Laços de Família
– E se eu deixasse minhas mãos mais soltas desse jeito? Ou então cruzasse um pouco os braços? Você não acha que ficaria mais natural?
– Não. Não querida – falou Felix reposicionando as mãos de Alison de forma que os dedos de uma das mãos dela se apoiavam delicadamente na palma da outra. – Tem que ser exatamente desse jeito. Acha que consegue segurar essa posição para mim?
– Mas é claro! – ela falou recobrando a postura na cadeira. Fechou os olhos por um instante e respirou fundo, bem como se estivesse se preparando para entrar em um personagem. – Sabe, estátua viva nunca foi a minha parte favorita no teatro, mas o meu talento é muito adaptável.
– Não tenho dúvidas disso, você está se saindo uma ótima modelo para mim – Felix disse voltando a tomar seu lugar por detrás do cavalete. – Tudo em nome da arte, certo?
– É o que eu sempre digo. E hoje o dia não poderia ser melhor para isso, não preciso voltar para casa tão cedo.
– Ah, meu Deus – ele disse apoiando as costas da mão que segurava o pincel na altura da têmpora. – Não vai me dizer que você e o Donnie brigaram feio dessa vez?
– Não, não foi isso. Sim, as vezes o Donnie me tira do sério e eu tenho vontade de queimá-lo com a minha pistola de cola quente, mas nós estamos passando por uma boa fase agora – Alison explicou. – Eu não preciso ter pressa porque hoje cedo a minha mãe levou as crianças para Flórida e o Donnie vai sair para jogar golfe com os amigos depois de fechar a loja.
Delphine assistia despretensiosamente a conversa dos dois. Estar naquele loft, com a cabeça de Cosima deitada em seu colo enquanto ela tentava resolver uma fase aparentemente complicada de "Portal 2", e observando Felix e Alison – que eram ao mesmo tempo uma dupla improvável e perfeita – conversando sobre assuntos tão corriqueiros enquanto ele pintava um quadro dela, era sem dúvida uma das melhores formas que ela já havia encontrado de extravasar todo peso que era intrínseco ao seu trabalho.
E exatamente ali, com os dedos perdidos em meio aos dreads da morena, fitando as paredes pintadas do apartamento, a aparente desordem da sala e aquelas pessoas tão diferentes entre si, só uma coisa lhe passava na cabeça.
Como eu vim parar nesse lugar?
Mas era uma indagação com as melhores intenções possíveis. A sensação de fazer parte daquele cenário era tão acolhedora, que o sorriso discreto que surgiu em seu rosto se fez inevitável.
– Mas então, Delphine – disse Alison chamando sua atenção. – Eu não vou poder segurar a entrada de vocês por mais tempo. Vocês vão poder ir?
– Ah... – Delphine não fazia ideia do que ela estava falando. – Pardon?
– O karaokê. Vocês vão poder ir ou não?
– Que karaokê? – ela perguntou confusa.
– A Cosima não te disse?
Delphine declinou com a cabeça e cutucou a namorada no ombro.
– Cosima?
– Hmm?
O resmungo vazio indicava que ela não tinha ouvido nada, tão perdida quanto estava em seu jogo. A francesa revirou os olhos e antes que ela pudesse reagir, enfiou o dedo no botão de pause do controle.
– Hey! – ela soltou quando finalmente voltou para o mundo real, e parecendo bastante indignada.
Cosima se colocou sentada em um movimento brusco, no entanto acabou derrubando o controle no percurso e fechou os olhos se segurando na beirada do sofá.
– Cosima? – Delphine perguntou preocupada. – Tá tudo bem?
– Sim – ela disse esfregando os olhos. – Sim. Foi só uma tontura. Acho que levantei rápido demais. Por que é mesmo que você interrompeu o meu jogo?
– Cosima, você não falou com ela sobre o karaokê da igreja? – Alison perguntou enquanto Delphine ainda a observava preocupada.
– Karaokê? – Cosima vasculhou sua mente em busca que alguma coisa que tivesse deixado passar relacionada com aquela palavra. – Ah, claro! Eu acabei esquecendo de te falar, Delphine. A Alison chamou a gente pra ir num karaokê que a igreja dela está organizando. Quando vai ser mesmo, Ali?
– Amanhã – Alison respondeu começando a sentir os músculos do braço reclamarem de ficar na mesma posição enquanto Felix a pintava. – Sabe, Delphine, o nosso reverendo é muito engajado nas causas sociais da nossa comunidade. Dessa vez nós... quer dizer, ele com um pouquinho da minha ajuda, decidiu que seria interessante organizar um evento beneficente mais moderno para trazer as pessoas para mais perto da igreja.
Moderno?
– Trazer para perto da igreja? – Delphine repetiu com as sobrancelhas ligeiramente franzidas.
– Relaxa, loira – Felix disse concentrado, tentando concertar uma gota de tinta que tinha pingado no lugar errado. – Vai ter bastante álcool e nenhum sermão.
– Você vai? – Delphine perguntou.
– Apesar de ser no subúrbio, eu vou sim.
– Eu não entendo qual é o seu problema com Bailey Downs, Felix – disse Alison ligeiramente ofendida.
– Ah, querida, não é nada contra o seu bairro em específico. É só que eu nasci para viver no centro, entende?
– O que acha? – Delphine perguntou para Cosima que estava com uma expressão indecifrável no rosto.
– Você quem sabe – ela disse dando os ombros.
Delphine pensou por instante. Se Felix estava embarcando, esse barco não devia ser tão furado assim.
– Ok – ela disse se voltando para Alison. – Nós vamos.
– Ah, mas que ótimo! Assim que eu puder me mexer novamente eu passo o endereço pra vocês.
Quando Delphine voltou a olhar para Cosima, percebeu que talvez não fosse aquela a resposta que a morena esperava.
– Agora eu já posso voltar para o meu jogo?
A francesa revirou os olhos e passou o braço por cima dos ombros dela.
Nessa nova posição, ela deu uma olhada melhor em suas mãos e se deu conta do quão deplorável era o estado de suas unhas.
– Hey, vocês sabem de alguma manicure que atenda aqui por perto? – Delphine perguntou.
– Isso é com eles – Cosima disse com olhos ainda grudados na televisão. – Eu mesma dou um jeito nas minhas unhas.
– Você devia ir na Krystal – Felix recomendou. – Ela já deve estar com a agenda cheia pra amanhã, mas sempre consegue um horário pra mim quando eu preciso.
– Ah, pelo amor de Deus, Felix! – Alison interveio.
– Que foi?
– A Delphine não vai querer ir na, Krystal! – ela falou o nome com um forte tom de deboche.
– E porque não?
– Ela fala de mais – Alison disse fazendo a loira ter que se segurar para não rir. – Além disso, uma porta é mais inteligente do que ela.
– Alison! – Felix disse a olhando com reprovação. – Mesmo se isso fosse verdade... A Delphine precisa de uma manicure, não de uma Nobel em Física.
– Ela é vulgar e fútil – Alison prosseguiu. – Aquelas roupas que ela usa... Acho que se ela precisar espirar, as costuras vão estouram todas, de tão justos que são aqueles vestidos.
Finalmente Cosima pausou o jogo – por livre e espontânea vontade dessa vez – e se virou no sofá para ter uma visão mais direta de Alison.
– Não dá ouvidos pra ela, Del – a morena disse com um sorriso travesso no rosto. – A Alison só está dizendo essas coisas porque não superou até hoje o fato de que a equipe da Krystal venceu a dela no campeonato de líderes de torcida no nosso último ano do colégio.
– Mas que bobagem! – Alison disse indignada. – Isso não tem nada...
– A Cos tem razão. – Felix caiu na risada. – Quer saber, a Krystal é a melhor manicure que eu conheço. Pode deixar que eu consigo um horário com ela pra você, Delphine.
– Obrigada – a francesa disse rindo de uma Alison que bufava contrariada.
– E pode ir desfazendo esse bico aí – ele falou repreendendo Alison. – Você não vai querer me fazer perder todo o trabalho que eu tive até agora.
Ela se ajeitou novamente na cadeira.
– Como está ficando? – Alison perguntou à contragosto.
– Magnífico, querida – ele respondeu. – Magnífico.
Horas depois, Felix havia liberado Alison de sua posição de modelo e ela e Delphine já tinham deixado o apartamento deles. A francesa havia combinado uma vídeo chamada com sua mãe e Cosima achou melhor não acompanha-la.
Elas não tocavam nesse assunto, mas Cosima sabia que a família de Delphine ainda não sabia sobre o relacionamento delas. Mas sinceramente ela não se incomodava com isso. Nem seus próprios pais conheciam a loira ainda; Cosima tinha contado a eles que estava namorando, mas não voltaram se falar desde que ela descobriu a doença e havia decidido que preferia não dizer a eles por enquanto. Nesses meses de convivência ela já tinha entendido que as relações familiares de Delphine eram um assunto ligeiramente mais delicado do que no caso dela, por isso não a pressionava a nada. Além do mais, se sair do armário geralmente já é uma coisa complicada, quem dirá fazer isso através de uma ligação telefónica a um oceano de distância.
Mas esse não foi o único motivo que manteve Cosima em casa. Ela não estava se sentindo muito disposta naquele fim de tarde, e ali embaixo do chuveiro onde estava, ela supôs estar sentindo um desconforto abdominal. Sim, era fraco, porém compatível com cólicas. Como por impulso ela levou a mão para o meio das pernas e sua boca começou a tremer involuntariamente quando ela flagrou o sangue que manchava seus dedos.
Não podia ser menstruação; uma parte da medicação que ela estava tomando era justamente para bloquear seu ciclo e dessa formar tentar prevenir outras hemorragias. Ela se apoiou na parede do box se sentindo ligeiramente tonta enquanto a água quente escorria por suas costas.
Tá tudo bem, ela tentou se convencer com os olhos fechados, O Dr. Duncan avisou que isso poderia voltar a acontecer. É só uma hemorragia por causa dos pólipos no meu útero. É totalmente normal e já vai passar.
E assim ela continuou ali por mais alguns minutos. Mas se foi por sorte ou meramente pelos efeitos positivos que o tratamento já tivera, dessa vez o sangramento foi menos intenso e durou menos tempo. Mesmo assim, depois de sair do banho e começar a se vestir, só por prevenção ela achou melhor colocar um absorvente.
Cosima estava terminando de suspender a calcinha quando ouviu Felix entrando em seu quarto.
– Cos?
– Eu tô no banheiro – ela falou pegando um short de pijama. – Vem cá.
Ele se aproximou terminando de empurrar a porta que estava semiaberta.
– Você já tá indo pra Delphine? – Felix disse se encostando no batente.
– Não – ela disse olhando para ele através do espelho enquanto soltava os dreads. – Vou ficar em casa hoje.
– Vocês brigaram? – ele perguntou desconfiado
– Não, Felix, nós não brigamos – ela falou passando um braço em volta da cintura dele e o guiando para fora do banheiro. – Ainda somos pessoas independentes que podem ficar distantes por algum tempo.
– É mesmo? – ele disse ironicamente.
– É mesmo – a morena respondeu. – Mas anda logo, eu conheço esse seu jeito. O que aconteceu?
Cosima se sentou na cama, com as costas contra a cabeceira, enquanto Felix ficou de frente a ela com as mãos apoiadas no colchão.
– Cos, tem uma coisa que eu queria conversar com você – ele disse sem olhá-la diretamente.
– Sou toda ouvidos – Cosima falou começando a ficar preocupada com o tom de seriedade que ele tinha imposto à conversa.
– Você sabe, eu nunca tive problemas com essa coisa de ser adotado. A Siobhan foi a melhor coisa que já aconteceu na minha vida e eu amo a Sarah.
– Sim – ela anuiu o incentivando a continuar.
– Mas de uns tempos pra cá... depois que a Sarah engravidou e especialmente depois que a Kira nasceu... Umas coisas tem passado na minha cabeça. – Ele fez uma breve pausa e respirou fundo, como se para organizar seus pensamentos. – Sabe, a S tinha muitos contatos em Londres e antes de vir para o Canadá, ela conseguiu descobrir algumas coisas do meu passado. Ela me contou que a minha mãe biológica morreu quando eu era muito pequeno e depois disso eu fiquei vagando entre os abrigos até que ela me encontrar e decidir ficar comigo. A minha mãe era dançarina em um club noturno e ninguém sabe nada sobre quem foi o meu pai.
– Sim, você já me contou essa história.
– É que agora quando eu olho pra Kira... ela é tão parecida com Sarah. Nós somos uma família, isso não é nem uma questão pra mim. Mas é que eu fico me perguntando... Será que não tem ninguém por aí no mundo que se pareça comigo?
Cosima sorriu começando a entender onde ele queria chegar.
– Você quer ir atrás da sua família biológica?
– Hoje de manhã, eu estava andando no centro e passei na frente de uma agência, GeneConnexions – ele disse se acomodando melhor na cama. – Eles fazem esses serviços, sabe, em que você submete seu DNA pra saber de quais partes do mundo os seus ancestrais vieram?
– Conheço, mas Felix, essas análises são muito gerais. – Ela ajeitou os óculos – Essa ancestralidade não é específica, eles só dão a porcentagem de cada etnia que você carrega no sangue.
– Eu sei Cosima, mas você não entendeu. Não é isso que eu quero. O que me deixou interessado é no outro serviço que eles oferecem. Por conta da procura por essa coisa de ancestralidade, o banco de dados genético deles é muito grande. É uma empresa multinacional, com filiais em diversos lugares do mundo. O que eu posso fazer é submeter o meu DNA, aí eles fazem um cruzamento, ou sei lá eu o que, pra ver se tem alguém nos cadastros deles que pode ser algum parente sanguíneo meu. Aí se encontrarem, entram em contato com a pessoa e perguntam se ela tem o interesse de me conhecer.
– E você vai fazer isso?
– Eu não sei... – Ele suspirou profundamente. – O que você acha?
A ideia de entregar seu código genético a qualquer empresa ou instituição era algo que incomodava muito Cosima. Como pesquisadora dedicada da biologia e especialmente da genética humana que era, seu instinto seria manda-lo passar bem longe daquele lugar. Por outro lado, naquele momento não era no bom senso da futura Dra. Niehaus que Felix estava interessado, e sim na opinião de sua amiga de tantos anos, Cosima.
– Vem cá – ela chamou para que ele se sentasse ao lado dela e o abraçou. – Eu acho que você deve seguir o seu coração. Se você tem curiosidade de conhecer os parentes de sangue, então vai em frente.
Ele a apertou mais forte se mantiveram daquele jeito por alguns instantes.
– Você já contou dessa sua vontade pra elas? – perguntou Cosima.
– Ainda não. Você é a primeira pessoa com quem eu estou falando isso.
– Não se preocupa, elas vão te apoiar.
– Eu não tenho tanta certeza – Felix disse se afastando. – A S, talvez, mas a Sarah... Sempre que esse assunto vem à tona, geralmente nesses programas sensacionalistas de TV, ela diz que nunca vai entender órfãos que querem conhecer as pessoas que um dia já a abandonaram.
– Mas esse não é o seu caso. A sua mãe não te deixou por que ela quis, foi uma fatalidade. Além disso, quem sabe você não tem irmãos? Ou primos, sei lá. Podem ser pessoas incríveis que só vão adicionar na sua vida.
– Ou podem ser pessoas desprezíveis. Homofóbicos ou... republicanos.
Cosima riu daquela última colocação.
– E eu posso não encontrar ninguém, ou então encontrar e a pessoa não querer me conhecer.
– Sim, isso é uma possibilidade – ela disse voltando a ficar séria. – Mas você nunca vai saber se não for em frente, e sinceramente, acho que deve ser menos pior se arrepender por uma coisa que você fez do que de algo que você nunca teve coragem de encarar. Só tenta não criar muitas expectativas, tudo bem?
– Você tem razão. Acho que eu não tenho muito a perder, né?
– Bom, só o dinheiro que eles vão te cobrar por isso – ela disse em tom divertindo fazendo com que Felix também conseguisse soltar uma risada.
Então eles ficaram em silêncio um ao lado do outro, olhando para o teto e permitindo que seus pensamentos viajassem.
– Você nunca pensou em ir atrás da outra parte das suas raízes? – Felix perguntou depois de um tempo.
– Ah, Felix... – Cosima falou passando a mão na cabeça. – O meu caso é bem diferente seu. Além de nunca ter sentido a falta afetiva, assim como você diz que também não sentiu, essa parte de reconhecimento físico nunca foi um problema pra mim. Tipo, eu sou super parecida com o meu pai, inclusive todo mundo sempre comentou isso. E quando eu olho os nossos álbuns de família, consigo ver a minha com aquela barriga enorme, grávida de mim. Sim, nós duas não temos semelhanças físicas, mas isso além de não ser relevante, também acontece em famílias 100% biológicas. E em relação a outra metade do meu DNA, não consigo imaginar qualquer tipo de laço afetivo entre essa mulher e eu. Tipo, ela é só a doadora do óvulo que fez a minha existência ser possível. Não me entenda mal, se eu a conhecesse por acaso algum dia, iria agradece-la imensamente por dar a oportunidade a mulheres com problemas de fertilidade como a minha mãe de poder ter uma gestação e realizar um sonho, mas isso é tudo. A única coisa que eu sinto por ela é gratidão.
Felix abriu a boca na intenção de dizer alguma coisa, mas em um timing perfeito, eles ouviram um celular começar a vibrar desesperado em cima da cama.
– Eu acho que é o seu – Cosima falou.
Ele se esticou para pegar o aparelho que havia sido abandonado aos pés da cama.
– Ah, meu Deus... – ele disse parecendo com preguiça. – São 15 mensagens da Alison.
– O que ela quer? – Cosima perguntou rindo do exagero da amiga.
Felix desbloqueou o celular e rapidamente passou os olhos pelo conteúdo das mensagens.
– Parece que a Sarah comeu um bolo estragado e pegou uma intoxicação alimentar – ele disse dando um longo suspiro. – Não vai poder ir amanhã, então a Alison tá me perguntando se eu não posso ir mais cedo para ajudá-la a finalizar os preparativos.
– Você tá falando do karaokê da igreja dela? – Cosima perguntou com ar de descrença.
– Uhum.
– Eu não acredito que a Sarah tava participando da organização de um evento da igreja da Alison!
– Não! Não é a minha irmã! – ele disse rindo da confusão que havia se formado. – Ela tá mudada, mas nem tanto. Não, essa é a Sarah Stubbs, uma amiga do grupo de teatro da Ali.
– Ok, isso faz bem mais sentido – ela falou terminando de deitar o corpo e jogando a cabeça para trás no travesseiro. – Eu não pensei que a Del fosse aceitar ir nisso amanhã. Tipo, achei que quando ela ouvisse a palavra igreja fosse inventar uma desculpa qualquer na hora.
– Isso mostra que ela é uma pessoa que lida bem com as diferenças. Você deveria ficar feliz.
– Difícil vai ser ficar feliz no meio daquele tanto de beatas – ela fez uma breve pausa. – Que a Alison não me ouça...
– Querida, você ficaria impressionada com o que acontece quando essa gente religiosa está fora da igreja e com fácil acesso a bebida. Além disso, seja criativa, tenho certeza que você vai dar um jeito de deixar as coisas bem mais divertidas.
Cosima se deitou de lado e ficou assistindo Felix digitar uma resposta para Alison.
Deixar as coisas mais divertidas?
Ela se esforçou para pensar no que poderia fazer para deixar um karaokê beneficente – que provavelmente nem teria as músicas que gosta – mais interessante do que passar o dia em casa maratonando séries jogada no sofá da sala com um grande balde de pipoca.
Foi então que uma coisa surgiu em sua mente.
– Felix! – ela disse se colocando sentada de forma repentina. – Eu tive uma ideia!
– Tá vendo? Nem foi tão difícil assim – ele falou terminando de escrever e deixando de lado. – Então me diz, que ideia brilhante é essa?
– Eu preciso da sua ajuda. Será que você pode ir num sex shop comigo amanhã de manhã?
– Wow! – ele soltou se surpreendendo com a resposta dela. – Olha Cosima, tudo bem, ele não são tão caretas quanto você pensa, mas eu acho que também não são assim tão liberais...
– Não, escuta. Eu vou te explicar no que eu pensei...
Delphine mal tinha ocupado sua cadeira no salão de beleza – que operava em sua capacidade máxima – e já estava começando a ficar zonza com tanta conversa.
Alison tinha razão. Ela fala demais.
– ... sabe, por mais que a morte do Hector ainda era recente, nós tínhamos um relacionamento aberto, e esse cara tinha, tipo, uma cicatriz no rosto. Eu achei tão sóbrio e misterioso e... sexy – ia dizendo a manicure com decote extravagante. – Então eu pensei, "Que se dane, esse cara é gostoso. O que pode dar de errado?". Mas eu estava tão errada!
Delphine basicamente ia fazendo caras e acenando com a cabeça enquanto ouvia Krystal falar sem parada.
– Aí ele me levou pra um hotel, e eu já ia começar a tirar a minha roupa, mas foi então que um outro cara entrou no quarto, e era idêntico a ele. Não tinha a cicatriz, mas era idêntico! Um gêmeo idêntico! – Krystal ia lançando olhares para enfatizar o que dizia, e aquilo já estava fazendo Delphine ficar com medo de acabar perdendo um bife grande de um dos dedos. – Gêmeos são tão assustadores! Aí o irmão dele foi chegando todo cheio de intenções pra cima de mim, aí eu disse, "Espera aí, eu não concordei com isso!". Você acredita que ele simplesmente me ignorou e tentou passar a mão nos meus peitos?
– É mesmo?
– É! Ah, mas eu sei que pode até parecer, por que eu sou loira e bonita, mas se tem uma coisa que eu não sou, essa coisa é estupida. Eu faço aula de defesa pessoal, sabe? Pra aprender a me defender desse tipo de boy lixo. E pra minha sorte eu estava carregando meu spray de pimenta na bolsa aquele dia. Aí eu dei um chute nas partes de um, taquei spray nos olhos outro e sai gritando pela porta. Depois que o do chute se recuperou, tentou ir atrás de mim no corredor, mas aí outros hóspedes já tinham me ouvido pedir ajuda. Se os seguranças não tivessem chegado logo, nem sei o que eles poderiam ter feito comigo.
– Isso é... horrível.
– Mas quer saber? Já passou – Krystal disse começando a tirar as cutículas da outra mão de Delphine. – Mas então, me fala um pouco de você. O Felix só me disse que você é francesa.
– Sim. Eu vim pro Canadá para fazer meu doutorado.
– Você é médica?
– Sim, sou oncologista, mas estou me especializando em imunoterapia.
– Sabe, eu dou muito valor nessas coisas. A arte da cura. Sinto que o que eu faço não deixa de ser um tipo de cura, sabe? Recuperar e cuidar da autoestima das pessoas. É nisso que eu sou boa. Esse é o meu dom.
Delphine já estava começando a gostar e se divertir com o jeito de Krystal.
– Nossa, querida, sem ofensas, mas as suas unhas estão terríveis! Tão pequenas desse jeito eu não vou conseguir fazer grande coisa. Mas nós temos várias opções de unhas postiças aqui no salão. As nossas de gel duram várias semanas e...
– Não. – A incisividade de Delphine chamou a atenção Krystal. – Desculpe, é só que eu... preciso delas bem aparadas.
– Ah, é claro. Como eu sou boba – disse Krystal batendo de leve em sua própria testa. – Médicas não podem ter as unhas compridas, né?
Delphine apenas acenou, ficando feliz que aquela questão não tinha evoluído para algo mais, digamos, constrangedor.
Mas ela tem razão. Afinal, eu não vou querer machucar a minha... paciente, não é mesmo?
Já era fim de tarde e o sol começava a se pôr quando Delphine começou a subir os degraus da escada que levava até o apartamento que Cosima dividia com Felix. Ela parou em frente à porta e bateu, mas ao testar a maçaneta, como de praxe, não estava trancada.
– Cosima? – ela chamou sem obter resposta.
Não tinha ninguém na sala nem na cozinha, o lugar estava completamente silencioso. Foi só quando passou pelo corredor se aproximando do quarto de Cosima – cuja porta se encontrava entreaberta – que ela começou a ouvir um burburinho.
O som era baixo e abafado, o que a fez pensar que eles estavam trancados no banheiro. Sem dúvida nenhuma as vozes eram de Felix e Cosima.
– Cosima? – ela tentou mais uma vez.
Dessa fez seu chamado foi ouvido e os dois ficaram em silêncio. No instante seguinte, o rapaz escorregou para o quarto, fechando rapidamente a porta do banheiro atrás de si, sem permitir que ela pudesse ver o que estava acontecendo lá dentro.
– Delphine! – ele disse com um grande e nada sutil sorriso no rosto. – Você já chegou!?
– Felix – ela falou desconfiada. – A Cosima tá bem?
– Ah, ela tá ótima! – Felix passou o braço em volta dos ombros dela e a puxando indiscretamente para fora do quarto. – Só atrasada como sempre.
Ele praticamente arrastou Delphine até a sala e a sentou no sofá, para depois ocupar uma poltrona.
– Mas então – ele começou. – Como foi lá na Krystal?
A loira estava achando aquilo tudo muito estranho, mas mudou de foco com a pergunta dele.
– Tudo bem – ela disse analisando as unhas que haviam sido pintadas com um esmalte vermelho vivo, contrastando com o branco de sua pele. – Você tinha razão, ela é realmente muito boa.
– E ela falou muito na sua cabeça?
– Bom... – Delphine falou rindo. – Eu acho que a Alison também tinha sua parcela de razão.
Ele também riu com o comentário dela.
– A Krystal é meio doidinha, mas no fundo é uma pessoa incrível. Tem um coração enorme – Felix acrescentou.
Antes que ela tivesse a oportunidade de responder alguma coisa, Cosima entrou apressada na sala.
– Hey – ela disse parando perto do sofá onde Delphine estava. – Já estou pronta.
– Cosima – Delphine falou se virando para ela. – Você está se sentindo bem?
– Claro. Melhor impossível – disse a morena com um sorriso de lábios fechados e completamente suspeito nos lábios.
– Eu vou chamar um Uber pra vocês – disse Felix pegando o celular.
– Espera – Delphine falou desviando o olhar de Cosima e voltando a atenção para ele. – Eu pensei que você também fosse.
– Ah, mas eu vou. A Alison me fez ficar ajudando ela até agora a pouco. Só vim pra casa tomar um banho, me arrumar e... – a loira podia jurar que ele tinha se segurado para não falar mais alguma coisa. – ... e depois encontro vocês lá.
Delphine se demorou observando os dois com os olhos semicerrados. Definitivamente eles eram cumplices em algo e estavam escondendo dela.
– Vocês têm 3 minutos – ele anunciou. – É um carro prata e o motorista se chama Ramon.
– Valeu Fe – disse Cosima ajeitando a bolsa no ombro. – Vamos?
Sem mais esperar, a morena se dirigiu para a porta de saída.
Delphine notou que ela estava estranha; não estava agindo naturalmente e tinha alguma coisa no seu andar... Oscilante, incómodo talvez.
O que você está aprontando, Niehaus?
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