisso e ficado em casa. Mas conseguir um horário com Krystal era uma missão quase impossível naquela época do ano e ele não estava mais suportando as cutículas que cresciam por sobre suas unhas. Além disso, Cosima estava em boas mãos, se Siobhan não conseguisse tranquilizá-la por si só, dificilmente a presença dele faria alguma diferença.
Ao adentrar o salão que já estava bastante cheio, Felix recebeu um olhar repreensivo da loira por trás do balcão.
– Felix! Você está atrasado!
– Eu sei, me desculpe querida. É que eu estava cuidando da minha sobrinha – ele tentou se explicar manipulando um pouco a verdade só um pouquinho.
– Eu não me importo com esses pequenos atrasos, você sabe disso – ela garantiu pegando seus instrumentos para começar o trabalho. – É que esses tempos andam loucos! Eu tive que brigar com aquela senhora sentada logo ali pra ela não roubar o seu horário.
– E esse é só mais um dos motivos pelos quais você é a melhor manicure que eu já tive na vida – ele disse ocupando a baqueta de frente a Krystal no balcão e cruzando as pernas. – Mas, bom, já que você anda assim tão ocupada... Acho que não vai poder aceitar meu convite...
– E que convite é esse? – ela perguntou curiosa.
– Então, eu conheci um cara muito, muito importante de LA. Tipo, ele é dono de uma rede de galerias de arte.
– Ele quer que eu vá fazer as unhas dele em Los Angeles? Por que se for eu já adianto que vou ter que cobrar bem caro...
– Não, não é nada disso, deixa eu terminar. Eu tenho que apresentar um portifólio pra ele, e se ele gostar, vai expor as minhas telas. Eu tenho essa mostra em mente, a face das mulheres fortes e de certa forma inspiradoras que eu tenho ao meu redor, e estava pensando se você não gostaria de posar para mim e estar entre elas.
– Espera – Krystal falou parando o que estava fazendo para olhá-lo no rosto. – Você quer pintar o meu rosto em um quadro?
– Sim. Se você me permitir, é claro.
– E você me acha uma mulher forte e inspiradora? – Krystal falou com os olhos lacrimejantes.
– Claro, por que não?
– Essa é coisa mais bonita que alguém já me disse desde, tipo... – a loira falou balançando as mãos logo abaixo da linha do queixo – Desde sempre.
– Então você vai arranjar mais um tempinho pra mim? – ele provocou dando um sorriso de lado.
– Sim! Sim, eu sempre achei que fosse acabar parando em LA de algum jeito – ela disse retomando o trabalho. – Além do mais, acho que vai ser bom eu me distrair um pouco. Eu nem tinha acabado de superar a morte do Hector e me acontece mais esse trauma... – Krystal fez uma breve pausa para então continuar. – E por falar em trauma, como é que está a sua amiga?
– Bom, ela já esteve bem pior antes – Felix respondeu. – Aparentemente o câncer já desapareceu e ela vai fazer a última sessão de quimio nessa semana mesmo.
– Espera, ela também tem câncer? Eu pensei que ela cuidava de pessoas que tinham câncer!
– A Cosima tem câncer, quem é oncologista é a... – ele fez uma pausa se sentindo estranhamente nervoso. – Krystal, de que amiga minha você tá falando?
– Como é mesmo o nome dela? Aquela médica francesa que veio aqui uns meses atrás?
– Delphine.
– Essa mesma. Então, desde aquele dia eu não consegui parar de pensar se ela ficou bem...
– Por que? – ele perguntou sentindo a boca secar. – O que te faz pensar que a Delphine pode não estar bem?
– Ah meu Deus, você não sabe... – ela falou olhando para ele novamente. – Eu estava lá no dia que ela levou o tiro. Eu vi tudo.
Felix não devia nem ter acabado de descer as escadas quando uma ligação de Veera reverberou no celular de Cosima.
– Oi MK, pode falar – ela prontamente atendeu já colocando a chamada no viva-voz para que Siobhan também pudesse ouvir.
– Eu consegui rastrear o telefone – Veera informou sem fazer cerimônia. – Ela deixou Montreal tarde da noite no sábado, não no domingo como estava planejado. Pela rota do GPS e pelo tempo da viagem, posso dizer que ela veio de trem. O sinal não é muito preciso, eu só consigo ter uma ideia da região... Mas me parece que depois de desembarcar a Delphine foi direto pra casa dela. No entanto, não demorou muito pra ela sair de novo, só que depois eu perco o sinal completamente nas redondezas de onde vocês moram. O celular deve ter sido desligado ou formatado.
– Você está me dizendo que a Delphine já estava em Toronto no domingo? – Cosima perguntou mal sendo capaz de processar o que havia acabado de escutar. – No domingo de manhã?
– Sim.
Cosima olhou para Siobhan como se implorasse por ajuda, e esta por sua vez se aproximou dela trazendo a pequena Kira no colo.
– Oi MK, aqui é a Sra. Sadler falando – Siobhan disse se sentando ao lado de Cosima. – Isso é tudo o que você conseguiu descobrir?
– Sim – Veera confirmou. – Mas eu vou continuar procurando, se encontrar mais alguma coisa aviso vocês.
– Faça isso, obrigada.
Depois da ligação ser finalizada, Cosima ainda ficou olhando para a tela apagada por um instante.
– S... – ela murmurou com a voz custando a sair.
– Acho que nós não temos mais o que esperar. – A mais velha se adiantou, já recolhendo alguns poucos pertences de Kira que havia ficado espalhados pela sala. – Pegue seus documentos querida, nós estamos indo pra delegacia.
– Delegacia? – Cosima falou se levantando do sofá. – Mas se os Neoevolucionistas estão infiltrados na polícia... Se o Dyad realmente estiver envolvido no sumiço da Delphine...
– Não se preocupe com isso, nós vamos falar com diretamente com aquele meu amigo que é detetive. Ele vai conseguir nos ajudar sem levantar suspeitas.
Poucos minutos depois, as três já estavam descendo as escadas em direção à rua. Mesmo com a cabeça a mil, Cosima sabia que uma delegacia de polícia não era o lugar ideal para um bebê, portanto sugeriu a Siobhan que pedisse a Alison tomar conta da menina enquanto elas estavam fora ou pelo menos até que Felix chegasse.
– É claro que eu fico com ela, vai ser um prazer – Alison falou contente por cuidar de Kira, mas também preocupada pelo pouco que ouviu a respeito do sumiço de Delphine.
Cosima e Siobhan entraram apressadas no carro de S que estava prestes a dar partida quando ouviu seu celular tocar. Ela fortemente inclinada a rejeitar a chamada, mas quando viu o nome do filho brilhando na tela achou que fosse melhor atender.
– Oi?... – Siobhan falou enquanto colocava o carro em ponto morto. – Como é?... Calma Felix fala mais devagar...
Cosima se mexeu inquieta no assento, não gostando nem um pouco da forma com que a expressão no rosto de Siobhan foi mudando conforme ela ouvia sabe-se lá o que o rapaz estava dizendo.
– Meu Deus... – ela soltou depois de alguns instantes em silêncio.
– O que foi? – Cosima perguntou com os nervos à flor da pele. – O que foi que ele disse S?
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