O Que Precisa Ser Feito
Apesar de Cosima ainda precisar tomar um analgésico para ajudar com as dores no corpo, as duas passaram o domingo de uma forma bastante tranquila. Bom, na verdade ela ficaram quase literalmente o dia todo na cama; dormindo. Nem ao menos se deram o trabalho de cozinhar alguma coisa e acabaram pedindo comida por aplicativo mesmo. E esse pequeno período de ócio além de muito necessário, serviu para ajudar a morena a colocar seus pensamentos no lugar.
Cosima refletiu bastante e chegou à conclusão de que – mesmo que isso de certa maneira fosse acabar castrando uma parte fundamental do que ela era – havia chegado a hora de enfim trancar seu doutorado para se cuidar como devia.
Naquela tarde, Scott veio lhe fazer uma visita e lhe contou que alguns de seus camundongos haviam fugido em meio ao caos que ela havia gerado. Apesar de contornável, isso sem dúvida nenhuma iria impactar nos resultados que ela obteria com sua pesquisa, tendo em vista que já estava trabalhando com o número mínimo de cobaias requerido por norma.
Mas certamente essa não era a única coisa que a motivou em sua decisão. Por mais que estivesse esforçando ao máximo – se esforçando até demais, inclusive – para tentar levar uma vida normal, os últimos dias eram a prova cabal de que ela estava falhando miseravelmente nessa tarefa. Felix, Delphine... e até mesmo o Scott e o Tony tiveram que alterar suas rotinas e seus compromisso em maior ou menor grau a fim de remediar os problemas causados por ela.
O ponto é que a partir de agora as coisas tenderiam a ficar ainda piores. Quando começasse a quimioterapia, além de perder os dias em que fosse receber a medicação, não se iludia a ponto de pensar que o tratamento não a deixaria indisposta ou incapacitada a ponto de não conseguir sair de casa em alguns vários outros dias da semana. Além do mais, sua condição iria requerer repousos ainda mais frequentes e que se mantivesse longe de lugares com grande circulação de pessoas.
Com isso em mente, se continuasse insistindo em manter seus estudos, a única coisa que ia conseguir seria acabar dando ainda mais trabalho para aqueles que a cercavam. Cosima decidiu compartilhar sua decisão com Delphine e a reação de alívio da francesa ou ouvir aquilo foi incontestável.
– Vai ser melhor assim – disse a loira. – Você tem que se focar mais em você agora.
– É, eu sei disso...
– Até porque não é um adeus definitivo. Você só está dando uma pausa e depois vai retomar de onde parou. Já pensou se eu consigo te alcançar e a gente acaba se formando juntas?
Cosima sorriu com a perspectiva de poder compartilhar um marco tão importante como esse com Delphine. Mas ela sabia que forcar nisso talvez fosse um pouco de otimismo demais. Um ano de tratamento talvez não fosse o suficiente para que ela estive pronta para retomar os estudos, e além disso, "retomar de onde parou" não seria uma possibilidade. Tudo estaria diferente e ela tinha plena consciência disso.
Na segunda feira, Delphine acordou ainda mais cedo do que de costume. Precisava entregar o papel que Cosima havia assinado o quanto antes para não dar ao Dr. Nealon a chance de mudar de ideia. Sua intenção era ser a primeira a entrar na sede daquele Instituto quando suas portas fossem abertas.
A morena, por sua vez, demorou um pouco mais para sair de casa. Coincidentemente ela já tinha uma reunião agendada com seu próprio orientador, para que entregasse e discutisse com ele os últimos relatórios de sua pesquisa. No entanto, agora iria usar esse tempo para uma outra finalidade.
Cosima pensou que a parte mais difícil daquela manhã fosse ter que fazer o pedido de trancamento de sua matrícula, mas isso porque ela não previa sentir o que sentiu ao ver a expressão de desapontamento e pena no rosto do Dr. Leekie quando contou a ele o motivo de seu afastamento da universidade.
E sua trajetória de humilhação não parou por aí.
Depois de assinar uma pilha de formulários junto à secretaria do programa de mestrado, ela recebeu o prazo de 3 dias para retirar todos seus pertences e desocupar a sala que ela vinha utilizando como laboratório durante todos aqueles meses. Ainda estava cedo e sem ter nada de importante para fazer em casa, ela não viu motivos para adiar por mais tempo o que seria inadiável.
Embora estivesse vestindo uma blusa de manga comprida e feito um trabalho bastante decente com a maquiagem para esconder seus hematomas, à medida que ia caminhando pelos corredores da Universidade em direção ao laboratório, Cosima atraiu uma quantidade considerável de olhares dos outros transeuntes. Ela se perguntava quantas daquelas pessoas haviam a visto ser tirada dali pelos paramédicos em um estado que imaginava ter sido totalmente deplorável.
Mesmo quando passou pela porta e ficou protegida pela privacidade que o laboratório lhe conferia, as coisas não se tornaram muito mais confortáveis para ela. Um pouco de seu sangue seco ainda manchava a bancada de trabalho, fazendo com que flashes do ocorrido viessem com força de volta à sua mente. E apesar do chão estar bastante limpo, alguns vidros e a gaiola quebrada ainda estavam sobre o balcão, conferindo resquícios de desordem ao ambiente.
Mas seu estômago realmente revirou quando ela vestiu seu jaleco e se preparou para começar o trabalho que viera fazer ali. Cosima ajeitou minimamente uma parte da bancada onde pudesse trabalhar; separou um saco plástico especial destinado a lixo biológico e o trouxe para perto uma das gaiolas dos animais. Ela havia sido orientada pelo Dr. Leekie a realizar a eutanásia por meio de deslocamento cervical. Então sentindo o coração começar a bater mais depressa e a boca secar, Cosima abriu uma portinhola e pegou o primeiro bichinho.
– Desculpa pessoal... – Sua voz estava carregada de pesar. – Eu queria que isso pudesse ser diferente...
Antes de começar o procedimento, ela olhou bem para aqueles olhinhos avermelhados que tanto contrastavam com o pelo branco. Não acreditava que era assim que tudo terminaria para eles... Sem ter tempo de concluir a pesquisa, ela teria que refazer uma boa parte de tudo que já havia testado, portanto aquelas vidas estavam sendo – no sentido mais literal da palavra – jogadas no lixo.
Pelo jeito a única coisa que resta uma para cobaia no fim é a morte...
Naquele momento a repulsa que sentia pelo que estava prestes a fazer não era motivada somente pelo afeto que havia nutrido por conviver com aquelas criaturinhas dia após dia ao longo dos meses. Não. O revirar de suas entranhas era proporcionado principalmente pelo vínculo de empatia; pela capacidade que ela agora tinha de se colocar no lugar daqueles bichos.
Tentando focar em sua tarefa, Cosima colocou o ratinho sobre a bancada, o segurando pelo rabo com uma mão enquanto com a outra buscou pela pinça. Quando encaixou a peça metálica no pescoço, o animal ficou mais agitado e começou a soltar alguns grunhidos amedrontado. Sem querer prolongar mais o sofrimento, em um movimento rápido e preciso ela puxou as mãos, tracionando o bichinho em direções opostas.
Foi quase imperceptível, mas ela conseguiu ouvir um crack bem baixinho proporcionado pelo rompimento das vertebras.
Ao perceber os espasmos musculares da criatura terminarem junto com sua vida, Cosima sentiu o refluxo acendendo de forma rápida por seu esôfago, quase não lhe dando tempo suficiente para que conseguisse chegar até a lata de lixo.
Isso não vai funcionar pra mim, ela pensou enquanto derramava o conteúdo de seu estômago dentro do saco plástico.
Depois de limpar a boca com uma toalha de papel e contrariando as instruções de seu orientador, Cosima abriu a geladeira e alcançou os vidrinhos de sedativo por trás de algumas pilhas de cultura de células que estavam sendo conservadas.
Três vezes a dose prevista para sedação já é o suficiente.
Então ela pegou com conjunto de seringas em um dos armários e voltou a ocupar sua banqueta.
Quando as gaiolas ficaram vazias e dois dos sacos de lixo cheios, Cosima se sentiu emocional e fisicamente exaurida. Sem chances de conseguir terminar de limpar o laboratório naquele dia. O ambiente estava impregnado com o cheiro de morte e ela precisava urgentemente de um pouco de ar fresco.
Felix estava de frente para seu cavalete de pintura com o som de uma bela ópera preenchendo a sala, quando Cosima entrou apressada pela porta da frente e foi direto para o quarto, ignorando completamente a presença dele. Estranhando o comportamento da amiga, ele deixou a tela em que estava trabalhando de lado e precisou perder alguns minutos tentando remover a grande quantidade de tinha óleo que cobria suas mãos.
Ao chegar na porta do quarto de Cosima, Felix a encontrou de pé em frente para uma de suas estantes enquanto acariciava a superfície de um porta-retratos com as pontas dos dedos.
– Cos... – ele disse dando um passo para dentro do ambiente. – Você está bem?
Quando ela virou o rosto para olhá-lo, Felix notou os olhos dela já estavam bastante molhados e levemente avermelhados.
Cosima voltou a foto da vó para a prateleira e sem conseguir dizer nada, foi se sentar na beirada de sua cama. Tirou os óculos e os abandou sobre o colchão, tentando em vão enxugar as lágrimas que já tomavam sua face.
– Hey – Felix falou indo se juntar a ela. – O que aconteceu?
– Eu acabei de trancar meu doutorado, Fee – ela disse se jogando nos braços dele.
– Ah, querida... – Ele apoiou a cabeça dela em seu ombro. – Vai ser melhor assim. Você precisa pensar primeiro em você agora.
– Eu sinto como se tivesse simplesmente arrancado um pedaço de mim; virando as costas para o meu maior sonho...
– Isso não é verdade! – Felix pontuou. – Pense nisso como... Como umas férias prolongadas, hum? Não vai ser tão ruim assim.
– Você não entende... – ela disse se afastando um pouco dele e enxugando as lágrimas. – Pesquisar é o que nutre a minha alma, Felix. O que me motiva a acordar todos os dias. Como você se sentiria se fosse obrigado a parar de pintar?
Ele abriu a boca, mas não conseguiu dizer nada.
– Você diz que vai ser como férias, só que as férias sempre tem uma data para terminar. Eu não tenho um prazo pra isso, Felix – ela disse recuperando os óculos. – Aliás, eu não sei nem se o prazo de validade da minha vida já não está terminando...
– Hey, pode ir parando com isso! – ele disse agora em um tom mais impositivo.
– Você sabe que é verdade...
– O que eu sei é que você nunca abaixou a cabeça frente a adversidade nenhuma – o rapaz continuou. – Tudo bem, essa provavelmente é o mais complicada que você já teve que encarar, mas não é nem de longe impossível. Além disso você não está sozinha. Eu estou aqui pra você... Delphine está aqui pra você... Mas a gente não pode te ajudar se você não quiser se ajudar. E sinceramente, Cosima, autopiedade nunca fez o seu estilo.
Ela suspirou ruidosamente o que acabou lhe despertando uma leve tosse. Com isso ela lembrou da recomendação médica que havia recebido e se levantou para buscar seu cilindro de oxigênio.
– Eu tive que sacrificar todos os meus camundongos... – ela falou voltando a se sentar ao lado do amigo.
– Eww – ele disse franzindo o nariz.
– Não faz assim! Eles não eram nojentos...
– Você nunca devia ter dado nome pra aquelas coisas...
Ignorando o comentário dele, ela continuou.
– E se já não bastasse, agora eu estou me sentindo uma assassina.
Então Felix olhou bem pra ela; poderia até ter sentido alguma compaixão pelas criaturas exterminadas se não estivesse extremamente aliviado por Cosima não ter tentado contrabandear nenhum daqueles ratos asquerosos para dentro do apartamento.
– Ah, você sempre soube que esse ia ser o fim deles de qualquer maneira. Tenta se animar um pouco... – o rapaz disse olhando ao redor. – A Delphine acabou com toda a sua erva no outro dia?
– Sério? – Ela mal pôde acreditar na sugestão e mudança repentina de assunto que ele havia feito. – Você acha mesmo que eu estou em condição de fumar?
– E quem aqui está falando em fumar, queridinha? – ele falou dando um sorriso de lado todo insinuante – Eu peguei uma receita de bolo que dizem ser incrível!
Cosima olhou bem no rosto do amigo e se permitiu retribuir o sorriso dele.
– Anda logo – Felix disse a puxando para fora da cama consigo. – Eu não vou fazer tudo sozinho.
Indo atrás a passos mais lentos, ela o viu sumir pela porta do quarto estando vestido apenas com seu avental de pintura.
– Pelo amor de Deus! – Ela revirou os olhos. – Vê se vai colocar uma roupa!
Era inegável: Felix realmente sabia como fazê-la se sentir melhor. Embora os dois somados não contassem nem meia Delphine na cozinha, o bolo não saiu assim tão mal. Desfrutaram de uma tarde bastante agradável cozinhando e depois comendo juntos.
Porém o bom animo de Cosima voltou a diminuir com a iminência do final da tarde e com Felix precisando sair de casa.
Sozinha naquele apartamento, ela foi aos poucos sentindo a estranha sensação de vazio crescendo cada vez mais dentro de si. Entrou em seu quarto e nunca antes em todos os anos em que ali morava, Cosima achou aquele espaço tão grande.
Caminhou até sua escrivaninha e observou a bagunça que ali se encontrava. No próximo dia quando fosse terminar de retirar seus pertences do laboratório não poderia se esquecer de levar os livros que havia pegado emprestado de volta para a biblioteca. A quantidade de papéis soltos também era enorme. Com a nostalgia de alguém que olha fotos de um passado longínquo e mais feliz, Cosima foi aos poucos separando as anotações que julgou ainda poderem ser úteis no futuro.
Mesmo depois reunir e organizar tudo dentro de uma caixa e guardar com cuidado em cima da estante, ela ainda se sentia precisava fazer mais alguma coisa; acertar algo a mais para que conseguisse colocar um ponto final naquela etapa da vida – ou pelo menos uma vírgula – para conseguir se renovar e ter forçar o suficiente de encarar o que viria dali para frente.
Cosima pensou que talvez um banho pudesse ajudá-la a colocar sua cabeça em ordem, porém antes que pudesse ir até a cômoda pegar uma troca de roupa limpa, foi impedida pelo celular que começou a tocar.
Quando pegou o aparelho lá estava; Eskimo Pie brilhando na tela bem acima de uma foto de Delphine que um dia ela havia conseguido tirar sem que a loira percebesse.
– Hey – ela disse ao atender a ligação.
– Bonsoir Cosima – Delphine falou em resposta. A julgar pelo barulho que vinha no fundo, a morena pôde perceber que ela ainda estava no hospital. – Como você está se sentindo?
– Bem – Cosima respondeu se referindo apenas ao seu estado físico. – Hoje eu nem precisei remédio para a dor no corpo.
– Ótimo! – a loira disse deixando transparecer o sorriso em sua voz. – Eu estou indo pra casa só agora. Acabei deixando trabalho acumular nesses últimos dias e acho que vou acabar passando a noite toda escrevendo relatórios...
Cosima não soube muito bem o que responder. Não se sentia confortável em saber que era a causa das horas extras de Delphine.
– Eu consegui conversar com o Dr. Duncan hoje na hora do almoço – a francesa continuou depois de alguns segundos de silêncio.
– E então? Ele vai poder retomar o meu caso?
– Sim. Conseguimos encaixar um horário pra você para daqui dois dias.
– Menos mal assim. – Cosima soltou um suspiro de alívio. – Obrigada por ter resolvido isso por mim Del.
– Você sabe que não precisa me agradecer – Delphine disse com o barulho de trânsito indicando que ela já estava caminhando na rua. – E como foi o seu dia?
– Está feito – ela informou sentindo a sensação de vazio voltar a crescer dentro de si. – Eu só preciso passar no laboratório amanhã para terminar de tirar as minhas coisas de lá.
– Je suis désolé chérie.
Eu sinto muito, querida.
– Tudo bem...
– Você quer que eu vá ficar aí com você?
– Não, de jeito nenhum. Não quero atrapalhar mais você
– Não tem problema nenhum, eu posso terminar esses relatórios outra hora...
– Não, tá tudo bem mesmo – Cosima imprimiu um pouco mais de segurança na voz. – De verdade, Delphine.
– Ok, você quem sabe – Delphine falou. – Eu já vou desligar então. Qualquer coisa me liga.
– Pode deixar. Tchau.
– À demain.
Cosima passou alguns instantes olhando para a tela do celular depois de finalizar a chamada, antes de finalmente soltar o aparelho e entrar no banheiro. Só Deus sabe quanto tempo ela passou debaixo daquele chuveiro... Tentou esvaziar seus pensamentos e se concentrar apenas na água agradavelmente morna que escorria lavando sua pele. E pode-se dizer que aquele banho foi bastante efetivo; além de limpar o corpo, ela teve a impressão de estar se sentindo mais leve enquanto se enxugava.
Enrolada na toalha, Cosima voltou para o quarto e deteve seus passos quando passou na frente do espelho. Olhou fixamente para sua imagem ali refletida como se fosse primeira vez que estivesse fazendo isso.
O pequeno corte em sua têmpora estava em avançado estágio de cicatrização, provavelmente graças a pomada que Delphine havia recomendado que ela usasse. Os hematomas em seu rosto, braços e pernas por outro lado – embora já mudando para um tom esverdeado e bem menos doloridos ao toque – ainda estavam bem visíveis.
Em um gesto espontâneo, Cosima liberou a toalha e permitiu que ela caísse livremente aos seus pés.
E ali estavam... Por meses ela havia inconscientemente evitado encarar as quatro pequenas incisões em sua barriga. As cicatrizes a essa altura já estavam em um discreto tom de rosa, indicavem que no futuro elas certamente acabariam ficando na mesma cor clara de sua pele.
Quanta bobagem...
Apesar da tentativa de Cosima de ignorar a gravidade de sua situação e continuar a viver como se nada estivesse acontecendo, até pelo lado de fora seu corpo não era mais o mesmo e se negar a aceitar essa nova realidade só havia feito com que ela se marcasse ainda mais.
Algum tempo depois acabou se distraindo e vagou o olhar através das fotos presas na moldura do espelho. Não importa o quanto a tecnologia ainda viesse a evoluir, ter as lembranças impressas de forma física sempre seria mais especial do que apenas alguns bits armazenados na memória de um dispositivo eletrônico qualquer. Por esse motivo tinha impresso a selfie que havia tirado com Delphine na primeira vez em que saíram juntas. Fechando os olhos, ela quase conseguia se transportar no passado de volta para aquela noite em que explorou o Toronto Light Festival junto com a loira. O sorriso que se formou em seu rosto veio de uma forma natural.
E muitos outros momentos ali estavam gravados. Como a foto que havia tirado com Felix logo que se mudaram para aquele apartamento e ainda não tinham quase mobília nenhuma; ou ainda aquela em que Cosima aparecia posando ao lado de três professores e sorrindo de orelha a orelha depois de ter seu TCC aprovado com nota máxima.
Mas a última imagem em que seus olhos pousaram também era a mais antiga preservada naquele espaço e uma da qual ela própria não estava presente. A foto já envelhecida pelo tempo, estampava os pais de Cosima abraçados na proa da casa-barco deles durante uma de suas expedições pela Patagônia Chilena. Pareciam ter se passado séculos desde o dia em que ela havia clicado sua polaroid recém adquirida e imortalizado aquela memória.
Meu pai até tinha um pouco de cabelo naquela época, Cosima pensou, rindo consigo mesma.
E então ela soube; se deu conta de que aquela era a última coisa que falta fazer para que conseguisse realmente seguir em frente.
Em vez de escolher uma roupa, Cosima simplesmente voltou para o banheiro e pegou seu robe de seda roxa que estava pendurado atrás da porta e o vestiu. Sem mais perder tempo, retomou seu celular e efetuou a ligação, esperando profundamente que ela fosse completada.
A chamada estava demorando para ser atendida, e Cosima cogitou desligar quando se deu conta de que não fazia ideia de onde os pais estava no momento e, portanto, poderia estar os incomodando bem no meio da madrugada. Devia ter mandado uma mensagem antes combinando um bom horário para se falarem...
Mas quando já estava começando a afastar o celular da orelha, o som das chamadas parou.
– Cosima?
– Oi, mãe – ela respondeu com um sorriso espontâneo voltando ao rosto.
– Ah Cosima... Quando tempo, minha filha! Como você está?
– Bom... – ela começou, mas então percebeu que Sally não a estava prestando atenção.
– Gene? GENE! Venha até aqui, por favor .– Um segundo de silêncio se passou e uma voz masculina indistinguível surgiu à distância. – É a Cosima!
– Mãe, eu estou atrapalhando vocês? Eu posso ligar depois...
– Não, de jeito nenhum querida. Eu só estava terminando de preparar o jantar enquanto o seu pai está lá fora no cais conversando com um senhor que nós conhecemos essa tarde.
– Onde você estão?
– Em Portland, no Maine – Sally respondeu. – Nós fomos contratados para prestar uma consultoria sobre um caso de derramamento de óleo que eles tiveram com um cargueiro aqui no porto mês passado.
Então Cosima sentiu perder a atenção da mãe novamente. Ouviu a movimentação de alguém se aproximando e então uma voz no fundo dizendo, "Coloca no viva-voz".
– Hey, garota! Como vão as coisas?
– Oi pai! – ela disse quase conseguindo se esquecer do motivo pelo qual havia ligado. – Nossa, eu estou com tanta saudade de você...
– Nós também estamos – Gene respondeu. – Eu e sua mãe já estamos querendo ligar pra você a algum tempo, mas com a correria do dia-a-dia acabamos deixando passar.
– Mas então, filha – Sally começou. – Me conta as novidades!
Cosima soltou um suspiro sendo puxada novamente para a realidade.
– Muita coisa aconteceu nos últimos tempos...
– Não vai me dizer que já terminou com a namorada?
– Gene! – Sally repreendeu o marido, o que causou risos na filha.
– Não, pai. Eu e a Delphine não terminamos.
– E na universidade? – a mãe prosseguiu. – Como vai sua pesquisa?
Então Cosima travou. O sorriso sumiu de seu rosto e ela teve dificuldade de encontrar as palavras certas para dizer.
– Cos? – Gene falou depois de alguns segundos de silêncio.
– Eu tranquei o doutorado – ela enfim respondeu.
– O QUÊ?? – os dois disseram em uníssono.
– Como assim trancou o doutorado? Você sonha com isso desde que descobriu o que é o DNA! – Gene completou.
Por favor, pai... Não dificulte ainda mais as coisas...
Cosima se deu um segundo para inspirar profundamente e reunir a coragem de que precisava.
– Tem uma coisa que eu preciso contar pra vocês.
Contrariando tudo o que estava esperando, Cosima conseguiu se manter relativamente calma ao relatar para os pais toda a história desde o começo, quando havia recebido seu diagnóstico. Bom, talvez ela tenha suavizado um pouco, deixando os detalhes mais gráficos de fora – como por exemplo seu último incidente de dias atrás.
A mãe dela por outro lado...
Embora Sally parecesse ter demorado um pouco para realmente entender o que a filha estava dizendo, não conseguiu segurar as lágrimas por muito tempo.
– Você não podia ter escondido isso da gente – Gene disse em um tom controlado, porém severo.
– Eu sei – Cosima falou resignada. – Eu sei, me desculpe.
– Me desculpe? Você acha que esse é o tipo de coisa que dá pra concertar com um pedido de desculpas, menina? – ele continuou, agora mais alterado. – O que é que você estava esperando? Me diz Cosima!
– Eu... não queria ter que contar isso por telefone – ela disse se sentido envergonhada e intimidada pela reação do pai.
– Você pode até estar levando uma vida independente a sei lá eu quantos anos, mas nós ainda somos os seus pais! Não se esconde esse tipo de coisa da família!
– Gene... – Sally tentou intervir enquanto enxugava o nariz em um lenço de papel.
– Você imaginou como nós nos sentiríamos se você tivesse... – Ele fez uma pausa parecendo não ter coragem de verbalizar o que tinha passado por sua cabeça. – Imaginou como eu e sua mãe nos sentiríamos se tivesse te acontecido alguma coisa e nós não estivéssemos sabendo de nada??
– Gene, já chega! Isso não está ajudando em nada!
Ele nada mais falou e Cosima percebeu pelos passos no piso de madeira do veleiro que ele havia levantado e se afastado.
– Onde ele foi? – Cosima perguntou. Se questionava sobre o quanto daquela irritação do pai seria realmente passageira.
– Só está tomando um pouco de ar no convés – Sally respondeu. – Você sabe que ele tem razão de estar bravo, não sabe?
– Sim – ela disse voltando a se sentir com 10 anos de idade. – Você também está brava comigo?
Sally suspirou ruidosamente.
– Eu estou extremamente preocupada com você.
Cosima se manteve em silêncio. Pela voz dela, pode perceber que a mãe também estava desapontada por conta de sua atitude.
– De qualquer forma... Amanhã de manhã eu pego um voo e vou para Toronto. Felizmente nós não estamos tão distantes...
– Não, não precisa fazer isso! – Cosima interveio. – Vocês estão trabalhando e eu estou bem. Quero dizer, minha situação está sob controle, não precisa de tanta pressa.
– E você acha que eu vou ter cabeça para trabalhar sabendo que a minha filha está doente? Eu preciso ver você.
– Era justamente isso o que eu não queria – Cosima pontuou. – Não queria atrapalhar a vida de vocês...
– Cosima nós somos uma família – Sally disse parecendo ter se recomposto. – E família é para os bons e para os maus momentos.
Então passos voltaram a ser ouvidos, indicando que Gene havia se reaproximado. Aparentemente ele tinha ouvido a conversa delas.
– Você não vai de avião – ele falou diretamente para a esposa. – Quando o diretor do porto chegar amanhã eu vou falar com ele e dizer que vamos terminar os relatórios à distância. Nós dois vamos para Toronto.
– Pai...
– Isso não é uma discussão Cosima. Em três dias nós devemos estar aí; dois se o vento ajudar.
Tenho a certeza de que aquele assunto estava terminado, ela achou por bem nem tentar argumentar. Até mesmo porque estava morrendo de saudade dos dois e ansiando por revê-los.
– Tudo bem – ela falou resignada. – Acho que eu já vou desligar então.
– Tchau querida – disse Sally. – Nós amamos você.
– Eu também amo vocês.
Percebendo que o pai não diria mais nada, Cosima finalizou a ligação.
Embora se sentisse culpada por se tornar uma fonte de preocupação e desequilibrar a vida "tranquila e estável" que os pais levavam, ela não pode deixar de se sentir aliviada por finalmente ter contado a eles. Tinha mantido aquele segredo com a intenção de conseguir se curar sem deixar que eles sofressem com isso, mas agora com tantas incertezas sobre o que a esperava no futuro, já não podia mais esconder isso deles. Só de imaginar que ela poderia morrer sem eles terem tido a oportunidade de escutar a verdade da boca dela, era doloroso demais.
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