Epílogo
*** Cinco anos depois ***
Os primeiros raios de sol já penetravam o para-brisa e nem isso foi o suficiente para conseguir despertar Cosima do sono que levava. Embora estivesse concentrada na estrada a sua frente, vez ou outra Delphine se permitia virar o rosto e conferir a namorada que dormia aconchegada no banco do passageiro. Ela só não tinha se decidido ainda se estava admirada ou não com isso.
Há quase 6 horas atrás quando entraram no carro, Cosima tinha dado sua palavra que dessa vez não iria dormiria a viajem toda e faria companhia para a loira durante o percurso. O que aconteceu de fato foi que elas mal haviam saído de Toronto quando a morena aos poucos diminuiu o ritmo de sua fala e na sequência Delphine foi capaz de perceber sua respiração dela ficando pesada e compassada, indicando que já não estava mais desperta.
– Siga em frente por mais 500m e pegue a primeira saída à direita – a voz do GPS saiu pelo sistema de som do carro chamando a atenção dela para a proximidade de seu destino.
– Cosima – Delphine chamou, sem receber resposta – Cosima! – ela insistiu, soltando uma mão do volante para tocar a morena no ombro.
– AHHH!! O que houve??? – Cosima acordou assustada, se atrapalhando toda com o cinto de segurança que a prendia no lugar.
– Nós chegamos – Delphine respondeu se divertindo com a reação dela.
Cosima ainda parecia um tanto confusa enquanto olhava através dos vidros do carro tentando se localizar.
– Montreal, claro – ela falou, se apressando em ajeitar os óculos que estavam completamente tortos no rosto – Acho que eu acabei pegando no sono...
– Você acha? – a francesa brincou.
– Desculpa, chérie – Cosima falou enquanto se espreguiçava.
Delphine mal podia acreditar que finalmente iria conseguir aproveitar um pouco do verão em Montreal. Os últimos anos tinham sido muito corridos e ela só tinha conseguido voltar para a cidade uma vez ou outra em temporadas de outono e inverno.
Tanto Delphine quanto Cosima uma vez acreditaram que quando a morena terminasse o tratamento para o câncer e que quando finalmente conseguissem expor tudo que descobriram sobre o Dyad a vida delas ficaria bem mais tranquila. Porém a vida real tratou de lhes entregar o exato oposto disso.
Nos primeiros meses depois de Delphine sair do hospital, Siobhan ficou bastante apreensiva, com medo de possíveis represarias por parte dos neolucionistas. Por conta disso, insistia para que as duas não deixassem a cidade e que se mantivessem ao alcance de sua rede de apoio caso alguma coisa viesse a acontecer. Isso poderia até ter sido um conselho incómodo de ser seguido se Delphine não tivesse sido condenada a prestar 1 ano inteiro de serviços à comunidade ao assumir a culpa pela invasão das contas de virtuais Alan Nealon. Apesar de isso inviabilizar que ela fizesse viagem com duração maior do que um final de semana, certamente o trabalho como médica de família prestado em uma região mais carente da cidade, onde atendia sobretudo refugiados, acabou se mostrando algo muito mais construtivo do que de fato uma punição.
Em meio a isso, quando as duas já estavam plenamente recuperadas em termos de saúde, concordaram que seria um bom momento para retomarem seus estudos. No final de tudo, não só Delphine havia perdido seu orientador, mas também Cosima. Assim como Nealon, o Dr. Leekie teve suas atividades interrompidas por conduta que violava os princípios éticos da profissão. A francesa não conseguia conter o sorriso que se abria em seu rosto toda vez que se lembrava do dia em que Scott havia ligado para Cosima e elas ficaram sabendo que os dois docentes tinham sido levados algemados pela polícia no meio do expediente ao lado de outros dois professores da universidade associados à Neolution. Mesmo ainda sentindo algum desconforto na região onde o projétil havia lhe ferido, Delphine lamentou profundamente não poder estar presente e ver aquela cena com seus próprios olhos
No fim, serem obrigadas a trocar de orientador se mostrou um grande presente. Apesar de muito rígida e com cara de poucos amigos, a nova mentora que elas conseguiram era sem sombras de dúvida, uma mulher brilhante – e que mostrou um humor ácido bastante divertido depois de algumas semanas de convivência. Tendo em vista que a maior parte do trabalho que já havia feito foi basicamente perdido devido a necessidade que teve de interromper sua pesquisa antecipadamente, Cosima aproveitou a oportunidade para mudar completamente o foco de seus estudos e se uniu à Delphine no que foi um aperfeiçoamento do trabalho que a loira já tinha realizado até então. Tomando o que havia sido iniciado pelo Dyad como base, juntas elas deram prosseguimento ao desenvolvimento de um tratamento imunoterápico para o câncer, dessa vez sob controle de todos os processos e felizmente sem nenhum dos voluntários acabar perdendo a vida. Ao final de 2 anos e meio os resultados foram tão bons e inovadores que saíram da Universidade carregando não somente um título de doutorado como também uma patente muito disputada pela indústria farmacêutica.
Contrariando qualquer perspectiva de um pouco de descanso que elas pudessem ter após formadas, o universo parecia já ter reservado a maior oportunidade que as duas teriam para aplicar todo o conhecimento que conseguiram acumular em tantos anos de estudo e dedicação à ciência. Apesar de seus currículos já serem ricos o suficiente para que fossem disputadas para compor equipes de uma série de laboratório renomados, a mão de obra delas se fez mais necessária do que nunca quando um novo vírus respiratório se espalhou pelo mundo, deixando algumas centenas de milhares de mortos no intervalo de poucos meses e se tornando facilmente o pior surto infecioso da atualidade.
Foi um período de trabalho intenso e praticamente sem pausas para recarregar as energias, mas no final o resultado valeu cada hora de sono perdida. Quando a pandemia finalmente terminou – além de muita experiência conquistada – Delphine passou a ser ainda mais reconhecida no meio científico por ter liderado a equipe que desenvolveu a primeira vacina do mundo a ser comprovadamente eficaz contra o vírus.
Embora tenham sido tempos difíceis para toda a raça humana, a tragédia global também proporcionou à loira uma oportunidade catártica. Se aplicar a herança deixada pelo avô no financiamento de pesquisas que poderiam trazer algum benefício real para a humanidade não pudesse mitigar os estragos causados por ele no passado, pode pelo menos transmutar em algo mais digno um pouco de toda a sujeira que envolvia seu antecedente.
A pandemia eventualmente passou e a vida voltou ao normal, mas nem por isso a rotina delas se tornou menos agitada. Além se envolverem na produção de diversos artigos científicos, por um bom tempo as presenças de Delphine e Cosima passaram a ser muito requisitadas em uma série de congressos e eventos acadêmicos dentro e fora do país. Só agora haviam conseguido se afastar do trabalho o suficiente para ter algumas semanas de descanso merecido, e se tudo corresse como estava planejando, a francesa também conseguiria dar mais um passo importante em sua vida pessoal.
– Chegamos – Delphine disse ao estacionar na frente de uma charmosa casa de subúrbio com um jardim frontal bastante florido.
Elas descerraram do carro, Cosima agora já totalmente desperta e Delphine alongando seus membros na tentativa de aliviar um pouco da tensão de ter ficado na mesma posição por tanto tempo. No momento em que a loira fechou o porta malas depois de terem tirado suas bagagens lá de dentro, a porta da casa se abriu revelando uma senhora ainda de camisola, porém bastante empolgada.
– Vocês já estão aqui! Pensei que fosse demorar um pouco mais!
– Sabe como é... – Cosima que já estava mais perto da entrada, foi recepcionada por Manon com um abraço apertado. – Delphine tem o pé pesado.
– Você até poderia ter conferido o velocímetro se não tivesse dormido a viagem inteira, não é mesmo? – a loira rebateu em tom de provocação.
– Eu faço a mínima ideia do que você está falando, querida – Cosima falou, tornando impossível para Delphine conter a risada.
Ao subir os degraus até a varanda frontal, ela foi recebida pela mãe com um abraço igualmente apertado e um beijo estalado em cada uma das bochechas.
– Nós não paramos na estrada, maman – ela explicou. – Por isso acabamos chegando mais cedo do que o combinado.
– Isso é ótimo, chegaram a tempo de tomar o café da manhã comigo! – Manon falou já puxando a filha e a nora para dentro de casa – Vamos, eu tinha acabado de passar o café.
Mesmo depois do divórcio, Manon optou por não se afastar de se posto na empresa em que tinha sociedade com o ex-marido. No entanto, uma vez que decidiram expandir os negócios para o Québec, ela achou que seria uma boa oportunidade de trocar de ares em sua vida e resolveu se mudar definitivamente para Montreal. Embora tenha se tornado bastante traumática, a primeira impressão que ela teve da cidade havia sido muito positiva e poder estar um pouco mais próxima da filha seria algo muito bom. E Delphine não poderia negar, essa maior proximidade deu frutos.
Desde que tudo aconteceu, a loira se tornou tão próxima da mãe como nunca havia sido antes. Nas primeiras festividades de final de ano que passaram juntas em solo canadense, era visível que Manon ainda não se sentia totalmente confortável na presença de Cosima, especialmente quando havia alguma demonstração de afeto entre elas. Porém conforme o tempo foi passando, Manon teve a oportunidade de conhecer melhor a morena e perceber que ela muito mais do que apenas sua sexualidade, os caminhos pareceram se abrir. Por vezes Delphine ainda se pegava admirando o quanto a namorada e a mãe se davam bem; quando estavam juntas o assunto parecia nunca ter fim, sempre emendando um tópico no outro em conversas que a loira nem sempre conseguia acompanhar o ritmo. E naquele dia não foi nada diferente.
À mesa do café, Cosima falou sobre o quão cansativo havia sido a mudança delas, que embora já tivesse acontecido há 3 semanas, ainda restavam caixas a serem abertas e coisas fora do lugar. Depois que Felix ficou famoso graças a sua primeira mostra de arte – Galaxy of Women – e foi morar em Nova Iorque, as duas chegaram à conclusão que já não fazia mais o menor sentido que continuarem se dividindo entre duas casas, então Cosima se mudou definitivamente para o apartamento Delphine. Porém, com o tempo começaram a se sentir incomodadas pelo o espaço limitado e quando uma casa com um belo gramado localizada a apenas duas quadras do laboratório onde trabalhavam ficou desocupada, elas concordaram que aquela era a oportunidade perfeita.
Quando terminaram de comer, Manon as levou para conhecer sua mais recente aquisição: um belo piano de calda que agora ocupava um dos cantos da aconchegante sala de estar. Embora uma das principais razões de sua vinda para o Canadá ter sido ficar responsável pelos negócios da empresa em Montreal, ela vinha cada vez mais diminuindo o ritmo de trabalho e Delphine sentia que a mãe logo decidiria por se aposentar de vez. E agora com mais tempo livre, Manon podia se dedicar ao aprendizado daquele que sempre foi um instrumento muito admirado por ela.
É impressionante como o tempo passa depressa quando estamos ao lado daqueles que nos são queridos. As três se distraíram tanto, que quando foram se dar conta da hora já foi preciso voltar para cozinha novamente, desta vez para preparar o almoço. Se Cosima havia aprendido alguma coisa nos últimos anos, era que não devia se colocar no caminho entre Delphine e as panelas. Enquanto se encarregava de cuidar da louça que ia sendo suja, ela precisou reprimir o riso que tentava escapar ao ver a loira suando frio para não colocar defeito no trabalho da mãe, que provavelmente estava cortando os legumes em um ângulo errado ou temperado o risoto com 1mg de sal a mais do que devia.
Delphine sentia que ter passado quase toda a madrugada por trás do volante estava cobrando seu preço agora, então depois de terminarem de comer, ela pediu licença e foi se deixar um pouco; se não quisesse ter suas energias completamente esgotadas ao cair da noite, precisava de pelo menos um pouco de descanso.
Embora tenha se deitado com a intenção de tirar apenas um cochilo rápido, quando voltou a abrir os olhos, a francesa se surpreendeu em descobrir que já era quase fim de tarde. O quarto estava silencioso – e exceto pela mala que aguardava ser desfeita deixada ao lado da porta – não havia nenhum vestígio de Cosima por ali.
Ainda sem estar se sentindo completamente desperta, Delphine saiu para o corredor de acesso aos quartos em direção à escada. Enquanto descia preguiçosamente os degraus com os pés descalços, ela estranhou não estar ouvindo as vozes da mãe e da namorada vindo de lugar algum nas redondezas. Contudo, apesar de não encontrar ninguém na sala de estar e não notar nenhuma movimentação na cozinha, a porta de entrada havia sido deixada entreaberta, o que lhe deu uma pista de para onde deveria seguir.
As dobradiças perfeitamente lubrificadas permitiram que Delphine saísse para a varanda sem chamar a atenção de Cosima. A morena estava sentada em um dos últimos degraus com os pés apoiados na superfície pavimentada que dava acesso à casa. Seus olhos estavam fechados e um sorriso quase imperceptível lhe ocupava os lábios, o que pareceria ser um estado de pura contemplação à brisa fresca que lhe batia no rosto. Se esforçando para não a atrapalhar, Delphine se aproximou e se sentou silenciosamente ao lado dela.
– Boa tarde, bela adormecida – Cosima falou um instante antes de abrir os olhos.
– Acho que que agora estamos quites – Delphine falou em meio a um bocejo.
Cosima a olhou sorrindo. Passou o braço pelas costas da francesa para estão descansar a cabeça no ombro dela.
– Onde minha mãe foi? – Delphine perguntou.
– Saiu pra ir no mercado, disse que precisava ir comprar as coisas que você pediu pra ela – a morena respondeu – O que você está aprontando, Cormier?
– Não é nada demais – Delphine respondeu emaranhando nervosamente os dedos nos cabelos da namorada, que agora assumia um corte curto – Eu queria ter conseguido ingressos pra gente assistir ao show de fogos de artifício bem de perto, mas quando fechamos a data da viagem já estavam esgotados. Acho que vamos ter que nos contentar em ver à distância dessa vez.
– Hum, você tá falando daquela competição que acontece por aqui todos os anos no verão, certo? Confesso que sempre quis assistir presencialmente, mas nunca estive na cidade na época certa.
– Então você vai assistir hoje – Delphine falou, se sentindo satisfeita em saber que pelo menos a programação seria do agrado da morena.
Não muito tempo mais tarde, Manon estacionou na entrada para carros e a loira se adiantou para ajudá-la com as compras.
– Maman, não acredito que você tinha se esquecido! – Delphine repreendeu, tomando cuidado em manter a voz baixa para que Cosima não a ouvisse.
– Mas é claro que não, chérie – Manon respondeu, se fazendo de desentendida – Eu só queria que as frutas tivessem bem frescas pra vocês duas.
– Você sabe muito bem do que eu estou falando.
– Já está comigo desde ontem de manhã – a mais velha falou ao fechar o porta malas com uma mão à medida que a outra estava ocupada por sacolas – Não confia mais na sua mãe?
Com isso Delphine pode sorrir aliviada e elas voltavam para dentro de casa.
***
Enquanto Cosima terminava de tomar banho, Delphine abria as escondidas o pacotinho que a mãe lhe havia entregado pouco tempo antes. Fico feliz e satisfeita em constatar que a peça física não deixava nada a desejar se comparada com as fotos que a loja disponibilizava no site.
O objetivo da francesa nunca fora aquele, preferia ter efetuado a compra à moda antiga, fazendo o vendedor perder bastante tempo lhe apresentando as opções até que ela finalmente encontrasse a pedra que julgasse perfeita. Porém não queria dar a Cosima a chance de usar a mesma desculpa de anos antes, e para isso precisava cumprir uma outra etapa antes.
Delphine se sobressaltou quando percebeu o registro do chuveiro sendo fechado do outro lado da parede do quarto e se apressou para guardar o pequeno objeto dentro do bolso da frente do short e garantir que ele não cairia facilmente de lá. Antes que Cosima saísse do banheiro embrulhada apenas na toalha, a loira ainda teve tempo de tirar o envelope que tinha escondido dentro da bolsa e ocultá-lo por debaixo da blusa.
– Eu já estou atrasada? – Cosima perguntou indo até as peças de roupa que havia deixado separada em cima da cama.
– Quase – Delphine respondeu ainda de costas para ela, dando uma última conferida se o tecido fino da blusa não estava sendo marcado pelas pontas do papel – Eu vou lá embaixo terminar de ajeitar as coisas, ok?
– Ok, mais cinco minutos e eu desço também.
Então a francesa saiu do quarto se sentindo bastante aliviada por Cosima não ter notado sua atitude suspeita. Já vinha planejando aquilo há algumas semanas, e agora que estava tão próximo de acontecer, não queria acabar estragando a surpresa.
Ainda no corredor, Delphine pode ouvir a campainha tocar uma vez, e depois de ter descido os primeiros degraus da escada, ela se deparou com uma cena que lhe foi absolutamente inesperada. Manon estava atendendo a porta e Delphine paralisou ao ver a recém chegada – uma mulher de cabelos tingidos de vermelho – que ao entrar na residência deixou um breve beijo nos lábios de sua mãe. A princípio as duas pareceram não notar a presença dela ali conversando em voz baixa, até que um instante depois a visitante olhou em sua direção.
– Oh la la! – a mulher exclamou – Je suis desolé... – falou se dirigindo à Manon – ... eu não sabia que ela já estava aqui.
Quando Manon se virou para a escada, a filha percebeu que o rosto dela havia ficado vermelho instantaneamente. Uma vez que seu anonimato se desfez, Delphine tentou continuar a descer os degraus como se não tivesse visto nada.
– Oui – Manon falou, visivelmente constrangida – Marcelle, c'est ma fille, Delphine. E Delphine... Marcelle é quem vem me dando aulas de piano.
– Enchanté – a loira disse ao se aproximar da mulher.
– Enchanté Delphine – Marcelle retribuiu sorrindo cordialmente – Sua mãe tem muito orgulho de você, sabe? Tenho certeza que você é uma grande fonte de inspiração para ela.
– É eu acho que sim – Delphine falou também sentindo o rosto corar.
– Ah... Onde está Cosima? – Manon disse tentando mudar o rumo da conversa, talvez para que pudesse se sentir um pouco mais confortável.
– Ela já deve estar descendo – a loira respondeu – E por falar nisso, excuse moi Marcelle, mas eu preciso ir na cozinha terminar de ajeitar algumas coisas.
– Claro, fique à vontade.
Ao adentrar a cozinha, Delphine se forçou não se prender demais na cena que havia acabado de presenciar. Poderia fazer aquilo mais tarde, agora tinha algo um pouco mais urgente para fazer.
Parando de frente à ilha, ela notou que Manon já tinha feito praticamente tudo por ela. A cesta de vime já havia sido abastecida com pequenos contêineres de frutas e os sanduíches que Delphine havia preparado logo depois que a mãe chegou do mercado. Agora só estava faltando acomodar a garrafa de vinho e o par taças.
Porém, na contramão do que seria mais óbvio, a loira rapidamente começou a tirar as coisas de lá de dentro. Deixando o cesto novamente vazio, ela tirou o envelope de debaixo da blusa e então depois de conferir se não tinha ficado amassado, o ajeitou no fundo da cesta para voltar a guardar o que havia tirado de seu interior. Ela já estava acomodando a tradicional toalha xadrez de piquenique por cima da tampa fechada, quando ouviu a voz de Cosima vindo lá da sala.
Ao sair da cozinha, agora pronta para ir embora, Delphine se deparou com Cosima conversando com Marcelle enquanto sua mãe ainda parecia bastante constrangida ao lado delas. Sinceramente não conseguia entender o motivo de tal reação, mas já que era o caso, decidiu facilitar a vida de Manon. Mesmo que estivessem dentro do horário que ela havia planejado, a loira agiu como se estivesse bastante atrasada ao se despedir das duas, coisa que certamente chamou a atenção de Cosima.
Tendo a cesta sido devidamente acomodada no banco de trás do carro e já estando com a mão apoiada no volante prestes a dar partida, Delphine não se surpreendeu quando ao lado dela, a morena quebrou o silêncio no banco do passageiro.
– Você vai me contar o que está acontecendo ou eu vou mesmo ter que te perguntar? – Cosima falou ajeitando os óculos sobre nariz.
A loira a olhou de relance com o lábio inferior entre os dentre e suspirou antes de responder.
– Sabe a Marcelle?
– A professora de piano da sua mãe?
– Bom... – Delphine disse, passando a mão pelos cabelos – Talvez...
– O que tem ela? – Cosima perguntou, sem entender o que a namorada quis dizer com 'talvez'.
– Eu vi quando ela chegou e... meio que beijou a minha mãe.
– Beijou, tipo, um beijo... beijo?
– Oui. Não foi um dos grandes, mas definitivamente foi um beijo.
Ouvindo isso Cosima não conseguiu se conter e acabou caindo na risada.
– Cara, eu adoro a sua mãe! – ela disse divertida, porém sinceramente – Tô começando a achar que mais francesas deveriam vir para o Canadá. Pelo jeito o mundo se tornaria um lugar um pouco mais colorido.
– Só não consigo entender por que ela não me disse antes – disse Delphine – Se fosse um dos meus irmãos, ainda vai, mas logo eu?
– Ah Delphine, por favor né! Até parece que você já não passou por isso antes! – Cosima repreendeu – Só porque ela é a sua mãe não significa que ela não vai precisar de um tempo pra se entender. Além do mais, talvez o que você viu não seja nada do que você está pensando.
– Cosima, eu sei muito bem o que eu vi.
– O que eu quero dizer é que a Marcelle não pareceu incomodada quando a Manon apresentou ela só como uma professora. Tipo, talvez o lance delas não passe só de uma amizade com alguns privilégios... Ela pode não ter te falado simplesmente porque não é importante.
Com os olhos fixos na rua na sua frente, Delphine se manteve em silêncio por um instante.
– É, talvez você tenha razão... – ela acabou por concluir.
– Eu sempre tenho razão – Cosima disse convencida.
– Não mesmo, é o Felix que sempre tem razão – a loira pontuou rindo – Vamos ver o que ele acha disso depois.
No fundo o que mais incomodou Delphine não era descobrir que talvez a mãe estivesse se relacionando com alguém, mas por ela não ter falado nada sobre suas... mais recentes explorações. No entanto Cosima estava certa; se ela ainda não estivesse pronta para falar sobre isso, então a loira daria o espaço de que ela precisava. Aquilo provavelmente estava sendo apenas uma amostra grátis do que Manon sentiu anos atrás quando a filha lhe contou sobre o relacionamento com Cosima.
***
Ao se aproximar do local do evento, Delphine fez questão de parar o carro há pelo menos um quilometro de distância de onde iria ocorrer a queima de fogos. Ela ouviu dizer que a região ficava bastante movimentada e apesar do show pirotécnico ser algo que ela gostaria muito de ver, naquela noite em específico ela preferia ter uma dose extra de privacidade.
Caminhando às margens do Rio Saint-Laurent, não foi difícil para elas encontrarem um bom pedaço de gramado onde puderam se instalar. Delphine não se importou quando Cosima escolheu estender a toalha à apenas alguns metros de distância de um pequeno grupo que parecia se divertir na companhia de um violão. Depois de morar com a morena por tantos anos, o cheiro da maconha que vinha com o vento na direção delas nem chegou a ser um problema.
J'aurai cent ans / Eu terei cem anos
Toi un peu moins / Você um pouco menos
Je m'allongerai au chaud / Vou me deitar no calor
Dans le creux de tes cernes / No vazio das tuas olheiras
Comme un retour au berceau / Como um retorno ao berço
Comme pour mon dernier repos / Como o meu último descanso
– Non – a loira disse ao ver Cosima abrir a cesta para começar a se servir do que haviam trago – Pode deixar, eu cuido disso.
– Delphine, eu entendo que sou um desastre na cozinha, mas acho que dou conta de pegar alguma coisa que já está pronta pra comer...
– Eu sei que você dá conta. Mas agora eu prefiro que você admire o pôr-do-sol que já está quase no fim – a loira disse com um tom de voz baixo – Encare como uma gentileza.
Cosima não deixou de estranhar a atitude da namorada, mas o momento estava agradável demais para estragar com uma discussão desnecessária. E de fato, o céu aberto e avermelhado, com o sol quase sumindo no horizonte era uma paisagem que merecia ser admirada.
Je calmaterai l'hiver / Eu vou acalmar o inverno
De mon rire le plus doux / Com a minha risada mais doce
Je compterai tes rides / Vou contar suas rugas
Aux commissures des paupières / Nos cantos das pálpebras
Je relirai tes rides / Vou reler nas suas rugas
Autant de souvenirs que ne sont qu'à nous / Tantas mémorias que são só nossas
Même si tu les oublies / Mesmo se você as esquecer
– Eu encontrei o Dr. Duncan essa semana – Delphine comentou enquanto tirava as taças de dentro da cesta que agora já havia sido praticamente esvaziada.
– Sério? – Cosima perguntou após morder um morango surpreendentemente doce – Onde?
– No hospital, quando eu fui buscar os prontuários dos pacientes da Dra. Torres pra nossa pesquisa.
– E como ele está?
– Muito bem – a francesa falou rompendo o lacre da garrafa de vinho – Ele está se aposentando, essa é a última semana dele.
– Espera, como assim se aposentando? – Cosima disse bastante surpresa com a notícia – Eu precisava marcar minha consulta com ele quando voltasse de viagem! Pra ver os resultados dos meus exames e ele finalmente poder me dar alta!
– Acho que a gente pode improvisar? – Delphine sugeriu dando os ombros – Você pode passar com outro médico. Ou quem sabe com uma médica...
– Improvisar? – Cosima riu desconfiada – Quem é você e o que fez com a Delphine Cormier que eu conheço?
O sol já tinha se recolhido, porém a francesa julgou que o céu ainda conferia iluminação o suficiente para aquilo que ela precisava.
Depois de terminar a última canção, os amigos reunidos próximo a elas pareceram satisfeitos com o espetáculo que a natureza lhes havia conferido e começaram a arrumar suas coisas para irem embora. Não muito tempo depois as duas foram deixadas sozinhas.
– Aqui – Delphine sentiu a emoção começando a crescer dentre de si quando derramou um pouco de vinho dentro de uma taça e a estendeu para Cosima – Eu proponho um brinde.
– E ao que estamos brindando? – Cosima perguntou.
– À sua saúde.
Os olhos da morena brilharam quando suas taças se tocaram e ela falou o "santé" com aquele sotaque que tanto divertia a loira.
Enquanto terminava de saborear o último gole da bebida, Delphine chegou à conclusão de que já não tinha mais o que esperar. Mais uma vez ela se voltou para a cesta e tirou o envelope que ali havia escondido um pouco mais cedo naquele dia.
– Toma aqui – Delphine falou estendendo à Cosima o pequeno invólucro de papel branco.
– O que é isso? – a morena perguntou desconfiada, já tendo um ligeiro palpite a respeito do que poderia ser.
– Eu tinha ouvido que o Ethan estava pra se aposentar a algum tempo – Delphine explicou enquanto Cosima já rompia o lacre do envelope e retirava um par de folhas dobradas de lá de dentro – Comentei com ele que gostaria de te fazer uma surpresa; queria que esse fosse um momento especial pra você, então como seus resultados já estavam prontos ele concordou em... Bom, concordou em me fazer esse favorzinho.
Quando a loira terminou de falar os olhos de Cosima já estava devorando afoitos o conteúdo das palavras inscritos naquele singelo pedaço de papel. À medida que uma mão inconscientemente cobria a boca, os olhos dela foram ficando cada vez mais cheios de alegria e comoção, até que inesperadamente ela jogou o relatório de lado sobre a toalha e se lançou nos braços de Delphine.
– Agora você está livre, chérie – a loira disse, começando a sentir seu ombro ficando úmido enquanto abraçava Cosima com toda força e carinho que tinha.
Etapa 1: Cumprida, ela pensou consigo mesma.
– Obrigada – a morena murmurou com a voz abafada – Obrigada por tudo.
– Você não tem nada do que me agradecer.
Então elas se mantiveram daquela forma por mais algum tempo; era como se o mundo ao seu redor tivesse simplesmente desaparecido. Quando Cosima enfim conseguiu se recompor, se afastou um pouco a fim de sentar bem de frente a Delphine e tomou as mãos dela nas suas.
– Você se lembra daquela vez que você veio pra Montreal encontrar sua mãe? – ela falou um ligeiramente hesitante – Aquela vez em que você levou o tiro quando voltou pra Toronto?
– Sim... – Delphine disse franzindo o cenho – Por que você está falando disso agora?
– Eu quase morri naquele dia. Tive uma espécie de.... experiência de quase morte. Foi tão intenso que eu quase me deixei levar. Mas aí eu tive uma visão de você – Cosima fez uma breve pausa, sentindo a emoção crescer novamente e a garganta apertando antes de continuar com a voz embargada – Eu voltei por sua causa.
Em uma fração de segundo Delphine pode reviver toda angústia e medo da perda que havia vivenciado anos antes. O papel que comprovava que a morena estava bem e saudável jogado a poucos centímetros de onde elas estavam não foi o suficiente para impedir que voltasse a experimentar o desespero frente à mera possibilidade de ter perdido o grande amor de sua vida.
– Por que você nunca me disse antes? – ela indagou já sentindo seus olhos molhados.
– Porque você não acredita nessas coisas – Cosima falou desviando o olhar.
– Mas eu acredito em você.
Então Delphine se soltou das mãos da namorada apenas para que conseguisse segurá-la no rosto e puxá-la para um beijo.
Tudo está bem agora, ela repetia incessantemente em sua cabeça, tentando convencer seu coração ainda dolorido pelas lembranças de que o pior já tinha passado.
Talvez para atrapalhar aquele momento de cumplicidade, talvez para torná-lo ainda mais grandioso, o show de fogos teve início, fazendo com que elas afastassem seus lábios e voltassem o olhar para as luzes coloridas que agora decoravam o céu noturno de Montreal.
– C'est très beau – Delphine comentou, admirando o espetáculo.
Cosima apenas anuiu sem nada dizer, e continuou ali, com a face ligeiramente inclinada para cima. Não muito tempo depois, a loira pode perceber nela aquele olhar que havia aprendido a reconhecer ao longo do tempo; aquele olhar que indicava que naquele momento a Srta. Niehaus poderia estar vagando por qualquer lugar do universo, imersa em seus pensamentos.
Foi então que Delphine percebeu o quão ingênua ela fora ao pensar que poderia realmente contemplar os fogos de artifício enquanto não fizesse aquilo que era o verdadeiro motivo que a vez sair à sós com Cosima naquela noite. Tentando chamar a atenção dela sutilmente, Delphine apoiou a mão no pescoço da morena e pressionou levemente o polegar contra ela.
– A física é fascinante, você não acha? – Cosima a olhando brevemente antes de voltar a focar no show que acontecia no céu – Se você estiver suficientemente atenta, consegue reconhecer os fenômenos acontecendo de forma bastante simples. Agora, por exemplo; primeiro nós vemos as luzes aparecendo lá em cima, mas por conta da distância o som só chega até a gente três ou quatro segundos depois.
Delphine não pode deixar de sorrir ouvindo aquilo.
Muito romântico, Cosima...
Mas era a deixa perfeita, na verdade. Se sua memória não estivesse lhe pregando uma peça, dá última vez aquilo tinha começado de uma forma bastante similar.
– Cosima...?
– Sim? – ela respondeu, com as luzes coloridas refletindo em seus olhos brilhantes.
– Tem umas coisas que eu preciso te falar... – Delphine começou – A primeira delas é que o meu Ascendente em Capricórnio deve estar se contorcendo pra conseguir deixar meu orgulho de lado, porque eu já recebi um não antes e a minha Lua em Escorpião jura que não vai permitir minha Vênus em Câncer aceite outro. Então veja bem o que você vai me responder – ela se divertiu vendo como o rosto da namorada de repente havia assumido uma expressão confusa – Tá vendo? Acho que pelo menos algumas das minhas crenças mudaram bastante de uns tempos pra cá.
– Delphine... – Cosima interrompeu – Eu acho que realmente não estou entendendo onde você quer chegar...
– Há cinco anos atrás você me disse que queria ter certeza de que tudo estava bem antes de começar a fazer planos para o futuro. Bom, acho que nunca vamos estar mais certas disso do que agora – ela se esticou um pouco para alcançar o papel abandonado sobre a toalha que ameaçava ser levado com a brisa noturna – Eu sei que nós já temos uma vida juntas e eu não poderia estar sendo mais sincera quando digo que nunca fui tão feliz desse jeito em toda a minha existência. Mas eu realmente gostaria de dar o próximo passo na nossa relação. Quero poder ter o nome Niehaus na minha identidade; quero ter propriedade pra te chamar de minha esposa e quero ter uma aliança no meu dedo que comprove isso pra quem quiser ver. Eu simplesmente não consigo mais imaginar minha vida sem você. Quero que a gente fique velhinhas junto, fazendo ciência maluca mesmo depois que já estivermos aposentadas e com dor nas juntas. Então a pergunta que eu tenho pra te fazer é... – Delphine fez uma pausa apenas para que pudesse resgatar a aliança que havia guardado no bolso do short – Dra. Cosima Niehaus, você aceita se casar comigo?
Embora o anel ornamentado com um pequeno rubi estivesse bem ali entre elas, em momento algum Cosima desviou o olhar dos olhos de Delphine. O coração da loira estava prestes a pular para fora do peito e se aquele silêncio não fosse interrompido imediatamente ela sentia que poderia acabar endoidecendo.
Será que o barulho não deixou ela me ouvir? Merde, eu devia ter levado ela a outro lugar! E que ideia foi essa de trazer o anel fora da caixa?! É isso, ela não vai aceitar de novo...
Então alheia a todas inseguranças que de repente afloraram na francesa, uma lágrima escorreu dos olhos de Cosima e ela novamente se inclinou para beijar Delphine. Talvez aquele tenha sido o beijo mais imbuído de significado de toda a história delas. Porém, mesmo quando voltaram a se afastar – apenas o suficiente para que conseguissem recuperar o fôlego – Delphine ainda precisa ouvir em palavras para poder ter certeza.
– Isso me pareceu com um aceito...
– Sim – Cosima respondeu com uma risada, embora seu rosto ainda estivesse molhado – MAS É CLARO QUE SIM!
Delphine achava que acabaria explodindo de felicidade exatamente como um daqueles fogos de artifício que ainda decoravam o céu. Com as mãos trémulas, ela se surpreendeu em descobrir que a o anel ainda estava a salvo, firmemente guardado junto de sua palma.
– Esse é o nosso novo começo, Cosima – ela disse após conseguir encaixar a aliança no dedo anelar da morena.
– Sim. Nosso novo começo.
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