⊱ 𝙇𝙞𝙫𝙧𝙤 𝙄; Hortênsias
✣ Capitulo XXXI: Hortênsias ✣
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Primeiro dia.
O caráter de um homem é maleável diante de determinadas situações, um ser humano é capaz de se agarrar com afinco a seus princípios enquanto outros se vendem a prazeres repentinos. Este era o caso de Mi-so que desistira da própria vida para proteger uma criança inocente e de Song Kang ao abrir mão desta carta do baralho para obter o coringa pelo qual tanto ansiava.
Embora estivesse vendada, poderia julgar que tivera anoitecido há algumas horas quando o carro finalmente parou em uma pequena zona isolada de Geomdan (Il)-dong¹, cercada pelos pequenos morros de terra repletos por vegetação. O tecido de algodão continha relevos que irritavam a região de seus olhos, os deixando avermelhados, muito semelhantes às marcas de choro que escondera desde o rapto.
O homem escancarou a porta traseira do Kia Sorento azul marinho arrancando a jovem do banco. Seus pés descalços encontravam pequenas pedras incômodas pelo caminho até a porta da estrutura metálica semelhante a um largo container, a venda fora tirada permitindo que explorasse sua nova casa.
Não havia paredes, toda extensão do interior estava preenchida por móveis reaproveitados, o cheiro de mofo era forte devido à umidade não controlada. Duas janelas em lados diferentes deixavam que a claridade da lua entrasse no local iluminando as cortinas de renda branca. Do canto direito da vareta, na qual prendia-se o tecido, uma goteira pendia entre o tempo, cada gota se aventurava a cair solitária para o chão de carpete marrom.
Song Kang destrancou uma das gavetas no criado mudo da sala improvisada, retirando uma camisola de cetim branca, a peça fora entregue a ela ordenando para que se trocasse ali. Receosa permitiu que suas amarras fossem retiradas antes de desabotoar o pijama azul claro, novamente a roupa cedida por ele, possuía muita semelhança com as peças que utilizara durante a infância.
Despida em frente a seu assassino, sentia a vergonha que dava graças ao constrangimento. As juntas do joelho queimavam no mais puro incandescente vermelho, imitando os cotovelos, ambos marcados pelo frio. Concedera-lhe o poder de tocá-la com graciosidade penteando os fios rebeldes do cabelo castanho, não havia elástico para prendê-lo, entretanto em seu bolso continha uma fita delicada.
Diferente de todas às vezes não precisou chorar para que o homem reconhecesse seus limites, buscava agradá-la como uma linda boneca de porcelana, frágil demais para que pudesse brincar. A exata meia noites a televisão fora deligada e cama posta, embora Mi-so não pudesse pregar os olhos ao sentir o metal gelado das algemas que prendiam o pulso direito a cabeceira. Sentia falta de dormir ao lado de Tae Oh e Nam-do.
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Sétimo dia.
Não possuíam mantimentos para um café da manhã adequado, alguns biscoitos simples serviram para que disfarçassem a fome até os primeiros sinais do meio-dia. Agachada no canto da sala sua boca estava selada pela fita adesiva, os pulsos presos pelas algemas no exaustor que aquecia a casa improvisada.
Independentemente do que pensasse, aquela não era a pior das situações em que viveu. Solitária poderia se maravilhar pela neve do lado de fora da janela lacrada, os pequenos flocos desiguais caiam no dançar calmo conduzido pelo vento uivante. Ou apenas assistir à televisão que estava ligada, porém sem som.
As pontas dos dedos dos pés coçavam descobertos durante o clima frio, espirrou algumas vezes antes de esfregar o nariz nos ombros pelo fino tecido da camisola. Quando criança costumava passar os dias de nevasca ao lado do irmão assistindo a série médica preferida da mãe que lhes preparava chocolate quente.
Talvez Kim Bok Joo tenha sido boa mãe para Kim Dong-hee na mesma medida que a sua fora para si. Vê-la morrer tão abruptamente diante de seus olhos a magoava, pensar no pequeno Dong-hee crescendo sem a mãe se tornou uma cicatriz peculiar, ligada ao sorriso espontâneo daquela criança. Prometera ser sua melhor amiga, mas a deixara sozinha no final.
Novamente, apesar da tristeza que corroía seu coração por dentro em uma lenta rachadura, Mi-so não sentiu vontade de chorar. A dor somente lhe servia como um lembrete de que ainda estava viva, presa ao inferno particular de Song Kang, a franja cobria parte dos olhos cansados como um brinquedo sem vida largado após uma longa sessão de uso.
Bateu a cabeça repetida vezes contra o metal aquecido do exaustor, buscando sentir qualquer coisa além do vazio crescente em seu interior conturbado. Exausta pendeu o pescoço para trás suspirando pesado, a fita ainda prendia os lábios em união, dificultando que recuperasse o fôlego, e sem poder estabilizar as batidas desreguladas do próprio coração, a garota apagou deixando para trás os resquícios das teias que se emaranhavam diante de si.
O Kia Sorente estacionou perto traseira do container, o clique alto do alarme sendo ativado repercutiu pelas arvores assustando alguns pássaros que voaram para longe em resposta. Song Kang caminhou calmo pela neve terminando o cigarro antes de adentrar a casa com algumas compras em mãos.
- Desculpe querida, te fiz esperar muito? - O sorriso se desfez pelo filete de sangue a escorrer da contusão no nariz. - Puta merda!
Desatou as algemas dos pulsos a puxando para o banheiro do lado exterior da casa, um pequeno cômodo colado a lateral do contêiner, possuindo apenas uma pia, privada e chuveiro. Ligou a ducha no frio apertando o corpo da garota entre os braços na expectativa de que a água fria relaxasse as terminações nervosas acordando a jovem enquanto limpava o ferimento com uma toalha branca.
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Décimo dia.
Mi-so era um animal selvagem a esbanjar toda sua voracidade voluptuosa, deleitosa, sensual, lúbrica. A luz das velas ressaltava a beleza natural das linhas sobressalentes do rosto pálido, bochechas ruborizadas contrastando com o vermelho do molho que manchava os lábios. Outro fio de macarrão deslizou para dentro da boca sendo mastigado.
Eram raras às vezes em que a via comer com tanta vontade desde que a trouxera para casa, desde o fatídico acidente que marcara seu nariz com o hematoma roxo e preto, constatou tê-la visto perder o brilho dos olhos. A inocência havia sido deixada de lado muito antes da alma ser vendida ao diabo.
Sabendo que a incomodava ser presa, somente utilizava as algemas ao sair para resolver alguma pendência, confiava na palavra dela. Prometera sua vida em troca de outra, certamente cumpriria com o acordo até o último segundo que lhe restara e talvez esta confiança o tenha cegado para os verdadeiros sentimentos que a autora trancafiava no obscuro subsolo de sua mente.
Pedira que Mi-so trouxesse a louça suja até a pia para que ele lavasse como haviam se acostumado a fazer todos os dias. Incapaz de cobrar qualquer atitude vinda dela, se esforçava para realizar todos os afazeres domésticos a deixando livre para transitar pela casa. Entretanto sempre se acomodava em frente à televisão, este comportamento fora o mesmo de anos atrás quando perdera seu irmão, tomada pela calmaria que antecedia a tempestade.
- Talvez você já me odeie. - Comentou rondando o chiado do canal, arrumou a antena tentando recuperar o sinal do aparelho. - Mas se eu contar um segredo, precisa jurar continuar cumprindo sua promessa de estar ao meu lado até o fim.
- ... - Assentiu sem desviar a atenção do chiado insistente, de todo fato não odiava Song Kang. Para ela o ódio era um sentimento maligno demais para que suportasse manter seu pesar direcionando-o para uma pessoa, não tinha forças para sequer sentir qualquer coisa.
- A culpa foi minha. - Permaneceu de costas durante todo o tempo, fechou as cortinas acariciando o relevo de textura rude da renda. O papel de parede florido estava descascando pouco a pouco nas extremidades da janela deixando com que o mofo brotasse. - No dia que seu irmão foi internado eu não o tirei da chuva após a briga que tivemos, estava com tanta raiva que o deixei para morrer no meio do temporal.
Os lábios tremeram unidos a junta dos dedos, doloridas ao cerrar os punhos. O olhar se fixou no chão ignorando tudo que se era dito naquela noite, sob o testemunho da chuva que varria as folhas caídas dos montes, a água que caía torrencialmente do lado de fora parecia imergir suas cabeças abafando os sons. O chiado se tornou uma lembrança distante, difícil de ser recuperada.
- Ele foi o primeiro a negar que poderíamos estar juntos um dia. - Provocou a jovem buscando extrai-la do estado de dormência no qual estava atrelada. - Depois foi seu noivo, ainda guardo a gravação da caixa preta no veículo na minha carteira. Quando preciso de incentivo, me lembro do quanto já estou afundado nesta merda toda. Não existe mais uma saída, não é mesmo?
O ar pareceu lhe faltar a jogando contra o chão da sala esbarrando na mesa de centro, todos os sentimentos que soterra a sete palmos de terra rasgavam caminho pela trilha de lama florescendo num mártir violento. A taça passou a perpendicular alguns segundos traçando o rumo perigoso até o carpete, estilhaçando-se em meio ao vinho tinto, como fragmentos de vidro cada centímetro de seu corpo parecia se romper deixando a mostra apenas a raiva.
" – Acredito que a única forma de sair deste livro, é morrendo. – Constatou In Jae Hwa para Seojun. – A única válvula de escape".
- Nós deveríamos morrer também? - Cortou o silêncio instaurado, a oscilação de seu timbre descia pela garganta em vibrações imprecisas, presenciou o rosto do próprio irmão tomar vida na poltrona instalada na extremidade do sofá, os lábios estavam partidos, rachados pelo frio e suas vestes exacerbadas pela chuva.
O toque quente da mão na pele descoberta do ombro apaziguou o desespero, ajoelhado perante ela Taehyun era fruto de um devaneio, lhe entregando a brilhante e cristalina base da taça que retinha todo o protagonismo da noite.
- Eu não posso mais aguentar, está na hora de dar um fim a tudo isto.- Proferiu para o irmão acatando de bom grado a ideia.
- O que está dizendo? - Curvou-se diante Mi-so erguendo seu rosto entre as mãos, a garota mordiscava o lábio inferior escondendo as evidências do crime, quando lhe tomou a mão pôde ouvir o tilintar o vidro a cair próximo rolando pelo carpete. - Mi-so o que fez?
Song Kang deu alguns passos para trás recobrando os sentidos, o vidro atravessara seu abdômen rasgando a pele. Mi-so levantou-se puxando o casaco do homem do móvel que ficava próximo a porta. Retirou o molho de chaves destrancando a porta do lugar.
O homem se escorava pelas paredes indo em direção ao gaveteiro da cozinha, empunhou o revolver correndo para o lado de fora. Mi-so tentou a todo custo destravar a porta do carro a tempo de fugir das garras de Song Kang, entretanto um tiro ecoou a tempo de faze-la se jogar no chão para baixo do veículo.
Os passos rondaram os cascalhos por alguns segundos antes de passar pelo Kia Sorento indo ao banheiro, a jovem aproveitou a deixa para se desvencilhar do chão ao rebater um galho contra a cabeça do homem. O ato lhe deu tempo o suficiente para correr até a imensidão de árvores ao redor da casa.
Lançou os pés pela terra molhada ignorando a rajada fria que lhe atingia os músculos, estava escuro, desolador, a chuva apagara a trilha de pedregulhos a deixando sem direção. Seu corpo atingiu o tronco retorcido de uma arvore a derrubando, o barulho soou por alguns metros atraindo a atenção do homem que disferiu outro tiro.
Sua intenção não era matá-la, porém o sangue que lhe manchara os olhos desviava sua mira. O corpo da garota caíra sem forças ao chão evidenciando o rasgo na camisola delicada, o cetim embebido de sangue permitia com que a mancha alastrasse por todo abdomem por singelos intermináveis segundos. Song Kang retirou o próprio casaco pressionando o ferimento na tentativa de conter o sangramento.
As gotas de água desprendiam-se do céu colando o tecido fino da camisola a pele roxa pelos vasos sanguíneos rompidos, o coração fraco bombeava a todo fervor mantendo o corpo vivo mesmo que por poucas horas, se tivessem sorte chegariam a tempo no hospital. Destravou o veículo atando o cinto do passageiro com algumas voltas pelo apoio de cabeça para que ficasse mais firme. Rondou a lateral indo para o banco do motorista arrancando os pneus pelo cascalho fino, o único meio de salvá-la seria através do manuscrito, mas somente uma pessoa além de Mi-so seria capaz de escrever naquelas páginas. Alguém cujo ele jamais gostaria de rever.
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