Imprevistos
– Merda.
– Ok, fica calma – Delphine disse se erguendo do chão. – Continua dentro da água mais um pouco, isso pode ajudar a conter o sangramento.
Ela puxou a toalha que estava dobrada e a colocou sobre os ombros de Cosima em uma tentativa quase tola de deixá-la com menos frio. A cada fração de minuto que passava, água da banheira ia ficando mais vermelha à medida que os lábios da morena perdiam mais e mais a cor.
– Cosima, você está se sentindo bem? – perguntou Delphine abrindo a gaveta do armário da pia para pegar um absorvente. – Está sentindo dor?
– Não, eu não estou sentindo nada.
– Isso já aconteceu outras vezes?
– Não.
– Nem em pequenas quantidades? Talvez manchas no papel higiénico...?
– Não, Delphine, nada. Minha recuperação tem sido excelente.
Vendo que o sangramento não parecia estar diminuindo, a loira achou por bem não prolongar mais aquela espera.
– Vem cá, deixa eu te ajudar a sair daí.
Cosima passou as pernas por cima da beirada da banheira e ficou de pé no chão branco do banheiro. Não demorou para que a água escorresse por sua pele e formasse uma poça avermelhada aos seus pés. Delphine a ajudou a se secar, para na sequência vestir a calcinha e deslizar para dentro de um roupão.
– É melhor a gente ir para o hospital – Delphine tirou o tampão da banheira enquanto Cosima fixava um absorvente. – Esse tipo de sangramento pode ser normal, mas não custa nada a gente tirar a dúvida.
Cosima foi para o quarto pegar outra roupa, já que a que ela havia separado não seria adequada para sair de casa. Delphine seguiu seus passos e também foi se trocar. Poucos minutos mais tarde, as duas estavam dentro do elevador descendo em direção a garagem do prédio.
Dentro do carro, fazendo o pequeno trajeto até o pronto-socorro, a troca de palavras entre elas havia se esgotado. O clima daquela noite havia mudado de maneira drástica e parecia estar carregeando o ar no interior do veículo.
Logo que entraram no hospital, Cosima foi para o banheiro conferir se o sangramento persistia enquanto Delphine fazia sua ficha junto ao balcão da recepção. O movimento estava fraco naquele horário e devido ao seu quadro pós-cirúrgico, a morena não tardou em ser transferida para sala de observação.
– Eu acho que a hemorragia parou – ela disse ao se sentar na maca para aguardar atendimento.
– Ótimo – falou Delphine tentando sorrir de modo encorajador. – Isso é um bom sinal.
– Não era assim que eu estava imaginando essa noite. – Cosima abaixou a cabeça e encarou os pés que pendiam há dois palmos do chão. – Não de volta ao hospital.
– Cosima... – Delphine colocou a mão sobre dela, e teria prosseguido se não tivessem sido interrompidas pela chegada de alguém.
– Boa noite. – A mulher também de cabelos loiros e com um sorriso simpático no rosto atraiu a atenção de ambas ao se aproximar. – Srta. Niehaus, eu sou a Dra. Robbins e vou cuidar de você essa noite.
– Tudo bem.
– Me diga, o que está acontecendo?
– Bom, semana passada eu fiz uma laparoscopia para retirada de um cisto – respondeu Cosima. – ... só que meio da cirurgia os médicos viram que também ia ser preciso tirar meu ovário. Enfim, tudo estava indo bem, mas agora a pouco eu fui tomar banho e acabei tendo uma hemorragia.
– Qual foi a intensidade do sangramento? – Dra. Robbins questionou.
– Intensa.
– Sangue vermelho vivo ou escurecido?
– Vermelho vivo.
– E persistiu?
– Eu fui no banheiro assim que cheguei no hospital e já tinha parado.
– Certo. Você está ou teve febre nas últimas horas?
– Não, nem hoje nem nos dias anteriores.
– Essa foi a primeira vez que isso aconteceu?
– Isso mesmo.
– Ok – a médica disse digitando alguma coisa no tablet que trazia em mãos. – Bom, a princípio nós não precisamos nos preocupar, isso pode ter sido apenas uma descarga de fluídos que restou da cirurgia. Mas eu vou te pedir um exame de sangue e vamos fazer um ultrassom para ver se os cortes internos estão todos em ordem.
– Tudo bem.
– Peço que aguardem aqui, por favor, a enfermeira já vem fazer a coleta.
A médica vez menção de se virar para deixar a sala, mas então Cosima a interrompeu.
– Dra. Robbins, na verdade tem mais uma coisa. – Ela se deteve por um instante e olhou para Delphine, como se buscasse apoio antes de prosseguir. – O cisto... era na verdade um tumor maligno. Carcinoma Epitelial.
O rosto da médica adquiriu uma expressão bem mais preocupada depois de ouvir aquela informação.
– Entendo. – Ela voltou a olhar para o tablet. – Nesse caso, acho que será melhor associar uma histeroscopia ao ultrassom.
– Dra. Robbins – disse Delphine. – Será que eu posso ficar com ela na sala durante o procedimento?
A doutora observou as duas, não podendo deixar de notar a proximidade que elas tinham. Então, com um sorriso discreto nos lábios, falou:
– Claro. Não vejo porque não.
– Obrigada.
Pouco tempo se passou até uma enfermeira chegar preparada para tirar o sangue de Cosima. Enquanto ajustava o garrote, Delphine espiou por cima de seu ombro para tentar ler a ficha que ela havia trago consigo. Os exames de sangue eram exatamente o que ela mesma teria prescrito, além é claro, do encaminhamento para histeroscopia.
Após as amostras terem sido colhidas, as duas foram levadas até a sala onde seria realizado o próximo exame. Cosima foi se trocar no banheiro enquanto Delphine foi orientada a se preparar dentro da sala. Por se tratar de um procedimento um pouco mais complexo do que um mero ultrassom, ela precisou vestir um avental, touca cirúrgica e esterilizar bem as mãos. Dra. Robbins já estava aguardado e havia separado uma banqueta para que ela se sentasse ao lado da maca.
Quando Cosima voltou, Delphine a ajudou a se acomodar. Dessa vez, o monitor havia sido deixado diretamente de frente a ela, o que lhe daria uma boa vista das imagens durante todo o procedimento. A médica derramou o lubrificante no espéculo e o introduziu na morena. Seu desconforto foi perceptível, fazendo Delphine se aproximar mais dela e a tocar na região dos pontos da cirurgia.
– Está sentindo dor?
Cosima apenas acenou que não com a cabeça, contradizendo a linha d'água que começou a crescer sobre seus olhos. Compadecida de sua situação, Delphine tomou a mão dela na sua e deixou um beijo em sua palma.
– Sentiu isso? – a loira perguntou sorrindo. Nesse ponto a médica já estava ligando a câmera do aparelho.
– Um pouco – Cosima respondeu se esforçando para corresponder ao sorriso.
Delphine, ainda segurando sua mão, se inclinou sobre ela e beijou de leve seus lábios.
– E isso?
Cosima não respondeu com palavras; apenas deixou o rosto inclinado de lado e olhou fundo nos olhos dela.
– Podemos começar? – perguntou a Dra. Robbins.
– Ok – a morena disse se virando a cabeça e acenado para a médica. Uma lágrima solitária escorreu em sua bochecha quando ela piscou o olho.
Delphine enxugou o rosto de Cosima com o polegar, sem saber ao certo o que fazer para que ela se sentisse melhor.
– A histeroscopia é um tipo de endoscopia – explicou a francesa tentando apelar para seu lado técnico. – Uma fibra ótica bem fininha entra pelo colo do útero e permite que a gente tenha uma boa visão de toda cavidade uterina. – Enquanto ela falava, a micro câmera transpassava a abertura do cérvix. – Desse jeito nós vamos poder ver o que te causou aquele sangramento.
Até então Delphine não tinha desviado o olhar do rosto de Cosima, mas quando finalmente o fez – agora focando na tela onde eram exibidas as imagens do exame – suas palavras pareceram fugir.
– Isso são... – gaguejou Cosima.
– São pólipos – completou a médica. – Eles não apareceram nos seus exames pré-operatórios, não é?
– Não.
– Foi o que eu imaginei, estão muito pequenos para sair no ultrassom. Mas apesar do tamanho, são vários.
– Foi por causa disso que eu tive a hemorragia?
– Não posso te afirmar com certeza absoluta, mas é muito provável que sim.
– Doutora, esses pólipos... – Cosima começou. Estava curiosa, mas ao mesmo incerta se realmente queria saber a resposta. – Isso é o câncer que já se espalhou?
– Seria irresponsável da minha parte te responder isso. Meu papel é de plantonista, compete a mim cuidar de tudo aquilo que for uma urgência ou emergência, e não é isso o que temos aqui – ela respondeu começando a finalizar o procedimento. – A princípio isso não deve te causar grandes problemas, no máximo outras hemorragias pontuais como a que teve. No entanto recomendo que você não demore em procurar o seu médico. Tendo em vista o seu diagnóstico, é melhor que esse quadro seja melhor investigado o quanto antes.
Cosima, involuntariamente, apertou a mão de Delphine com mais força.
– Se for o câncer – Cosima insistiu. – Eu vou ter que tirar o útero também, não vou?
A médica terminou de retirar as luvas e se virou para ela.
– Sim. Nessas situações o mais recomendável é a histerectomia total. Eu sinto muito.
Mesmo ciente de qual deveria ser a causa do sangramento, Cosima precisou aguardar no hospital até receber os resultados dos exames laboratoriais. Dra. Robbins não quis liberá-la antes de ter certeza de que a hemorragia não havia sido suficiente para alterar algum dos componentes do sangue.
Na manhã seguinte, ela acordou sem encontrar a namorada ao seu lado na cama, embora conseguisse ouvir um assobio melódico que vinha da cozinha. A morena se levantou, e contrariando o óbvio, estava se sentindo até mesmo confiante para os desafios do novo dia. A médica plantonista não opôs a alta parcial que ela havia recebido, desde que estivesse se sentido bem. No entanto, ficar enfurnada em casa por outro dia inteiro é que a faria se sentir mal.
Logo que se aproximou da cozinha, Delphine notou sua presença e lhe lançou um olhar por cima do ombro.
– Bonjour, mon amour! – falou sorrindo enquanto despejava os ovos mexidos em dois pratos. – Como está se sentindo?
– Melhor impossível – Cosima respondeu bocejando ainda que não estivesse sendo irônica.
– Ótimo – a loira falou rindo enquanto colocava os pratos sobre a mesa. – Pode se sentar, o café já está saindo.
Elas comeram conversando em um clima bastante agradável, – tão agradável quanto nos velhos tempos – e toda aquela casualidade funcionava como uma injeção de ânimo para Cosima. Era exatamente daquela naturalidade que ela iria precisar para conseguir suportar o que a esperava. Estava quase terminando de comer quando Delphine mudou o rumo da conversa.
– Cosima, desde que nós voltamos do hospital ontem eu estive pensando... – ela falou tentando manter o ar de despretensão na voz. – Você já considerou a hipótese de preservar os seus óvulos?
A morena não estava esperando por aquilo e isso ficou claro no arregalar de seus olhos. O susto talvez tivesse sido mais bem disfarçado se ela não tivesse acabando de engolir a última garfada do seu café da manhã, que certamente acabou pegando uma rota não convencional e lhe causo uma tosse descontrolada e nada sutil.
– Cosima, tá tudo bem? – perguntou Delphine fazendo menção de se levantar para ajudá-la.
Cosima acenou com a mão para que ela ficasse tranquila e deu um gole no café com leite em sua xícara. Quando finalmente conseguiu se recompor, Delphine continuou.
– Calma, Cosima, eu não estou dizendo "Hey, vamos ter filhos?" – a francesa tentou se explicar. – Mas se você realmente for precisar fazer a histerectomia, talvez seja algo em que você devesse pensar.
A morena fez uma pausa, apreensiva tentando evitar o olhar da namorada.
– Não sei Del... Não acho que eu seja muito maternal.
– É claro que isso é uma decisão sua, mas ainda que você não pense em ter filhos agora, talvez a sua cabeça mude nos próximos anos. E mesmo considerando a melhor das hipóteses, em que você não precise fazer a histectomia total, não é possível prever como o tratamento vai afetar a sua fertilidade.
Cosima ficou pensativa, encarando o fundo sujo de sua xícara agora vazia.
– Ok – ela disse por fim. – Prometo que vou pensar nesse assunto.
– Ótimo! – disse Delphine já se levantando da cadeira e começando a tirar mesa do desjejum. – Agora me diz, está pronta para voltar ao trabalho?
– Wow, mais pronta impossível! Eu vou enlouquecer se eu ficar mais um dia longe do laboratório!
O tempo do percurso de casa-campus feito de carro era irrisório. Cerca de cinco minutos se passaram desde que Delphine dirigiu através dos portões da garagem de seu prédio até estacionar na vaga mais próxima que encontrou do edifício onde Cosima tinha sua sala. Foi como um presente para a francesa ver o brilho nos olhos namorada se acender quando entraram no laboratório. Até mesmo a postura e atitude dela pareceram recobrar seu antigo vigor.
– Delphine você não precisa ficar me vigiando por uma hora inteira – falou a morena terminando de colocar as luvas.
– Talvez eu não precise mesmo, mas eu quero. Vai ser um prazer te fazer companhia junto com todos esses roedores – ela disse cruzando os braços e se encostando na parede.
Cosima a olhou com a cabeça inclinada de lado.
– Você não tinha que começar o trabalho com o Dyad hoje?
– Eu tenho. Mas isso pode esperar mais um pouco. Até porque o Dr. Nealon nem me passou a lista de pacientes ainda.
– Sério, isso não faz sentido nenhum. Você tem um monte de coisas pra fazer e eu não preciso de uma babá – Cosima falou tentando tirar uma das gaiolas de cima de uma das prateleiras.
– Ei, o que você pensa que está fazendo? – Delphine se adiantou e tirou a coisa das mãos dela – Já se esqueceu que ainda não pode pegar peso?
– Tá bom, tá bom... – Ela se afastou da bancada. – Mas se quer mesmo ficar aqui, então vai me ajudar com o trabalho sujo. Pode fazer o favor de se vestir direito. Eu tenho um jaleco extra embaixo da bancada que você pode usar, mas provavelmente as mangas vão ficar um pouco curtas.
– Sim, senhora – a loira respondeu sorrindo, satisfeita em ter sua permissão para ajudá-la.
Talvez fosse apenas a percepção de Cosima distorcendo a realidade, mas para ela o tempo pareci estar voando. Contudo, não podia negar que estava sendo uma manhã produtiva, mas isso com toda certeza era mérito de sua excelente assistente. As gaiolas haviam sido limpas, os animais alimentados e ela pode até mesmo dar os primeiros passos na retomada do experimento. Estava terminando de etiquetar algumas amostras, quando as duas foram surpreendidas pelo bip da tranca eletrônica do laboratório que revelou a chegada de alguém.
– Ah, me desculpe – disse Scott parecendo ao mesmo tempo assustado e confuso com a presença das duas. – Eu não sabia que vocês estavam aqui...
– Relaxa, Scotty – falou Cosima se levantando da banqueta. – Eu devia ter te avisado que ia voltar ao trabalho hoje, mas acabei deixando passar... Foi mal.
– Porque não me deu mais notícias? – ele perguntou se aproximando dela e a abraçando. – Eu fiquei preocupado depois que você me disse que ia precisar fazer repouso por mais alguns dias. O que aconteceu?
– Eh, então... quanto a isso... – Cosima gaguejou com uma mão apoiada na cintura e a outra inquieta esfregando na nuca.
– Foi alguma complicação da cirurgia?
Delphine olhou no relógio e o tempo que Cosima havia sido liberada para ficar no laboratório estava quase chegando ao limite. Com isso em mente, ela achou por bem terminar a coleta de sangue que estava fazendo e retornar o camundongo que segurava para a gaiola.
– É melhor eu deixar vocês dois conversarem a sós – Delphine disse se levantando para pegar o saco com o lixo que a havia sido recolhido três quartos de hora antes. – Vou levar isso pra fora, mas quando eu voltar nós vamos precisar ir embora, Cosima.
– Ok. Eu vou ajeitar tudo por aqui.
Delphine andava pelos corredores carregando o saco preto, mas seus pensamentos permaneciam dentro do laboratório com Cosima. Se perguntava se não deveria ter ficado lá e dado o apoio de que ela precisava. Por mais que intencionassem evitar aquela questão o máximo possível e levar a vida que sempre tiveram, ela tinha consciência de que aqueles momentos de "saída do armário" em relação à doença ainda iriam se repetir várias vezes nas semanas seguintes.
Depois de deixar os resíduos no local apropriado para serem encaminhados para incineração, quando estava no caminho de volta ao laboratório, a francesa ouviu a notificação do celular.
"Bom dia.
As cobaias do experimento foram selecionadas e aguardam seu contato. Venha até minha sala o quanto antes para pegar os nomes, prontuários e receber as instruções de como prosseguir.
Att,
Dr. Alan Nealon."
Delphine não pode deixar de estranhar a velocidade com que obteve aquela resposta. Não faziam nem 24 horas desde que ela havia assinado o contrato. Aliás, pensou que seria o próprio Dyad que entraria em contato com ela, não seu professor.
O instituto tem muita influência, ela pensou tentando achar uma explicação lógica para aquilo. Eles têm muita gente trabalhando nisso e não deve ter sido difícil selecionar os melhores candidatos a receber o tratamento...
Tentando deixar as suspeitas de lado, ela parou em frente ao laboratório de Cosima, incerta se deveria dar um pouco mais de tempo para que os dois conversassem. Entretanto, ficar plantada no meio do corredor estava a fazendo se sentir bastante tola e deslocada, então ela encostou seu crachá no leitor que ficava ao lado da maçaneta e destrancou a porta.
Assim que entrou, encontrou Scott terminando de ajudar a morena a organizar as gaiolas. Se ela não soubesse, jamais imaginaria que os amigos tiveram uma conversa delicada a poucos instantes.
– Hey, você demorou – falou Cosima se virando para ela. – Nós podemos ir embora, está tudo pronto.
– Eu vou sentir falta de você, pessoal – falou Scott debruçado sobre o balcão se despedindo dos animais.
– Olha só... Não foi você mesmo quem me disse que eu não devia me apegar a eles?
– Sim, – o rapaz respondeu – mas isso porque eles são sua responsabilidade. Eu posso me divertir com eles que no final o trabalho sujo ainda vai ser seu.
Cosima abriu a boca para responder, mas se deu conta de que contra fatos não há argumentos.
Delphine gostava de vê-los juntos. A amizade da morena com Scott era bem diferente da que ela tinha com Felix, mas não deixava de ser menos admirável por isso. Por mais que preferisse deixá-lo à vontade por perceber o quanto aquela interação fazia bem a Cosima, elas já tinham estourado seu horário e ela realmente precisava voltar para o repouso.
– Eu odeio ter que interromper vocês, mas você precisa mesmo ir para casa, Cosima.
– Claro.
– Você vai continuar na faculdade, Scott? – perguntou Delphine.
– Sim, eu tenho um horário marcado com o Dr. Leekie daqui a pouco.
– Hmm, é uma pena, a Del poderia te dar uma carona – disse Cosima caminhando até a francesa e segurando o braço dela. – Sabia que ela alugou um carro só pra me levar nos lugares enquanto eu não tenho alta?
– É mesmo? – ele soltou enquanto os três saíam da sala.
– Uhum. Me mimando desse jeito eu vou começar a achar que ficar doente nem é tão ruim assim.
Delphine sentiu uma pontada no peito ao ouvir aquilo, mas deu seu melhor para sorrir e não deixar transparecer.
Pelo menos ela está levando a situação com bom humor...
– Depois dá uma passada lá em casa, Scott – disse a loira enquanto caminhavam.
– Vou sim. Eu preciso mesmo visitar minha avó.
– Falando na Sra. Smith, como ela está? Já fazem dias que eu não a vejo.
– Não muito bem. Ela precisou trocar de remédio e agora anda tendo picos de pressão alta.
– E você estão acompanhando de perto? – Delphine perguntou preocupada.
– Sim. Ela é teimosa, diz que eu não preciso me preocupar, que ela é forte, mas mesmo assim eu tenho ido aferir a pressão dela todos os dias de manhã e à noite.
O três pararam onde seus caminhos se separavam e o moço foi se afastando aos poucos.
– Bom, eu tenho que ir, o Leekie deve estar me esperando. Cosima, se precisar de alguma coisa, já sabe né?
– Sim, obrigada – ela disse. – Mande um beijo pro Leekie por mim.
Ela falou séria, o que deixou o rapaz ligeiramente confuso. Delphine deu um leve tapa no braço dela, o que desencadeou seus risos travessos.
– Tchau Scott!
As duas seguiram de braços dados para estacionamento e Delphine ajudou Cosima a entrar no carro mesmo ela insistindo que não precisava de nada daquilo.
– Cosima, eu vou ter que te deixar em casa e voltar pro campus – a loira informou enquanto dava partida. – O Dr. Nealon me mandou um e-mail dizendo que os pacientes já foram selecionados para os testes.
– Sério? Assim tão rápido?
– Pois é, parece que eles estão com pressa de começar isso logo.
– E você vai pedir pra eles me colocarem no estudo, certo?
– Esse é o objetivo.
Delphine não precisou desviar a atenção do trânsito para perceber o quão Cosima estava ansiosa para ter aquela resposta. Não podia culpá-la, ela própria mal podia esperar para ter um parecer definitivo. Desejava que a aprovação de seu pedido viesse de forma tão rápida quanto a dos outros pacientes, para que quando Cosima tivesse sua primeira consulta com o oncologista no final daquela semana, a autorização dele fosse a última coisa faltando para dar início ao tratamento.
Os olhos de Delphine devoravam incansáveis o conteúdo da pilha de papéis que havia sido disposta a sua frente na mesa se seu professor. A quantidade de informações era aterradora, composta por toda sorte de prontuários, resultados de exames, relatórios médicos...
Não estava esperando que eu fosse ficar responsável por tanta gente, ela pensou, mal conseguindo contar a empolgação. De fato, o entusiasmo era tanto que ela quase deixou passar um detalhe fundamental.
– Ah, Dr. Nealon... – ela falou o olhando pela primeira vez em um intervalo de longos minutos. – Qual a razão de todas as pacientes serem mulheres?
– Como você deve ter sido informada, essa pesquisa não será conduzida unicamente pela senhorita.
– Sim, era uma das pautas principais do contrato.
– Pois bem – ele disse se recostando na cadeira e cruzando as pernas. – Faz parte do modus operandi do instituto agrupar as cobaias em conjuntos que carregam características semelhantes.
– E acharam mais pertinente separar por sexo do que por tipo de câncer...
Não era uma pergunta e, portanto, ela não teve resposta.
Então Delphine prosseguiu em sua análise das pacientes. Talvez por ter acabado de se deparar com uma categorização bastante questionável, o conteúdo das fichas que seguiram saltou aos olhos dela.
Crianças?
A francesa cogitou que pudesse ter sido algum erro de digitação no campo que determinava as idades e até chegou a conferir as datas de nascimento fazendo uma conta rápida de cabeça, mas as fotos 3x4 anexadas aos relatórios não deixavam dúvidas: eram duas garotinhas.
– Senhor, acho que houve algum engano. Essas duas pacientes... – Delphine falou passando os papéis para ele. – Charlotte Bowles e Aisha Yasin... elas realmente são minhas?
– Não, não há engano algum – Nealon respondeu olhando o material. – Esses documentos foram checados diversas vezes.
– Mas elas só têm seis e oito anos.
– Não entendo o porquê da surpresa. Infantes adoecendo com câncer não é o que se pode chamar de aberração.
– Com toda certeza, mas não me foi informado que eu conduziria testes em crianças. Não me sinto confortável com isso, ainda mais sendo uma pesquisa em fase tão inicial como essa!
– Ora, Srta. Cormier – disse ele esboçando um sorriso cínico nos lábios. – Acredito que como médica já deva estar acostumada a trabalhar em circunstâncias desconfortáveis.
Delphine ficou boquiaberta com a tamanha frieza com que ele tratou aquela questão, mas não podia permitir que seu estarrecimento durasse muito tempo. No instante seguinte, estendeu a mão para ele e recuperou as fichas das duas meninas.
– Claro, o senhor tem razão – ela murmurou contrariada.
A loira tentou organizar a papelada da forma que conseguiu para que pudesse transportá-la nos braços. Tentar acomodar os papéis na bolsa ou na pasta que trazia consigo era inútil, pois o volume era grande demais.
– Dr. Nealon, tem mais uma coisa que eu gostaria de tratar com o senhor antes de ir – Delphine falou pegando o envelope com o histórico médico de Cosima. – Seria possível fazer uma solicitação ao Dyad para incluir essa paciente no estudo?
– Acho muito improvável – disse ele olhando os primeiros exames da morena com desdém. – Eles são muitos rigorosos na seleção de suas cobaias, e até onde sei, essa etapa já foi concluída.
Dá pra parar de chamar essas pessoas de cobaias?!?
– Bom, é que como não é tão comum mulheres dessa idade terem câncer de ovário... podem ficar interressados no caso. – A paciente em questão teve o diagnóstico a poucos dias, nem chegou a se consultar com o oncologista, então eles não devem ter tomado conhecimento dela.
Conforme Nealon conferia os detalhes contidos naqueles documentos, seu desdém começou a dar uma brecha de espaço para a curiosidade.
– Como você descobriu esse caso? – ele perguntou olhando para ela por cima dos prontuários.
– Ah... me desculpe, acho que não entendi.
– O que essa moça... – Nealon procurou o nome dela nos papéis. – Cosima Niehaus... Qual a sua relação com ela?
Delphine engoliu em seco.
Merde! Pesquisas em que os pesquisadores se envolvem emocionalmente com seus pacientes são sempre encaradas com desconfiança...
– Ela é... uma amiga – ela cuspiu as palavras contra sua vontade. – Não chega a ser uma amiga íntima, na verdade, é mais uma conhecida. Ela me ajudou com algumas coisas quando eu cheguei no Canadá e esses dias a encontrei por acaso no supermercado. Foi quando ela me contou do recente diagnóstico, então pensei que talvez eu pudesse... Pudesse retribuir o favor. Mas é claro, eu vou entender se não for possível...
Aquele movimento foi arriscado, mas se ele suspeitasse de seu verdadeiro relacionamento com Cosima, tinha certeza que a morena não seria nem ao menos cogitada para receber o tratamento.
– Tudo bem – ele disse por fim, voltando os papéis para dentro do envelope e o guardando em uma das gavetas da mesa. – Vou ver o que eu posso fazer.
– Obrigada, senhor – Delphine respondeu se sentindo um pouco mais aliviada.
– Você tem mais alguma consideração a fazer?
– Não, era só isso.
– Ótimo. Sua reunião com o primeiro grupo foi marcada para essa tarde. Você deve recolher as assinaturas e dar início ao tratamento o quanto antes.
– Certo. E onde será essa reunião?
– No hospital escola. As 14:00hrs você deve ir até a recepção da ala oncológica e alguém te mostrará a sala onde você irá trabalhar a partir de agora.
– Ok – ela falou ajeitando suas coisas e se levantando da cadeira. – E mais uma vez, obrigada Dr. Nealon.
A única resposta que ela recebeu dele foi um ligeiro aceno com a cabeça. Ao passar pela porta a passos largos, Delphine sentia seu estômago revirar. Contudo se aquilo era pela expectativa de estar prestes a começar um trabalho que poderia mudar os rumos de sua carreira, por ter acabado de mentir sobre o lugar que Cosima realmente ocupava em sua vida ou ainda pela possibilidade de a namorada não ter a oportunidade de participar dos testes, isso ela não era capaz dizer.
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