Ameaças Que Vem De Dentro
3 meses depois
O inverno começava a dar os primeiros indícios de seu fim, fazendo comque enfim os termómetros de Toronto se estabilizassem na escala positiva. Era final de tarde e Cosima fazia seu rotineiro trajeto para casa se sentindo aliviada por ter terminado suas obrigações acadêmicas do dia. Porém, em vez de subir as escadas para seu apartamento, foi na loja de sabonetes embaixo dele que ela entrou.
– Boa tarde, Donnie – ela saudou enquanto passava pela porta.
A figura grandalhona de Donnie Hendrix chegava a ser destoante da delicadeza do estabelecimento decorado em tons de rosa. Ele estava concentrado fazendo o fechamento de caixa, mas um sorriso se abriu em seu rosto quando levantou a cabeça ao ouvir o sino da entrada e viu a morena entrando.
– Boa tarde, Cosima! Como vai?
– Tudo nos conformes. A Alison tá por aí?
– Tá sim, lá no fundo terminando uma receita pra gente poder ir embora. Pode entrar ir até lá se quiser.
– Certo, obrigada.
Ela contornou a mesa onde ficavam dispostos os hidratantes e loções de banho, e foi até a porta de acesso para o depósito aos fundos da loja. Quando entrou na pequena sala cujas paredes eram repletas de prateleiras abarrotadas por matéria prima e embalagens ainda vazias, se deparou com Alison usando óculos de proteção, luvas amarelas de borracha e um avental florido nada discreto enquanto despejava um líquido perfumado e fumegante em uma forma de sabonete.
– Cosima! – Alison falou sorrindo para ela.
– Oi Ali. Não quero te atrapalhar, só vim trazer o dinheiro do aluguel.
– Não se preocupe, eu já estava terminando mesmo – disse deixando a panela agora vazia dentro da pia e começando a se despir de toda aquela parafernália. – Por onde você tem andado moça? Não te vejo há dias, nem parece que você mora na porta ao lado.
– Sabe como é, o doutorado tem consumido quase todo o meu tempo... E não é todo dia que eu venho pra casa, então...
– Claro, eu devia ter imaginado – Alison disse com um sorriso insinuante enquanto se aproximava para pegar o dinheiro das mãos de Cosima. – E como vai a Delphine?
– Está bem. Ela vem pra cá mais tarde.
– Vocês não se desgrudam mesmo, não é? Como é mesmo aquela piada? – Cosima franziu o cenho, a princípio sem entender ao que ela se referia. – Aquela que fala de um caminhão...
– Ah – Cosima riu da tentativa da amiga de se integrar à cultura LGBTQ. – Lésbicas levam o caminhão de mudanças no segundo encontro.
– Isso! Vocês deviam expulsar o Felix e ficar com o apartamento pra vocês de uma vez.
– Ouch! Ele não ia ficar nenhum pouco feliz se te ouvir falando desse jeito.
– Não mesmo. E falando no Felix... – disse Alison desaparecendo por um instante debaixo da bancadas de trabalho central e retornando com algo em mãos. – Ele tinha me feito uma encomenda, mas meu fornecedor acabou atrasando pra me entregar a mercadoria. Você pode levar isso pra ele por favor?
Alison entregou a ela uma cestinha de madeira contendo duas barras de sabonete dentro.
– Claro, sem problemas.
Felix encomendando sabonete?
Com a curiosidade falando mais alto, Cosima levantou as barras do sabão e ali debaixo, em meio a pedaços de papel picados, encontrou um saquinho transparente recheado de comprimidos. Ela sorriu e balançou a cabeça.
Mas é claro que não.
– Diga a ele que o sabonete é uma cortesia para compensar atraso.
Depois de se despedir do casal, Cosima saiu da loja para subir as escadas que levavam ao andar de cima. Antes mesmo de vencer todos os degraus, ela já conseguiu perceber que a música 'Bad Girls' tocava nas alturas do lado dentro. Assim que abriu a porta, encontrou Sarah sentada em uma cadeira bem de frente para a janela e Felix estrategicamente posicionado perto dela finalizando uma tela. Ele vestia – como era de praxe naquelas ocasiões – nada mais que o seu típico avental de pintura.
– Caramba! Será que vocês estão ficando surdos? – disse Cosima indo até a caixa de som abaixar um pouco o volume da música.
– Qual é Cosima – disse Felix. – Mal-humorada desse jeito vou achar que a Delphine não tá te comendo direito.
– Quanto a isso, meu querido, você pode ficar despreocupado que ela está fazendo um ótimo trabalho – Cosima falou se aproximando para dar um beijo na bochecha dele conseguindo ver com a visão periférica o momento em que Sarah revirou os olhos. – A Alison pediu pra eu te entregar isso.
Ele deu uma rápida conferida no que ela trazia em mãos e logo voltou a prestar atenção na tela.
– Finalmente. Pode deixar ali em cima da mesa pra mim, fazendo favor.
Cosima fez o que ele pediu e se sentou em uma das poltronas para observar o amigo terminar seu trabalho.
– Sarah – Cosima começou. – Não era pra você ainda estar na lanchonete? Aconteceu alguma coisa?
– Ah, então... – Sarah disse se mexendo na cadeira para conseguir olhar para Cosima, o que acabou fazendo com que levasse uma bronca do irmão. – Eu tive um pouco de falta de ar no meio do expediente e a Helena praticamente me obrigou a voltar para casa.
– Você deu muita sorte com essa tal de Helena – Felix comentou. – Os patrões já não costumam ficar muito contentes quando suas funcionárias engravidam, quanto mais contratar alguém que já está grávida.
– Pois é, isso deve ser mais um sinal de que ela não bate bem da cabeça – resmungou Sarah.
– Ah, não seja tão ingrata – falou Cosima. – Ela é uma pessoa de bom coração.
– Bom coração? Sei não, ela me dá é medo. Às vezes ela segura a faca, sei lá, pra cortar bacon, e a sensação que eu tenho que ela quer matar o porco que já está morto! Fica falando como o bebê como se fosse parte da família. Você acredita que ela fica dizendo que vai ser a tia? Sem contar aquela história estranhíssima de que viu uma luz em mim e que nós temos uma conexão...
– É, pra ver uma luz em você tem que ser doida mesmo – comentou Felix.
– Ah, vai se foder.
– Mas falando sério – disse ele. – Quem sabe a ucraniana maluca não é sua irmã perdida no sistema de adoção?
– Sem chances – Sarah rebateu sem pensar.
– Não, pelo contrário, querida. Quando se é um pobre órfão adotado tudo é possível – falou ponderando sobre qual cor usaria a seguir. – Se for o caso, eu deixo a S adotar ela também. Desde que eu continue sendo seu irmão preferido, é claro
– Ok, agora acho que é você quem está ficando maluco.
Mantendo distância da conversa, Cosima se divertia vendo os dois se provocando daquela forma.
– Pronto – disse Felix deixando o pincel dentro do copo com uma mistura de água e detergente. – Terminei.
– Finalmente – falou Sarah. – Vou cobrar um cachê da próxima vez.
– O quê?! Você devia é se sentir honrada de ter a chance de posar para mim!
– Meu Deus, como você é convencido...
– E isso vale pra você também – Felix disse se voltando para Cosima. – Eu ainda preciso terminar a sua pintura.
– Você sabe que a minha vida tá corrida Fee.
– Conta outra, desculpa de tempo não cola não. Você poderia posar para mim agora mesmo, por exemplo.
– Não vai rolar – Cosima disse se levantando e indo em direção ao corredor que levava aos quartos. – Agora eu tenho que tomar banho.
– Já te disseram que você é muito cara de pau?
– Aprendi com você! – ela gritou rindo.
Depois de sair do chuveiro e vestir uma roupa bem mais confortável, Cosima voltou para sala. Chegando lá, percebeu que o cavalete já havia sido recolhido juntamente com a tela terminada e Felix não se encontrava mais presente. Sarah, por outro lado, estava sentada em um canto do sofá, com os cotovelos apoiados nos joelhos enquanto olhava com bastante atenção para um papel que segurava nas mãos. Cosima conseguiu ter uma ideia do que se tratava ao identificar o brasão do Hospital em um envelope que ela deixou de lado sobre o assento.
– Hey – disse Sarah ao levantar a cabeça e notar que estava sendo observada.
– O Felix saiu? – perguntou Cosima.
– Sim, foi comprar alguma coisa pra gente comer.
– Hoje cedo foi sua consulta no obstetra, né?
– É, foi sim – Sarah respondeu com um sorriso de canto. – Fiz outro ultrassom e eles me deram as imagens.
– E então? – Cosima perguntou um tanto hesitante ao se sentar ao lado dela. – Está tudo bem com o bebê?
– Bom, segundo a Dra. Montgomery o desenvolvimento dela está dentro do esperado.
– Dela?
Sarah passou os papéis para Cosima, que não pode deixar de sorrir ao ver naqueles borrões escuros da imagem do ultrassom a perfeita silhueta de uma criança em formação.
– Dessa vez estava com as perninhas abertas e deu pra identificar o sexo – disse Sarah. – É menina.
– Menina? – Sarah apenas confirmou com a cabeça. – Cara... Que legal. Você já escolheu o nome?
– Não pensei muito sobre isso ainda – a futura mãe deu os ombros. – Acho que eu gosto de Kira, mas não tenho certeza...
– É um nome bonito – disse Cosima devolvendo o exame a ela, que o guardou novamente no envelope. – Já contou pra S?
– Sim. Na verdade, ela foi na consulta comigo.
– E ela? Já tá lidando melhor com a ideia de ser vó?
– Ela ainda tá brava comigo – Sarah explicou. – A S se faz de durona, mas ficou toda boba quando a doutora deixou a gente ouvir os batimentos do coraçãozinho dela.
– Mas também né? Tendo você e o Felix como filhos a Siobhan já teria ficado maluca se não fosse durona.
– É, você tem um ponto – Sarah riu sendo interrompida por um espasmo. Era como se alguma coisa inesperada a tivesse assustado.
– O que houve? – Cosima perguntou.
– Nada demais – ela disse se ajeitando no sofá. – Quer dizer, é só que eu ainda não muito acostumada com os chutes.
Sarah notou a forma com que Cosima olhou curiosa para sua barriga, então esticou o braço para pegar a mão dela e levou até seu ventre.
– Aqui. Consegue sentir?
Cosima fico parada em silêncio por um instante e então experimentou um leve estremecimento sob a palma da mão.
– É, eu senti sim.
No momento em que ela sorriu e levantou um pouco a cabeça para olhar Sarah no rosto, a porta da frente se abriu dando passagem a Felix que trazia consigo uma sacola pendendo da mão.
– Olha só que eu encontrei na rua comprando Poutine – disse ele entrando em casa. Delphine vinha logo dele atrás e parou diminuindo consideravelmente o sorriso em seu rosto quando viu Cosima com a mão sobre a barriga de Sarah.
Percebendo que era da loira que Felix falava, Cosima imediatamente se levantou do sofá e foi sorrindo até a ela.
– Quer dizer então que a grande cozinheira francesa acabou se rendendo a junk food canadense? – provocou Cosima semicerrando os olhos e deixando um selinho nos lábios da namorada.
Delphine não havia ficado confortável com a cena que acabara de presenciar, mas tampouco se deixou abalar por isso.
– Mas não deixam de ser french fries, não é mesmo?
– Uhh, insultando o orgulho canadense! – Cosima brincou. – Deixa alguém da imigração te ouvir falando isso que eles acabam te deportando.
– Andem logo! – Felix gritou da cozinha. – É um crime comer Poutine frio!
Elas se entreolharam segurando o riso frente a impaciência do moço e acharam melhor não o contrariá-lo.
Depois dos quatro se reunirem para comer, Cosima e Delphine não demoraram para se recolher no quarto – sendo 'dormir' o último item da lista delas.
– Sabe – disse a morena. – Pra quem me deixou literalmente na mão na nossa primeira vez, até que você pegou o jeito bem rápido.
– Errh... – Delphine soltou sentindo o rosto esquentar e sem saber muito bem o que dizer. – Cosima... eu não...
– Eu já te disse o tanto que você fica fofa quando está com vergonha?
Nas últimas semanas tinha se tornado um hábito para Cosima provocar Delphine daquela maneira. Se deleitava com o tom avermelhado que as maçãs de seu rosto adquiriam, assim com o jeito que ela sempre acabava por abaixar a cabeça com um sorriso tímido nos lábios.
E então ficaram ali, abraçadas na cama desfrutando da presença uma da outra; Cosima totalmente relaxada com a cabeça apoiada no ombro da francesa, que por sua vez só conseguia pensar em uma coisa: a cena que viu quando chegou até lá duas ou três horas mais cedo.
– Mas então... – ela começou tão suavemente quanto pode – A Sarah ainda vai ficar morando aqui por muito tempo?
– Um pouco. Só até a criança nascer – Cosima suspirou, compreendendo que aquele não era o cenário ideal e que essa situação poderia estar incomodando Delphine de alguma forma. – É só por uma questão de praticidade, sabe? Pra que ela não precise pegar transporte público para o trabalho todos os dias. Depois do parto o combinado é que ela fique de vez na casa da S.
– Entendo... – Delphine disse marcando o início de um silêncio desagradável que começou a pesar entre elas.
– Você sabe que ela não é uma ameaça pra você, não sabe? – perguntou Cosima virando o rosto para a olhar nos olhos.
Delphine deixou que a conexão visual se estabelecesse, por fim esboçando um sorriso com o canto da boca e assentindo com a cabeça. Cosima retribuiu enlaçando seus dedos e a beijando suavemente.
– A gente nem devia perder o nosso tempo falando da Sarah. É você que me interessa – a morena falou voltando a se deitar sobre Delphine ainda de mãos dadas. – Conseguiu ir lá ver o apartamento hoje?
– Sim. A reunião com o Dr. Nealon demorou mais do que eu esperava, mas o proprietário me esperou.
– E então?
– Sinceramente, eu adorei – disse Delphine inclinando a cabeça. – É exatamente o que eu tinha em mente. Não é uma mansão, mas pelo menos vou ter mais espaço do que tenho agora. O aluguel está com um preço ótimo e só de ser no mesmo prédio vai me poupar muita dor de cabeça.
– Quer dizer que você vai ficar com ele? – Cosima perguntou cheia de expectativa.
– Sim. O proprietário só precisa fazer o contrato. Acredito que dentro de alguns dias já vou poder me mudar.
– E você já avisou a Sra. Smith?
– Ainda não, – respondeu Delphine – vou falar com ela amanhã.
– Viu só? Foi mais fácil do que você estava esperando.
O assunto se encerrou, deixando as duas em silêncio novamente – que dessa vez não foi nada estranho ou opressor. A atmosfera cujo único ruído era de suas respirações e eventuais carros passando na rua era no mínimo aconchegante. Contudo Delphine pensou em algo que poderia deixar tudo ainda melhor.
– Merde – ela acabou dizendo. – Eu devia ter trago sorvete.
– Você quer soverte? – Cosima levantou a cabeça para olhá-la.
– Uhum.
– Tudo bem – a morena falou começando a se colocar para fora da cama. – Seu desejo é uma ordem – disse com um sorriso nos lábios quando começou andar pelo quarto caçando suas peças de roupa. – Vou no mercado pegar alguns Eskimo Pies pra gente.
– Eskimo? – Delphine perguntou com um sotaque carregado.
– Sim.
– Acho que eu não conheço esses.
– Sério? – disse Cosima já vestindo o casaco.
– Non.
– Então prepare-se, está prestes a se tornar uma viciada.
Delphine ficou observando quando ela caminhou até a escrivaninha para recuperar seus óculos e depois parou na frente do espelho. Reparou na graça e destreza com que os dedos da morena prendiam os dreads para na sequência ajeitá-los dentro de um gorro de lã vermelha.
– Acho que eu já estou – concluiu a francesa.
Cosima olhou para ela alargando ainda mais o sorriso. Por fim pegou sua carteira e saiu do quarto com a promessa de voltar logo.
Delphine ficou ali, na cama, sozinha. E em meio a solidão, pensamentos nada inéditos começaram a preencher sua mente. A insegurança foi cavando espaço aos poucos, ainda que ela tentasse bloquear seu avanço. Cosima lhe assegurava que não nutria sentimentos ou qualquer interesse romântico por Sarah há anos, mas só pelo fato de terem tido um relacionamento no passado – relacionamento esse que claramente foi muito significativo na vida de Cosima – fazia com que o ciúme insistisse em se apossar dela. Não é como se ela não confiasse na morena, muito pelo contrário. Quando estavam juntas, conseguia sentir o quanto o amor entre elas era recíproco e só fazia crescer a cada dia que passava.
Porém essa confiança toda não se estendia a Sarah. Sim, é verdade que Delphine não a conhecia muito bem, sendo que foram breves e muito pontuais a troca de palavras entre as duas. Mas com base em todas as histórias que já havia ouvido, certamente os princípios morais dela não eram dos mais retos. Sem contar os olhares dela sobre Cosima, que deixava a loira realmente desconfortável. E algo lhe dizia que a antipatia era recíproca.
A gravidez só fazia deixar aquela situação ainda mais delicada. Afinal de contas, como poderia julgar Cosima ou cogitar tentar impedi-la de se preocupar e criar laços com aquela criança que estava sendo gerada tão próxima a ela? Delphine pode ver isso naquela noite mais cedo, quando chegou e viu a mão da namorada na barriga de Sarah.
Como posso julgá-la por se encantar com a ideia de uma criança fofa?
Aqueles pensamentos iam se desenrolando, ganhando cada vez mais espaço e potência na cabeça de Delphine, mas ela sabia que aquilo era uma cilada. Ela esfregou os olhos sabendo que não podia deixar que as inseguranças se apoderassem dela. Aquela rivalidade provavelmente não fazia o menor sentido e ela tinha que confiar em sua parceira. Cosima havia escolhido estar com ela, isso é o que importava.
Para evitar que a aflição tomasse as rédeas novamente, a loira se levantou e seguiu os passos de Cosima na tarefa de recuperar sua lingerie que estava espalhada pelo chão. Ao invés de vestir as roupas que lhe pertenciam, Delphine se cobriu com o robe ornamentado de seda roxa da morena. Ele mal chegasse na metade de suas coxas e ficavam com as mangas curtas, mas mesmo assim era muito confortável e bom poder ficar envolta ao cheiro da morena.
Seguiu para o banheiro, apoiou-se no balcão da pia e se deteve por um instante olhando para o espelho. Mesmo estando com o cabelo todo bagunçado, ela gostou do que via. Sua pele tinha um aspecto saudável e macio; as olheiras que raramente a deixavam haviam desaparecido e seus olhos carregavam um brilho todo especial. Poucas vezes na vida ela esteve tão satisfeita com sua aparência como estava nos últimos tempos. Poucas vezes na vida ela se sentiu tão feliz e plena como estava se sentindo desde que conheceu Cosima. De fato, toda aquela descarga de oxitocina estava sendo um presente, tanto para seu corpo, quanto para o seu estado de espírito.
Ela tentou ajeitar os cabelos só com as mãos e molhou o rosto com um pouco de água fria. Depois voltou pelo caminho que tinha vindo, parando por um instante assim que cruzou a porta do banheiro.
Se demorou analisando os detalhes daquele quarto. O papel de parede ornamentado em amarelo ocre; a cama com a cabeceira alta de madeira maciça; a completa desordem que se encontrava sobre o colchão, o lençol todo revirado impregnado com o cheiro das duas e os travesseiros espalhados com suas fronhas na cor vinho; as estantes abarrotadas de livros e artigos de decoração nada convencionais – como a mandíbula de um ruminante qualquer que Delphine não conseguia identificar. Coisas como essa e o quadro do homem vitruviano de da Vinci ao lado de uma tabela periódica emoldurada presos na parede, evidenciavam que a pessoa que ali habitava não era nem de longe um ser humano ordinário. Não. Cada um dos detalhes daquele pequeno espaço eram carregados da essência, da personalidade autêntica de Cosima. E naquele momento não havia outro lugar no mundo em que Delphine preferisse ficar ou que se sentisse mais bem acolhida.
Ela caminhou sentindo a textura do piso de madeira contra a sola de seus pés. Se deteve na frente da mesa, passando os olhos através das pilhas e mais pilhas de papéis contendo rascunhos e anotações de estudo. O notebook decorado com o desenho das duplas hélices do DNA coloridas quase se perdia em meio às folhas soltas.
Ela continuou sua exploração pelo ambiente até que um objeto nunca antes notado por ela lhe chamou a atenção. Escondido entre as fileiras de livros, Delphine encontrou um porta-retratos em uma das prateleiras e não demorou para tomá-lo nas mãos.
A imagem estampava uma senhora sorridente com uma menininha cujos braços estavam envoltos à cintura da idosa. A senhora transparecia muita energia e a menina – que devia ter por volta de seus 6 anos de idade – tinha os cabelos morenos presos em duas longas tranças que pendiam sobre os ombros. No rosto, a pequena trazia apoiado no nariz um modelo de óculos que parecia grande demais para ela. Assim como a mais velha, a criança também sorria largamente, denunciando a ausência de um de seus caninos superiores. Delphine se pegou rindo sozinha; era impossível não reconhecer aquele rostinho mesmo com a falta de uma de suas características mais marcante. Ainda que estivesse sem os dreads, sem o piercing no nariz e com o canino pontudo faltando, aquela sem dúvidas era a Cosima que ela conhecia, com o mesmo sorriso e expressividade no olhar.
– Cara, eu amo essa foto.
Delphine se sobressaltou com a voz que veio repentinamente por trás de suas costas. Ao se virar, viu Cosima se aproximando e trazendo algo em mãos.
– Quem é ela? – Delphine perguntou apontando para a senhora do retrato.
– É minha vó, Anne – respondeu Cosima olhando para a foto com uma expressão nostálgica no rosto. – Ela foi a minha pessoa preferida em todo o mundo.
– Foi?
– Sim, ela já faleceu a muitos anos – Cosima explicou começando a ficar com os olhos marejados. – Vem, vamos comer isso logo antes que derreta.
Delphine voltou o porta-retrato para seu lugar e seguiu Cosima até a cama. Elas se sentaram e a morena tirou uma caixinha de sorvete de dentro da sacola.
– Nós tiramos aquela foto em um dos aniversários dela, 65, se não estou enganada – começou Cosima entregando um picolé para Delphine. – Ir à São Francisco visitá-la era sempre o auge do meu ano. Meus pais e eu sempre ficávamos lá por algumas semanas, mas nessa ocasião eu tinha os convencido a me deixarem ficar por mais tempo. Quatro meses, enquanto os dois trabalhavam no Alasca.
Delphine comia o sorvete enquanto ouvia atenta a história.
– Meu pai falava que não sabia quem aprontava mais, se era eu ou ela – Cosima relembrou. – Uma vez eu inventei que queria aprender a andar de patins, aí ela acabou comprando um pra mim e outro pra ela.
– O quê?! – perguntou Delphine descrente.
– É verdade. O resultado das nossas aventuras foi eu ficando com o corpo todo ralado e ela com o pulso torcido – a morena disse rindo. – Acho que só não foi pior porque ela era responsável o suficiente para ter comprado junto os devidos equipamentos de proteção.
– E ela ficou bem? – perguntou Delphine adorando ouvir a história de infância da namorada.
– Pode crer que sim! Aquela velhinha era forte – então Cosima fez uma pausa, mordendo o sorvete a medida que seu rosto adquiria uma expressão melancólica. – Ela nunca teve grandes problemas de saúde, sabe. Nem pressão alta e diabetes que são coisas tão comuns pra alguém na idade dela. Mas pouco tempo depois que eu completei 13 anos ela começou a ter umas azias persistentes e acabou descobrindo um câncer de estômago em estado bem avançado. O tumor tinha se espalhado para vários outros órgãos, então não muito a ser feito. Ela teve pouco mais de três meses de vida depois do diagnóstico.
– Eu sinto muito...
– Eu também – disse Cosima batendo as pálpebras para tentar conter uma lágrima em formação. – Eu só queria poder ter tido um pouco mais de tempo com ela, entende...
– Tenta olhar pelo lado positivo – Delphine falou vasculhando sua mente em busca de alguma coisa que pudesse confortá-la. – Pelo menos ela não sofreu por muito tempo.
– É, você tem razão – Cosima disse levantando o rosto e forçando um sorriso – Mas quer saber? Não era pra essa noite ter ficando tão baixo astral desse jeito. O que achou do Eskimo Pie?
– Hum – fez Delphine terminando de limpar o palito. – Eu adorei. Isso definitivamente é bem melhor do que as barras de nanaimo.
– Wow, agora é oficial – falou Cosima também acabando seu sorvete e tirando as embalagens de cima da cama. – Insultando a gastronomia canadense dessa forma você só pode estar querendo ser punida.
– É mesmo? – Delphine lançou seu melhor olhar de desafio sobre a morena. – E quem é que vai me punir?
Cosima não esperou mais, se jogando em cima de Delphine e prendendo seus pulsos dela por sobre sua cabeça apoiando na cama.
– Ok – a loira falou com a respiração acelerando. – Acho que eu tenho um palpite...
Sem perder mais tempo, Cosima a beijou e começou a se livrar novamente das roupas que vestia.
Delphine acordou na manhã seguinte com uma movimentação atípica no banheiro. Seu primeiro impulso foi procurar por Cosima, mas não a encontrou na cama.
– Cosima? – perguntou apoiando o corpo nos cotovelos. – Tá tudo bem aí?
– Sim – respondeu a morena, logo tendo sua voz coberta pelo barulho da descarga. Quando saiu do banheiro o rosto dela estava pálido e ela quase se arrastou de volta para cama.
– O que foi Cosima? – Delphine falou passando a mão pela face dela. – Você tá branca!
– Cólica – a morena balbuciou com a voz mal passando de um gemido de dor.
Delphine já havia ouvido Cosima reclamar dessas dores tão inconvenientes nos meses anteriores, mas ainda não tinha a presenciado naquele estado. Seus lábios não tinham cor nenhuma e gotículas de suor se formavam em sua testa enquanto ela se contraia em posição fetal.
– Você já tomou remédio? – perguntou Delphine, recebendo apenas um anuir de cabeça como resposta.
A julgar pela condição em que ela se encontrava, talvez o medicamento demorasse muito para fazer efeito ou nem sequer fosse o suficiente para aplacar a dor. Ver alguém em tamanha aflição, ainda mais alguém tão querido a ela, deixava Delphine desconfortável e angustiada.
– Você tem uma bolsa de água quente em algum lugar?
– Sim. No armário... – respondeu Cosima indicou o banheiro com o braço. – Última gaveta da esquerda.
Delphine foi buscar a bolsa de gel e a encontrou exatamente onde fora indicada. Saiu do quarto com objetivo de ir até a cozinha, reparando que àquela altura o sol ainda não tinha nem despontado no céu. Ao passar na frente do quarto de Felix, notou que a porta estava aberta e que o espaço ao lado dele na cama estava vazio. Antecipando o que viria a seguir, a francesa fechou os olhos e suspirou.
Sentada à mesa da cozinha com as costas voltadas para a porta, estava Sarah. Inclinada para frente, ela comia o que restara do Poutine da noite anterior. A morena olhou por cima dos ombros ao ouvir passos se aproximando, mas voltou a atenção para as batatas fritas murchas quando percebeu se tratar de Delphine.
– E aí – Sarah disse com uma ponta de desprezo na voz.
– Bom dia – a loira retribuiu caminhando até o micro-ondas onde colocou a bolsa d'água para esquentar.
– Caiu da cama, foi?
– Não – Delphine respondeu seca. – É só a Cosima que acordou não se sentindo muito bem.
– O que ela tem? – Sarah finalmente tirou os olhos da comida e olhou diretamente para a francesa.
– Cólica – ela respondeu a contragosto, não querendo prolongar a conversa.
– Hum. E você acordou mais cedo pra cuidar dela – Sarah falou soltando uma risada debochada. – Que fofo.
Delphine olhou no timer do micro-ondas desejando sair dali logo, mas ainda faltavam alguns segundos para que a bolsa terminasse de aquecer. Mordeu o lábio tentando se controlar e não ceder à provocação, porém Sarah resmungou alguma coisa que impediu que ela alcançasse seu objetivo.
– O que foi que você disse? – Delphine perguntou franzindo o cenho.
– Eu disse que é bom mesmo que você cuide dela direito.
– Olha só, eu não acho que isso seja da sua....
– É melhor não ser uma escrota com ela do jeito que eu fui – Sarah completou colocando um pouco mais uma garfada na boca. – A Cos é uma pessoa incrível, merece alguém que reconheça a sorte que tem e trate ela direito.
Não chame ela de Cos!
– Pode ter certeza de que eu percebi o quão especial ela é do momento em que a conheci. E não se preocupe; não faz parte do meu caráter trair as pessoas com que eu me relaciono.
O alarme sonoro soou e Delphine tirou a bolsa fumegante de dentro do forno.
– Merde! – resmungou percebendo que havia esquentado demais, a ponto de queimar os dedos quando tirou a bolsa do forno. Então alcançou um pano de prato para tentar não continuar se queimando até chegar no quarto. – Agora se me dá licença, a Cosima deve estar me esperando.
Sarah não disse mais nada e Delphine voltou apressada para o quarto. Dimuinuiu um pouco o passo ao se aproximar da porta, tentando não transparecer para Cosima a pequena discussão que acabara de ter.
– Hey – ela falou com um sorriso gentil no rosto indo se sentar na cama ao lado da namorada. – Melhorou um pouco?
– Não exatamente – respondeu a morena com a expressão ainda levemente contorcida por conta da dor.
– Me desculpe, eu acabei colocando tempo demais. Vai te queimar se colocar na sua pele desse jeito. Mas vem cá... – Delphine falou orientando para que ela se deitasse de barriga para cima e levantasse a blusa. – Eu faço uma massagem em você enquanto a gente espera esfriar um pouco.
Delphine deixou a compressa aquecida ao lado delas sobre o colchão e se ajeitou em uma posição mais propícia. Assim que começou a massagear o ventre de Cosima, a morena cobriu os olhos com um antebraço e manteve a expressão contraída.
A princípio Delphine traçou movimentos circulares no sentido horário ao redor do umbigo dela, concentrando toda sua atenção nas rotações que as pontas de seus dedos faziam – talvez até atenção demais. Depois de repetir o gesto algumas vezes, ela franziu as sobrancelhas, cismada com o que sentiu. Nunca tinha reparado antes, mas naquele momento notou um volume bastante anômalo na região do baixo ventre de Cosima. Um volume que não devia estar ali.
N'importe quoi. Ginecologia nunca foi o meu forte.
– Cosima, você sempre teve cólicas fortes desse jeito? – Delphine perguntou.
– Eu sempre tive cólica, mas de uns tempos pra cá elas têm piorado bastante.
– E você já comentou sobre isso com o seu médico? – a resposta demorou alguns instantes para vir, deixando a loira ainda mais ansiosa. – Cosima?
– Bom... pra ser bem sincera, não. Digamos que eu estou um pouquinho atrasada pra minha consulta...
– Um pouquinho? Quanto é o seu pouquinho?
– Sei lá, acho que uns dois anos – ela fez outra pausa e tirou o braço do rosto. – Talvez um pouco mais que isso...
– Cosima!
– O quê? É só cólica. Minha mãe sempre teve também...
– Pour l'amour du ciel, você é cientista! Devia saber o quão importantes são os exames de rotina!
– Tá bom, tá bom, você tem razão. Eu já tava mesmo querendo marcar uma consulta, prometo que hoje mesmo vou na clínica ver se consigo um agendamento.
– É melhor mesmo – Delphine parou a massagem para verificar se a compressa já havia esfriado o suficiente. – Aqui, acho que já está bom.
Ela posicionou a bolsa quente sobre o útero da morena e se deitou na cama ao lado dela.
– Já está melhorando – disse Cosima. – Você tem mãos de fada, já te disse isso?
– Hum. Está tentando me comprar com um elogio? Já adianto que não vai funcionar.
– Magina, longe de mim...
– Sei – falou Delphine a envolvendo com os braços. – Isso é sério Cosima, você não pode brincar com a sua saúde desse jeito.
– Sim senhora, Dra. Cormier – falou com um excesso de pompa na voz.
Delphine deu uma risadinha e a puxou para mais perto. Olhou no relógio sobre a mesa de cabeceira e viu que ainda era muito cedo, então apenas afundou o rosto no pescoço de Cosima, determinada a ficar ali por mais uma ou duas horas.
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