A Calmaria
Algum tempo depois naquela mesma manhã, foi a vez de Cosima acordar com uma movimentação no quarto. Delphine estava trocando de roupa e se virou para olhá-la quando a notou se mexendo na cama.
– Désolé, chérie. Não queria ter te acordado...
– Que horas são? – a morena perguntou ainda sonolenta ao notar que o ambiente estava sendo iluminado pela luz do sol.
– Quase oito. – Delphine foi até a frente do espelho e começou a arrumar o cabelo. – Você melhorou?
Cosima se esticou preguiçosa, notando que a dor ainda persistia, porém não estava tão incapacitante.
– Sim.
– Nesse caso eu já vou indo. Tenho bastante coisa pra fazer hoje e o Dr. Nealon me encheu de coisa pra estudar essa semana.
– Nada de laboratório? – Cosima questonou alcançando seus óculos que estavam sobre o móvel ao lado da cabeceira.
– Não. Nós combinamos que eu vou voltar do congresso de Montreal com um tema fechado para então começar uma pesquisa. Sinceramente acho que ele gostou mais da ideia de seguir a linha de tratamentos imunoterápicos para o câncer do que meu antigo projeto sobre a relação entre parasitas e hospedeiros.
– É uma área realmente promissora – Cosima disse em meio a um bocejo. – Quem sabe você não acaba parando na capa da Scientific American?
– Non, a Scientific American não coloca cientistas na capa – Delphine falou terminando de vestir o casaco.
– É, mas talvez eles mudem de ideia quando virem seu rosto.
A loira riu revirando os olhos e parou ao lado da cama para deixar um beijo rápido no rosto de Cosima.
– Você vai lá pra casa hoje à noite?
– Yep.
– Ótimo. À plus tard, ma chérie.
– À plus tard.
Então Delphine pegou sua bolsa, a passou pelo ombro e saiu do quarto. Cosima também tinha compromissos naquele dia, mas seu corpo mole insistiu para que ela se demorasse um pouco mais na cama. Já passava das nove da manhã quando ela finalmente conseguiu sair de casa.
Há algumas semanas, a morena havia conseguido uma sala exclusiva para o desenvolvimento de sua pesquisa. Tudo bem que "sala" talvez não fosse a palavra que melhor a definia; o lugar era um verdadeiro cubículo. Porém, mesmo sendo pequeno, valia a pena por não precisar se preocupar com a possibilidade de ter alguém mexendo em suas amostras ou culturas de células. Além disso, o espaço era suficiente para acomodar seus camundongos.
– Desculpem o atraso pessoal – Cosima disse assim que entrou na saleta e acendeu a luz.
Logo que passou pela porta, tratou de vestir o jaleco, as luvas e colocar a máscara. Os roedores se mexiam inquietos dentro das gaiolas que precisavam ser limpas o quanto antes.
Dentro de seus princípios morais, Cosima detesta explorar animais apenas para o benefício humano daquela forma. Essa tinha sido uma das principais razões que a motivou na decisão de adotar uma dieta vegetariana anos atrás. Porém, até que a ciência evoluísse mais e fornecesse alternativas melhores e mais éticas, usar ratos de laboratório era algo que ela precisaria lidar.
– Legolas, por favor, comporte-se! – ela falou trocando o camundongo especialmente inquieto de compartimento para que pudesse trocar a serragem daquele em que o animal habitava.
O estudo dela tinha como objetivo a identificação de defeitos na estrutura do DNA de indivíduos com leucemia, sua correção e posterior clonagem de células saudáveis para o tratamento do próprio indivíduo. Era uma meta ambiciosa, mas se desse certo, seria a esperança de milhares de pessoas ao redor do mundo.
– Eu nunca vou entender como coisinhas tão pequenas como vocês conseguem produzir tanto cocô...
Depois de deixar as gaiolas em ordem, limpas e com água e comida frescas, Cosima começou a preparar os instrumentos necessários para a atividade do dia. Desinfetou uma parte da bancada e separou algumas seringas para então buscar um grupo de animais. Pesou cada um dos indivíduos e anotou os valores em uma tabela. Na sequência, enfiou uma das agulhas no vidrinho de sedativo e ajustou a primeira dose.
– Sinto muito, Arya – ela disse pegando o camundongo. – Hoje nós começamos com você.
Cosima sedou o primeiro animal e repetiu o processo com todos os outros, de forma que em poucos minutos todos estavam devidamente adormecidos. Então pegou um dos roedores e começou a coleta de sangue via punção cardíaca. Era um processo desagradável, ela preferia poder descartar as etapas práticas e ficar só com as análises de resultados, mas nem tudo são flores. Ao despejar o líquido vermelho dentro de um tubo de coleta, Cosima teve que anotar a identificação no rótulo.
H46239
Uma vida; o código genético de um ser absolutamente único reduzido a uma combinação de aleatória de números e letras. O método científico não se importava com o nome de seus personagens preferidos que ela havia dado para aquelas criaturinhas ou se elas pudessem ser especiais de alguma forma dentro daquela micro comunidade que formavam. Não, ali dentro do laboratório só a biologia daqueles animais importava e sua existência terminaria assim que deixassem de ser úteis para o experimento. Pensar por esse ângulo sempre fazia Cosima se sentir deprimida e por vezes em conflito com suas ações e sua profissão.
Que vida mais medíocre e triste a de uma cobaia.
Assim que saiu da casa de Cosima, Delphine se dirigiu para seu próprio prédio. Precisava falar com a Sra. Smith o quanto antes, pois apesar de seu contrato de aluguel ter sido para apenas um mês e todas as semanas que ela ficou a mais terem sido um acordo amigável entre proprietária e inquilina, a francesa não achava justo que ela só ficasse sabendo de sua mudança quando estivesse entregando as chaves.
Em poucos minutos a loira estava dentro do elevador subindo até o sétimo andar. Ela parou em frente à porta da Sra. Smith e tocou a campainha, estranhando a demora para ser atendida. Geralmente a senhorinha abria a porta tão logo era chamada, como se estivesse sempre à espera de alguém.
Será que ela ainda está dormindo? Delphine se perguntou olhando no relógio. Oito horas em ponto.
Improvável. Pelo pouco tempo de convívio que tinham, a loira já tinha percebido que Sra. Smith era do tipo que gostava de acordar antes mesmo do sol aparecer no céu. Talvez não estivesse em casa... Delphine estava virando as costas para ir embora quando ouviu uma chave girando na fechadura.
– Ah, Delphine, é você – disse a senhora que não parecia estar com a mesma disposição de sempre. – Como vai?
– Estou bem – respondeu Delphine reparando que ela ainda estava vestindo uma camisola florida. – Eu acordei a senhora?
– Não querida, de forma alguma. Eu estava terminando de preparar um chazinho pra mim. Venha – ela convidou dando passagem para o interior do apartamento. – Tome o café da manhã comigo.
– Ah, eu agradeço, mas... É que eu estou com um pouquinho de pressa...
– Bobagem – disse ela puxando Delphine para dentro pela mão. – Não vai demorar nada.
Elas seguiram para cozinha e Delphine pode experimentar o cheiro de gengibre de ar.
– Você gosta de chá? – perguntou Sra. Smith. – Se não posso passar um café pra você, só vai levar um minuto.
– Não, não precisa. Chá está ótimo. – Delphine se sentou à mesa e vendo a forma um tanto vacilante com que a idosa estava se movendo. – A senhora está bem?
– Ah querida, eu vou indo – ela falou trazendo o bule de chá e começando a derramar o líquido fumegante em duas xícaras. – Hoje eu não acordei muito católica não. Estou me sentindo um pouco tonta, sabe?
– A senhora tem labirintite?
– Sim. Bom, minha última crise aconteceu há muitos anos, mas eu tomo remédio todos os dias.
– Então deveria marcar uma consulta com o seu médico – Delphine orientou. – A dose esteja ficando fraca, pode ser que precise trocar o medicamento.
– É, talvez eu deva mesmo. Também estou com uma azia que não me deixa a dias, não estou nem tomando meu cafezinho por causa disso – a mais velha falou cortando um pedaço do bolo que estava sobre a mesa. – Mas vamos lá, acho que você não veio aqui a essa hora da manhã só pra escutar as queixas de uma velha...
– Bom, na verdade eu vim avisar a senhora... – Delphine fez uma pequena pausa para tomar um pouco mais do chá. – Quando eu cheguei da França minha prioridade foi encontrar um lugar em que eu pudesse ficar e que fosse perto da universidade. Mas agora que estou um pouco mais adaptada, espaço está começando a me fazer falta...
– ... e por isso você vai desocupar o flat.
– Exatamente – Delphine confirmou constrangida.
– Sem problemas, querida. Você ficou por mais tempo do que eu esperava. Quando você se muda?
– Não sei ao certo, provavelmente dentro de alguns dias. Só quis avisar antes para que a senhora possa se planejar.
– Tudo bem. Eu só sinto muito por você estar indo embora. Com certeza é a melhor inquilina que eu já tive em muitos anos, talvez desde sempre. Espero que não se esqueça de me fazer umas visitinhas de vez em quando depois que se mudar.
– Non, acho que isso não vai ser um problema. – Um sorrisobse abriu nos lábios de Delphine. – O apartamento em que vou alugar é neste prédio mesmo.
– Verdade? – Sra. Smith disse expressando surpresa. – É o do décimo andar?
– Esse mesmo.
– Que ótima notícia! Quer dizer então que a distância entre nós vai ficar até mais curta.
– Sim.
Delphine já esperava que a reação da senhora acabaria por ser positiva e mesmo depois de dizer o que precisava e esvaziar a xícara, sua saída não foi permitida antes de provar uma fatia do delicioso bolo caseiro – o que também não chegava a ser uma surpresa.
Cosima decidiu que seria uma boa ideia ir até a clínica médica do hospital universitário no meio da tarde para ver se conseguia marcar uma consulta. A essa hora do dia talvez ela perdesse menos tempo na fila. Chegando lá, viu que o movimento realmente estava reduzido, mas havia pelo menos dez pessoas na frente dela à espera de atendimento.
Para aumentar ainda mais o desconforto da espera, ali de pé naquela fila que andava à passos de tartaruga, as dores em seu ventre começaram a aumentar de intensidade outra vez. Ela olhou no relógio e se deu conta que àquela altura o remédio que havia tomado pela manhã devia estar perdendo o efeito. Então abriu sua bolsa e a fuçou a procura do frasco de comprimidos, não tardando a encontrá-lo.
Essa merda deve ser endometriose, só pode... ela pensou enquanto engolia uma das pílulas.
Cosima já estava impaciente quando um panfleto colado na parede com fita adesiva chamou sua atenção. A imagem estampava a silhueta de uma pessoa em postura de meditação com todos chacras ressaltados em círculos coloridos. Abaixo da ilustração havia o texto:
"Shay Davydov – Terapeuta Holística
Medicina Chinesa, Massagem Tailandesa, Seções de Reiki e Coach de Meditação.
Atendimento gratuito de quintas e sextas-feiras das 13:00 às 17:00. Sala ao lado da entrada da ala oncológica."
A morena achou curioso aquele tipo de terapia alternativa estar sendo abertamente oferecida dentro do hospital. Tinha ouvido falar de pesquisas que foram realizadas demonstrando os efeitos positivos do Reiki, tanto no alivio dos sintomas de algumas doenças como na melhor resposta imunológica dos pacientes, mas o fato é que essas práticas ainda eram extremamente controversas e desacreditadas pela maioria dos médicos e cientistas.
– Próximo. – A atendente chamou e Cosima percebeu que já era sua vez. – Boa tarde, como posso ajudá-la?
– Boa tarde. Eu sou aluna da universidade e gostaria de marcar uma consulta ginecológica.
– Eu vou precisar do seu crachá, por favor. – Cosima pegou o cartão e entregou a moça que imediatamente começou a copiar seus dados no computador. – É a primeira consulta ou um retorno?
– Primeira consulta.
– Ok. Houve uma desistência, vou ter um horário pra você amanhã pela manhã.
– Hm, acho que não vai ser possível. Preciso que seja pelo menos daqui uns cinco dias.
– Sem problemas. Semana que vem, então? Segunda-feira, 14:30?
– Está ótimo.
– Então está marcado, Srta. Niehaus. A consulta será no primeiro andar do bloco C, com a Dra. Susan Duncan.
– Certo – disse Cosima pegando seu crachá e voltando a guardá-lo na bolsa.
– Precisa de mais alguma coisa?
– Não, é só isso mesmo. Obrigada.
Depois de cumprir a promessa que havia feito a Delphine, Cosima seguiu novamente para o laboratório. A parte da tarde não seria tão agitada quando fora a manhã, uma vez que colhidas as amostras, agora precisava esperar que elas fossem sequenciadas. No entanto, aguardar o sequenciador fazer seu trabalho era uma tarefa tão maçante quanto tediosa.
Sentindo calafrios provocados pela dor, ela se apoiou na bancada e deitou o rosto sobre os braços cruzados enquanto observava a quantidade aparentemente infinita de 'A's, 'C's, 'G's e 'T's que passavam rapidamente pela tela do computador em uma dança quase hipnótica. Aos poucos seus olhos foram ficando pesados, piscando em intervalos cada vez menores e mais demorados até que ela enfim pegou no sono.
A pequena Cosima estava sentada na escada de entrada da simpática casa cuja fachada era pintada de azul. O dia estava ensolarado, e do outro lado da rua, um grupo de crianças brincava de pique pega na praça. Pareciam estar se divertindo, mas a menina estava mais interessada no livro recém adquirido que trazia em mãos. Tinha passado as últimas horas daquele belo dia de verão com os olhos pregados naquelas páginas, devorando palavra atrás de palavra, até que uma voz vinda de dentro da casa interrompeu sua leitura.
– Cosima! Venha comer, o bolo já está pronto!
Ela sorriu e fechou o livro, subindo apressada os últimos degraus que faltavam para alcançar o patamar de entrada. Assim que abriu a porta da frente, se viu envolta pelo delicioso cheiro de bolo de chocolate recém-saído do forno. Quando entrou na cozinha deu de cara com sua querida avó já lhe servindo um pedaço generoso.
– Vó, a senhora sabia que os bruxos tem um esporte que eles jogam montados em vassouras?! – Cosima disse empolgada ao se sentar à mesa.
– É mesmo?
– Sim. E eles usam quatro bolas ao mesmo tempo! Eu ia adorar poder voar em uma vassoura... – falou dando uma grande mordida na fatia de bolo.
– Você gostaria de ser uma bruxa? – a avó questionou desconfiada.
– Mas é claro, seria incrível! – a menina disse com o som saindo abafado de sua boca.
– Não fale de boca cheia, querida – a senhora repreendeu se sentando de frente para a menor. – Eu não acho que você se pareça com uma bruxa.
– Não seja boba, vovó. Não estou falando daquelas bruxas velhas, feias e com verrugas no nariz. Eu seria uma bruxa bonita, assim como a Hermione.
A senhora riu observando a neta que devorava o bolo.
– Então nesse livro aí as bruxas são bonitas?
– Sim, a Hermione é linda! Pelo menos eu imagino ela assim. E também é a mais inteligente de todas!
Porém conforme Cosima terminava de limpar o prato – não deixando um farelo sequer para trás – a expressão no rosto de sua avó foi se tornando mais séria.
– O meu tempo aqui já se esgotou, mas você precisa continuar – a senhora falou preocupada. – Você vai precisar ser forte, Cosima.
– Forte? – perguntou a menina franzindo o cenho e ajeitando os óculos sobre o nariz. – Do que a senhora está falando, vovó?
– Eu preciso ir agora. – A mais velha se levantou da cadeira e deu alguns passos em direção à saída.
– Aonde a senhora vai? – A pergunta ressoou pela cozinha que parecia ter ficado mais escura, como se uma nuvem tivesse coberto o sol. A menina esperou um pouco, mas a resposta não veio. – Fica comigo só mais um pouco! – a menina implorou começando a sentir um nó se formar em sua garganta e seus olhos ficarem marejados.
– Meu lugar não é mais aqui.
– Então me deixa ir com a senhora!
– Você não pode – a senhora disse com uma voz suave. – Ainda não terminou sua tarefa.
– Não! Por favor vovó, eu não quero ficar sozinha!
– Você não está sozinha, Cosima – falou a senhora caminhando em direção a porta dos fundos. – Nunca esteve.
– Quando eu vou ver a senhora de novo? – A essa altura as lágrimas já desciam como pequenos riachos pelos olhos da menina e ela sentia o coração pesado.
– Em breve, querida. Muito antes do que você pode imaginar.
Antes de girar a maçaneta, a senhora se virou e presenteou a neta com o seu sorriso mais doce e caloroso, para em seguida sair pela porta.
– Vó, por favor, me espera!
A menina tentou correr até ela, mas era tarde demais; a mais velha já havia desaparecido.
Quando Cosima passou pela porta dos fundos teve seus olhos ofuscados pela claridade. Assim que as pupilas se acostumaram com a luz, ela se deu conta de que não era mais a menina de 10 anos de segundos antes, mas uma mulher novamente e não estava sozinha.
Ali no jardim, debaixo de uma grande árvore e virada de costas, uma outra mulher que não era sua avó, mas cuja presença emanava uma aura de conforto, acolhimento e amor, estava de pé com a suave brisa lambendo seus cabelos.
– Delphine? – Cosima se surpreendeu em encontrar a loira em um dos cenários de sua infância. – O que você está fazendo aqui?
– Vem cá. – Delphine se virou para ela e estendeu a mão.
Cosima caminhou em direção a ela ainda um pouco confusa.
– Eu não entendo... O que está acontecendo?
– Não precisa ter medo – disse a francesa tocando o rosto da morena com um sorriso nos lábios. – Eu nunca vou te deixar.
Nada daquilo fazia sentido para Cosima. Foi então que tudo começou a ficar embaçado e se desintegrar conforme um barulho desagradável crescia no ambiente.
Cosima acordou assustada, sem saber onde estava e quase caindo da banqueta em que se sentava. O ruído que havia a acordado era emitido por alguém batendo na porta.
– Cosima? – Era a voz do Scott vindo do corredor. – Você está aí?
– Sim – ela respondeu ajeitando os óculos. – Já vai.
Ela se levantou ainda um pouco zonza e perdida para abrir a porta. O sonho que tinha sido uma mistura de memórias de sua infância e uma experiência tão vívida que parecia realidade, havia lhe deixado bastante desnorteada.
– O que você estava fazendo? – ele perguntou assim que entrou no laboratório.
– Ah... – Cosima soltou enquanto ajeitava o jaleco que estava torto em seu corpo. – Sequenciando algumas amostras.
– É mesmo? – o rapaz zombou. – Não sabia que sequenciar DNA deixava a gente com a cara amassada.
– Há-há – fez ela bocejando. – E você, o que veio fazer aqui?
– Bom, mesmo que você tenha subido um nível trófico, não precisando mais dividir laboratório com nós, os meros plebeus, eu vim te lembrar que você tinha combinado jogar Runewars com a gente.
Ela olhou no relógio e se surpreendeu com a hora.
Droga, acho que eu dormi demais.
– É, acho que eu vou ter que continuar isso amanhã... – ela disse olhando para a tela do computados. – Espera só eu desligar os equipamentos.
Cosima verificou se todos os arquivos haviam sido devidamente salvos e se os camundongos tinham comida e água o suficiente para passar a noite. Uma vez confirmando que tudo estava em ordem, os dois saíram do laboratório indo em direção à lanchonete.
– Olha só, eu espero que vocês tenham treinado mais desde a última vez que a gente jogou – disse Cosima. – Sério cara, já tá ficando chato ganhar toda vez...
Era fim de tarde e a universidade já começava a esvaziar, abrindo espaço para os primeiros alunos do período noturno que chegavam. A lanchonete tinha pouco movimento naquele horário, o que permitia que eles ficassem à vontade para cobrir uma das mesas maiores com o volumoso jogo de tabuleiro.
– Meu verme usa hálito de praga e sua força leva 2 de dano – disse um moço magricelo que compunha a roda.
– Ok, então eu ataco com os meus Ratabians e... – Scott foi falando. – Boom! Olá especial, adeus guardiões. Ganhei a batalha!
– De jeito nenhum! – Cosima interviu. – Eu uso minhas bestas com a carta de teletransporte. Agora todos os seus Ratabians estão mortos e eu tenho a cidade, o quarto do dragão e... – ela falava empolgada enquanto movia as peças pelo tabuleiro. – Pillage!
– Maravilha! – Hell Wizard, o companheiro de partida da morena, disse se levantando para comemorar com ela.
– Droga! – Scott resmungou frustrado. – Como você faz isso?
Ela estava rindo da cara de frustração dos meninos quando foi atingida por uma sequência inesperada de contrações, fazendo com que se inclinasse para frente, apoiando as mãos na mesa e contraindo os músculos do rosto.
– Cosima? – Scott perguntou notando a mudança de postura. – Você está bem?
– Tô – ela respondeu tentando forçar um sorriso nos lábios. – Não se preocupe, tá tudo bem.
Antes que tivessem tempo de voltar a atenção para o jogo, uma voz se fez presente ao se aproximar da mesa.
– Bonsoir tout le mond!
– Hey! – a morena disse se virando para Delphine. – Eu pensei que você já tinha ido pra casa.
– Quase, acabei ficando presa em um tópico complicado... Então vi vocês de longe e vim ver se essa partida ainda vai demorar muito.
– Na verdade, ela acabou de terminar, Delphine – disse Scott voltando a ficar emburrado.
– Não liga não – falou Cosima provocando o amigo. – Ele tá bravo porque eu ganhei de novo.
Delphine riu da cena. Como Cosima era atrevida... Contudo, encontrar o rapaz a fez se lembrar de algo.
– Scott, posso dar uma palavrinha com você?
– Claro. – Ele parou o processo de recolher as cartas do jogo e foi na direção dela. Os dois se afastaram um pouco enquanto Cosima ajudava os colegas a colocar o jogo de volta na caixa. – O que foi, Delphine? Aconteceu alguma coisa?
– Não é nada demais. – Ela passou a mão pela nuca. – É só que... você visitou sua vó esses dias?
– Eu estive lá na semana passada. Por quê? – ele perguntou parecendo ficar preocupado. – Ela não está bem?
– Bom, eu passei no apartamento dela essa manhã. – Delphine parou tentando encontrar as palavras adequadas. – Não quero que você fique muito alarmado, pode não ser nada importante, mas eu achei que ela estava um pouco abatida. Me contou que tem sentido bastante tontura e alguns desconfortos no estômago. Disse que está tomando os remédios, mas sabe como é, pra alguém na idade dela e que mora sozinha, ter vertigens persistentes é uma coisa que pode evoluir para um problema bastante sério caso ela caia e se machuque.
– Claro, você tem razão. Ela não comentou sobre isso comigo ontem quando me ligou, mas pode deixar que hoje mesmo eu vou fazer uma visita a ela e ver direito o que está acontecendo. Muito obrigado por avisar.
– Não precisa agradecer.
Logo que chegaram, Delphine deu início a preparação jantar e Cosima a ajudou com a louça. Depois de comerem, enquanto a loira tomava um banho, Cosima levou o computador para cama.
Ela começou a fuçar um site de streaming tentando evitar a ideia de reassistir um de seus títulos favoritos. Queria um ver um filme, mas com o tempo que perdeu procurando algo do catálogo poderia ter assistido um episódio de Grace and Frankie. Foi só quando Delphine saiu do banheiro, preenchendo o quarto com seu perfume, que a morena encontrou algo em que se interessou.
– Você já assistiu esse filme? – ela perguntou virando a tela do computador na direção da francesa. – Café de Flore?
–Non, acho que com esse nome eu só conheço o estabelecimento mesmo – a francesa respondeu se ajeitando embaixo dos cobertores. – É sobre o quê?
– A sinopse não diz muita coisa. Parece que são duas linhas temporais. Uma atual aqui no Canadá e outra na Paris dos anos 60. Está muito bem avaliado.
– Ok, acho que é legal assistir coisas sem saber do que se trata de vez em quando.
Então Cosima deu o play no filme, mas logo nos primeiros minutos ela já estava falando novamente.
– Nossa, essa atriz é a sua cara! – ela comentou boquiaberta.
– Sério? – Delphine ponderou por um instante. – Não, não acho que ela se pareça comigo.
– Tá brincando?? WOW! E pelo jeito não é só o rosto que se parece... É o corpo inteiro!
– Cosima!
– O quê? – a morena falou tentando disfarçar seu rubor frente a cena de nudez. – Meu interesse é estritamente acadêmico aqui. Vocês devem ser, sei lá, clones ou algo do tipo...
– Ah, por favor, para de bobagem e presta atenção no filme!
Depois da bronca que levou, Cosima tentou se manter calada e abstrair a semelhança física das duas. Essa tarefa só não foi mais complicada por conta da história, que a cada cena que passava, a narrativa entrecortada prendia mais e mais sua atenção tentando entender como aqueles personagens iriam se ligar.
Com o desenrolar do filme, o nó na garganta de Cosima só fazia apertar e acabou evoluindo para um choro copioso para quando o desfecho foi revelado. Assim que os créditos começaram a subir, Delphine com os olhos meramente marejados, fechou o computador e se levantou para deixá-lo sobre a mesa. Voltou para cama na sequência com intuito de amparar Cosima.
– Ah, me desculpe por isso, eu... Não sei o que deu em mim – falou a morena tentando enxugar as lentes dos óculos com a barra da camiseta. – Acho melhor evitar os dramas cult e ficar só nos blockbusters da próxima vez.
– Não vejo o menor motivo para você estar se desculpando. O objetivo te todas as obras artísticas deveria ser esse, não? Tocar as pessoas de alguma forma?
– É, acho que você está certa.
– Além do mais, foi uma surpresa muito boa assistir um filme sem saber para onde ele estava indo. A trilha sonora e as atuações com toda certeza foram um bônus e tanto. Eu não tinha ideia de que a Vanessa Paradis era uma atriz tão boa desse jeito.
– Né? Aquele garotinho também. Não dá nem pra acreditar que ele não é filho dela de verdade.
Cosima se aconchegou ao lado de Delphine, deitando a cabeça no ombro dela enquanto a loira brincava com seus dreads, os passando entre os dedos.
– Você acha que isso pode mesmo acontecer? – perguntou Cosima depois de um tempo.
– Isso o quê?
– Tipo, ser impedido de viver um amor e depois voltar em outra vida para terminar a história que deixou inacabada?
– Hmm – Delphine ponderou por um instante. – Não, não acho que eu acredito nessas coisas. Digo, reencarnação, espíritos... Você acredita?
– Não sei bem – Cosima falou dando os ombros. – Sabe, meu lado cientista sempre me leva a tentar pensar de forma racional, mas às vezes... Sei lá, acho que eu ainda não sei no que eu acredito. – Ela fez uma breve pausa antes de continuar. – Então você também não deve acreditar nessa coisa de amor à primeira vista, né?
– Sinceramente? – Cosima riu pensando já saber a resposta. – Eu definitivamente acredito em interesse ou atração à primeira vista, talvez paixão à primeira conversa. Mas amor... Amor não.
– Ok, faz sentido.
– Eu acho que as pessoas confundem muito paixão com amor, como se tivesse algum demérito em se estar simplesmente apaixonado. Seus hormônios ficam uma loucura e você até para de pensar direito, o que faz com que essa seja uma fase deliciosa do relacionamento e sem dúvidas tem um valor enorme. Mas o amor não tem espaço nesse furacão de emoções, ao meu ver. É uma emoção mais calma, constante; é aquela vontade e necessidade de construir algo sólido que consiga suportar as tempestades que ainda vão vir. Aliás, acho que seja até mesmo leviano dizer que ama alguém sem antes conhecer seus defeitos e ter passado por momentos desafiadores. Posso estar errada, mas ao meu ver dizer essa palavra de forma precipitada só faz com que o significado tão lindo dela se dilua, ficando até mesmo irrelevante ao longo do tempo.
Cosima refletiu por um instante sobre o que Delphine tinha acabado falar. Embora essa definição fosse um tanto intimidadora, ela conseguia entender exatamente ao que francesa estava se referindo.
– Acho que eu não poderia concordar mais – ela disse por fim. Naquele momento não conseguiu deixar de se apegar a esperança de que um dia Delphine fosse dizer que a amava, sabendo o quanto a loira valorizava o sentimento que vinha com aquelas três palavras.
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